O LOBO E O FALCÃO
Capítulo 10
Sempre que se sentia nervoso ou preocupado, Eriol costumava olhar as estrelas. Era um hábito que adquirira de seu mestre. Houveram noites em que os dois ficavam sentados, diante da pequena cabana nas montanhas, apenas contemplando a vastidão acima de suas cabeças. Nesses momentos, Clow dizia o quanto os seres vivos eram diminutos ante a imensidão do Cosmo, fascinando seu pupilo com explicações sobre constelações, divindades e mitos. Os anos passaram e o mago morrera, deixando ao jovem Hiiragisawa seu legado de conhecimentos.
E agora, diante da janela do escritório de Susano, enquanto fitava as estrelas e esperava o Rei Kinomoto, Eriol se perguntava se era mesmo merecedor dos dons que Clow lhe deixara. Falhara com seu mestre, falhara com Sakura e com Li. Sentia-se frustrado, aborrecido, decepcionado consigo mesmo. Não percebera as intenções maléficas de Susano. Estava tão preocupado com a proximidade do grande evento dos astros, a noite sem dia, que se deixara bitolar em sua missão, não observando os sinais de perigo. Um deles foi o uso que o Duque fizera do amuleto mágico. Como Susano conseguira incitar dor e sofrimento em Lady Sakura usando o cristal? Essa e outras perguntas explodiam na mente do jovem mago, causando uma pontada de dor de cabeça. Pressionou as palmas das mãos contra os olhos e respirou fundo, tentando liberar a angústia e a culpa.
Imerso em suas preocupações, Eriol nem sequer reparava na presença de Tomoyo e Spinel no aposento. A fada e o gato trocavam olhares apreensivos. O mal-estar do bruxo era nítido e a princesa das fadas sabia exatamente o que fazer para ajudar. Voou silenciosa até pousar no ombro do feiticeiro. Com a mão no peito, convocou suas energias e depois, tocou levemente a têmpora dele. Uma sensação de paz e tranqüilidade engolfou Eriol. Sentiu a cabeça parar de latejar e os membros relaxarem. Virou o pescoço e sorriu para Tomoyo, que brilhava, etérea, sentada em seu ombro.
"Obrigado", murmurou, sorrindo. A fada retribuiu o sorriso e acenou com a cabeça. Spinel se aproximou e pulou no parapeito da janela, de modo a ficar mais perto de seu novo senhor.
"Não foi tua culpa, mestre. Não deixe esses sentimentos negativos apossarem-se de ti", disse, fitando Eriol com seus olhos amarelados. "Acalma teu ser, precisaremos de teus dons para encontrar Lady Sakura".
"Sim, eu sei... Obrigado, Spinel... Já sinto-me melhor".
A porta do aposento abriu, dando passagem ao Rei Kinomoto. Seguido ao soberano, entraram Touya, Kaho, Yamazaki e Kerberus. Eriol sabia que não podia mais protelar aquele assunto. A conversa que teriam era demasiado importante para ficar adiando. Olhando uma última vez para a fada e o gato e, depois de um rápido aceno de cabeça e um sorriso, voltou-se para os recém-chegados.
"Majestade", curvou-se diante do Rei.
"Meu jovem, estamos todos aqui, como solicitaste", disse Fujitaka, sentando-se numa confortável poltrona.
"Obrigado por teres esperado, Majestade. O que tenho a dizer merece ser ouvido por todos e achei mais justo e correto que todos estivessem presentes".
Kinomoto apenas concordou com a cabeça. Ao lado dele, o filho e a nora se
acomodavam. Kerberus sentara-se nos pés de seu mestre e mantinha os olhos
dourados fixos no jovem diante deles. O que aquele rapaz esbelto teria a
revelar a respeito de Sakura?
Eriol voltou-se para janela mais uma vez e olhou longamente as estrelas. "Dizem que todas as lendas têm um fundo de verdade...", ele começou, olhando para o céu que refletia a cor profunda de seus olhos. "Que por mais fabulosas ou estranhas que possam ser, há nelas algo de real... Crescemos cercados por mitos, lendas, seres maravilhosos, que muitos de nós acabam se tornando céticos quanto as coisas que escutamos...". Fez uma pausa e, voltando-se para Fujitaka, continuou. "Uma das lendas que sempre aguçou minha curiosidade é a do lobo e do falcão. Um jovem casal apaixonado separado por uma terrível maldição".
"Para sempre juntos, eternamente separados", murmurou Kaho, recitando o que lembrava daquela lenda.
"Exatamente, Alteza... Unidos por um amor intenso, separados pela magia... É uma belíssima história de amor", disse Eriol, olhando cada um da família real com atenção. "E é verdadeira".
"O que queres dizer?", perguntou Touya.
"Essa lenda, na verdade, não é uma lenda. É a história real de um casal... De Sakura e Syaoran".
Durante o silêncio que se fez seguido àquelas palavras, Eriol observava atentamente a reação do pai e do irmão de Lady Sakura. Os olhos castanhos do Rei se arregalaram por detrás dos óculos que usava. Parecia em choque. A reação de Touya foi mais explosiva. O príncipe levantou-se e agarrou o mago pela roupa. Atrás dele, Kerberus rosnava, também não acreditando naquela história maluca.
"Estais insinuando que essa maldita lenda aconteceu com minha irmã?", indagou com raiva, quase a ponto de chacoalhar Eriol, que se desvencilhou e se afastou.
"Não é uma insinuação, Alteza. Lady Sakura é a mulher da lenda".
"Não! Isso é impossível!".
"Touya, por favor...", Kaho puxou o marido pelo braço, obrigando-o a sentar-se novamente. "Acalma-te!".
Fujitaka permanecia calado, absorvendo todas aquelas informações. Apesar de não querer acreditar, no fundo do coração, sabia que era verdade. Foi tomado por uma tristeza e por uma frustração súbitas. Alguém enfeitiçara sua filha caçula, sua menina, fruto de seu amor por Nadeshiko e nada pudera fazer para evitar.
"Nunca vos perguntastes o porquê de não haver encontrado Lady Sakura todo esse tempo? Tantas buscas, tantas viagens e nenhum sinal de vossa filha?", Eriol perguntou ao Rei.
"Sim...", Kinomoto respondeu, com o olhar vazio. "Nunca a encontramos porque...".
"Porque, durante o dia, Lady Sakura se transforma num falcão".
Touya fechou os olhos com força e virou o rosto para o lado. Como? Como aquilo fora acontecer com Sakura?
"Conte-nos como tudo aconteceu", ordenou o Rei, com voz firme e expressão resoluta. Não adiantava ficar remoendo-se por algo que não pudera evitar. Precisava saber o que havia acontecido e tomar providências rápidas para salvar sua filha.
Eriol falou tudo o que sabia. Durante seu discurso, olhava direto nos olhos de Fujitaka, para que este soubesse que não mentia em nenhuma palavra. Touya já havia desistido de ficar parado e caminhava de um lado para o outro, ouvindo tudo com atenção. Kaho e Kerberus também nada perdiam, bem como Yamazaki, Tomoyo e Spinel. Estavam todos atentos e fascinados pela narrativa do mago. Quando esta chegou ao fim, um pesado silêncio se fez.
Indignação, raiva e decepção tomavam conta de Fujitaka. Confiara em Susano. Confiara ao nobre seu maior tesouro, sua própria filha, e este lhe pagara com traição. Como o Duque tivera coragem de fazer ato tão vil contra Sakura, herdeira direta do trono de Tomoeda? Um ato contra alguém da família real era considerado crime gravíssimo, a vilania de Susano tinha que ser castigada.
Kaho tinha o coração na mão. Sabia que alguma coisa grave acontecera com Sakura, mas em nenhum momento chegara a imaginar a gravidade da situação atual. De acordo com o jovem bruxo, havia um modo de desfazer a maldição, entretanto era necessária a presença de Sakura e do Capitão Li. O tempo se esgotava... Tinham que encontrar a princesa o mais rápido possível.
Por ser o mais explosivo de todos, a reação de Touya não podia deixar de ser a mais furiosa e ruidosa. Fechando as mãos em punhos apertados, ele golpeou o primeiro objeto à sua frente que era, coincidentemente, um busto de gesso de Susano. O soco esmigalhou a cabeça da escultura e o príncipe desejou, interiormente, poder fazer o mesmo com o Duque de verdade. Estava tão voltado para sua ira que sequer reparou nos danos causados em sua mão. Esfolados, os dedos sangravam, pingando o líquido vermelho intenso no tapete do aposento.
Fujitaka foi o primeiro dos três a falar. "Como sabes de tudo isso, rapaz?".
"O mago que fez o feitiço... E que criou o amuleto... Era meu mestre".
* * *
Susano voltava de sua inspeção. Andando pelas passagens secretas do castelo, pudera espionar os acontecimentos e viu seus homens, seus empregados, serem dominados pelo Príncipe e pelos Dragões Reais, soldados de elite que faziam a escolta do Rei. Não tinha mais ninguém que pudesse ajudá-lo. Estava sozinho naquela empreitada.
Voltou para a galeria onde deixara Sakura. A Princesa adormecia sob as almofadas. Apesar das escoriações e dos hematomas que começavam a ficar mais nítidos, ela continuava bela. Deixou os olhos percorrerem o corpo miúdo, encolhido pela dor. Depois que matasse Li, a teria só para si.
"Minha... Serás só minha...", murmurou, com um brilho sádico e assustador no olhar.
* * *
Após tão surpreendente revelação, o que Eriol sentiu foi o punho forte e
machucado de Touya contra seu rosto. O soco o pegou desprevenido, derrubando-o
no chão e fazendo com que seus óculos caíssem. Novos golpes viriam se não fosse
pela intervenção de Kaho e Fujitaka.
"Touya!", a mulher tentava segurar o marido. "Por Deus, homem! Fica calmo! Pára com isso!"
Mas Touya parecia surdo aos apelos da esposa. Tentava a todo custo se desvencilhar do braço forte de Fujitaka e avançar sobre Eriol, que se levantava devagar. O mago entendia a reação do príncipe e até esperava por ela, afinal ele mesmo se revoltava e se culpava por não ter insistido mais... Se ao menos tivesse descoberto a tempo, se tivesse se empenhado mais, talvez teria salvado seu mestre e Lady Sakura.
"Meu filho! Basta! Chega deste comportamento absurdo!", ordenou o rei, puxando o braço de Touya com força e dando uma firme sacudida.
Os olhos ardentes do homem mais novo passaram a fuzilar o pai. "Como podes me pedir para parar? Como podes ficar tão calmo enquanto descobres que tua filha foi amaldiçoada por toda vida e este bruxo...", fitou Eriol com ódio e lhe apontou o dedo. "Este bruxo maldito sabia de tudo e é aprendiz do imundo que causou toda esta confusão!".
Fujitaka encarou o filho, com raiva brilhando nos orbes castanhos. "Estás enganado, meu filho, quando pensas que estou calmo. Como podes achar isso? O fato de eu não explodir como tu, não significa que não sinto nada em relação a esta história... Tenho raiva, muita raiva sim... Mas não deste pobre rapaz, que no meu ver é tão vítima deste infortúnio quanto tua irmã. Minha raiva é contra Susano. Ele sim é o responsável por esta confusão. E é contra ele que devemos lutar, contra ele que deveis direcionar teu ódio".
Touya abaixou a cabeça diante da repreensão do pai. Seu espírito irrequieto mais uma vez o levara a tomar atitudes impensadas, mas não podia negar que se sentia um tanto aliviado após despejar sua ira incontida no feiticeiro.
Sentindo mais uma vez o peso da culpa sobre os ombros, Eriol ajeitou as roupas e deu alguns passos para trás, afastando-se dos Kinomoto. Apesar de saber que não merecera aquele soco, sentia-se tão culpado e responsável pelo fracasso do plano que nem pensava em responder a agressão. Aproximou-se da janela e ficou a olhar as estrelas.
Percebendo que o filho nada mais faria, Fujitaka soltou-lhe o braço e depois fitou todos no aposento. "Por favor, saí todos... Deixai-me a sós com Hiiragisawa...".
Depois de trocar um longo olhar, Tomoyo e Yamazaki saíram, seguidos por Kerberus, Touya e Kaho. Quando Spinel se aproximava da porta, Eriol lhe pediu para ficar. O gato sabia da vida de Clow tanto ou até mais que o próprio pupilo do mago. Talvez fosse de ajuda para responder as questões do soberano. Sem contar que seria uma boa companhia naquele momento. Não queria encarar o Rei sozinho. Não se sentindo tão mal.
"Majestade", disse o jovem, sem saber ao certo como começar. "Espero que possas me perdoar... Sei que não é nada agradável saber que sou discípulo do homem que enfeitiçou vossa filha, mas creia-me, isso me corrói a alma...". As palavras eram sinceras. Ele se sentia mesmo corroído pela culpa de não ter podido ajudar Lady Sakura antes. Mas será que poderia ter ajudado? A carta de seu mestre era tão clara... O momento certo para fazer alguma coisa era o momento em que a Terra se cobriria de escuridão, criando uma noite em pleno dia.
"Por que não fizeste nada para ajudar minha filha?".
"Eu não sabia de nada, meu senhor...", Eriol passou a mão pelos cabelos negros, num gesto inseguro. "Só descobri quando mestre Clow morreu...".
"Teu mestre era Clow?", o rei perguntou espantado. Sentiu a garganta apertar levemente. Seu amigo de infância, uma pessoa a quem devia tanta coisa... Não podia acreditar que ele fora o responsável pela maldição de sua filha. "Reed Clow?", perguntou novamente.
Eriol confirmou com a cabeça. "Sim, Majestade. Fui treinado por ele desde tenra idade. Ele me ensinou tudo o que sabia, foi um ótimo mestre".
"Clow... Por que? Não posso acreditar...", murmurou Fujitaka andando de um lado para outro. Ainda podia se lembrar da presença do amigo em seu casamento e o inusitado presente que ele lhe dera – Kerberus, o guardião da família real. Nadeshiko o admirava intensamente e lhe tinha um grande respeito, sempre que o mago aparecia pela região de Tomoeda, o soberano fazia questão de recebê-lo. Gostavam de conversar, trocar idéias sobre tudo. Não podia acreditar que Clow enfeitiçara a própria afilhada. Sentiu o peito doer, a angústia atravessando-lhe as entranhas como um punhal afiado.
O jovem feiticeiro e o gato se entreolharam longamente. Não entendiam a reação do rei. "Senhor?", chamou Eriol.
Fujitaka se voltou para o pupilo de seu amigo. "Clow está mesmo morto?".
"Sim, meu senhor", desta vez quem respondeu foi Spinel. "Morreu de desgosto por ter usado seu dom para algo maléfico".
"De desgosto?", Fujitaka parecia não acreditar. Um mago poderoso como Clow, morrer de desgosto... Era no mínimo estranho. Entretanto, no segundo seguinte, toda situação lhe caiu como um tijolo na cabeça. Clow se remoera de culpa e arrependimento não apenas por ter feito mal a alguém, mas também porque este alguém lhe era conhecido, tinha vínculos com Sakura, apesar de poucos saberem que ela era sua afilhada.
"Exatamente... Um dos juramentos de um bom feiticeiro é jamais usar seus dons para causar o mal", esclareceu Eriol, depois de um longo suspiro, suas palavras confirmando a teoria do soberano. "Mestre Clow foi forçado a isso e jamais se perdoou. Ele nunca foi capaz de tocar no assunto, mas antes de morrer deixou uma carta, explicando-nos o que se passou e com instruções claras sobre o que fazer".
"Mas por que ele não fez nada para ajudar Sakura enquanto era vivo?". Ainda não podia aceitar que o amigo nada fizera pra reparar o mal que fizera à Princesa, mesmo tendo sido forçado.
"Creio que ele tinha medo do que o Duque Susano era capaz de lhe fazer", disse Spinel. "Mestre Clow sofreu muito nas mãos deste homem".
"E minha filha?", inquiriu Kinomoto. "Sakura também sofreu por causa de Susano... ainda sofre até hoje, está sofrendo agora! Ele devia ter feito alguma coisa, qualquer coisa...".
Eriol percebeu que, apesar das palavras ditas à Touya, o rei estava ressentido. E isso era perfeitamente normal, dada as circunstâncias. Não podia culpá-lo por sentir raiva de Clow e de qualquer pessoa ligada à Clow. Viu Fujitaka se sentar, ou melhor, praticamente se jogar na poltrona e segurar a cabeça nas mãos, cotovelos apoiados nas pernas.
"Sinto muito, Majestade", disse, sincero. "Sinto muito por tudo o que aconteceu com Lady Sakura... Sei que se pudesse, meu mestre desfaria tudo o fez para prejudicar a princesa...".
"Sentir muito não trará minha filha de volta...". A dor que sentia no peito não era apenas pela filha enfeitiçada, mas também pela traição do amigo e pela desumanidade de seu suserano.
"Não, meu senhor, mas como já falei, fui instruído por mestre Clow para ajudá-la assim que chegar a hora".
Assentindo, o soberano lembrou de uma das explicações do mago, a noite sem dia, um fenômeno raro de alinhamento dos planetas. Quando a Terra, o Sol e a Lua estiverem alinhados e a sombra do satélite esconder o Sol por alguns minutos, o feitiço enfraqueceria o suficiente para ser quebrado. Seria o momento ideal para libertar Sakura e Li do maldito sortilégio.
"E quando esta hora chegará, Hiiragisawa?".
Eriol se aproximou da janela e voltou a fitar as estrelas. "De acordo com as previsões de Mestre Clow...", fez uma pausa e se voltou para o Rei. "O eclipse será amanhã".
* * *
O resto da noite foi passada em uma espera ansiosa para todos os que estavam no castelo. O tempo escoava lentamente, agonizantemente. As buscas, apesar de infrutíferas, continuavam. Ninguém desistia. Era preciso encontrar Sakura e Susano antes que algo mais grave acontecesse.
Longe do castelo, na densa floresta de Nimah, um homem surgiu deitado sob as árvores, assim que os primeiros raios de sol despontaram. Seu corpo cansado e dolorido o impedia de se levantar, o menor dos movimentos causava-lhe sofrimento físico. Respirando profundamente, Syaoran se sentou, usando o tronco da árvore como apoio. Não entendia o porquê daquela estranha dor. As transformações eram um tanto cansativas mas nunca dolorosas. O que teria acontecido daquela vez? E como estaria Sakura? Apesar da vontade que sentia de sair correndo para o castelo, tinha ciência de que nada conseguiria naquelas condições. Estava fraco e machucado. Fechou os olhos e reclinando a cabeça para trás, desfaleceu.
* * *
Susano olhava, fascinado, a transformação de Sakura. Clow era mesmo um bruxo poderoso. Assistia, totalmente enlevado, o corpo de mulher metamorfosear-se no corpo de uma ave de rapina, coberta de penas. Os olhos verdes transmutaram-se em amarelos e os pés, em garras. O falcão guinchou, desabituado a ambientes fechados. Voou em círculos dentro da jaula até cansar e pousar numa almofada.
"Muito bom, minha cara... Já percebeste que daqui não poderás fugir... Muito bom. Agora fique aqui quietinha, que vou caçar um lobo...", disse o Duque, pegando sua espada sobre a mesa e acariciando o amuleto. "Será divertido usar isto aqui contra aquele tolo do Li. Acho que vou torturá-lo, antes de acabar com ele de uma vez".
E, ajeitando a capa sobre os ombros, Susano saiu de seu esconderijo, em busca de Syaoran.
* * *
Quando despertou outra vez, Li sentiu alguma coisa puxar-lhe a roupa. Abriu os olhos pesados e deparou-se com seu leal cavalo. Wei mordia a barra de seu casaco, como se tentasse acordá-lo. Passando as mãos pelo rosto, suspirou pesadamente. Ainda sentia o corpo cansado, mas a estranha dor havia cessado. O que acontecera afinal? Por que sentira tanta dor ao transformar-se em humano? Teria ocorrido alguma coisa quando ele estava na forma de lobo? Sentiu raiva por não ter nenhuma lembrança de seus atos quando virava um animal. Um puxão mais forte o fez sair do torpor que o tomava.
"Certo, certo... Estou levantando...", respondeu, erguendo-se, ainda apoiado na árvore. Olhou para cima e viu que ainda era cedo. Se cavalgasse rápido, talvez chegasse logo no castelo.
A lembrança de Sakura e Susano no mesmo castelo o fez estreitar os olhos e puxar inadvertidamente a rédea do corcel, que relinchou. Passou a mão nos pêlos negros do animal, num pedido de desculpas. Em poucas horas encontraria o Duque e finalmente resolveriam suas diferenças. Montou e orientou Wei na direção do castelo de Nimah. Instigou o cavalo para que seguisse num galope veloz, por isso não demorou a chegar à estrada. O vento frio no rosto o despertou de vez, tirando o restinho do cansaço que ainda sentia, substituindo-o por expectativa e ansiedade pelas coisas que estavam por vir. Sabia que Susano não se entregaria sem lutar e também não esperava menos que isso. Descontaria os anos de sofrimento e de solidão forçada que o nobre os impusera.
Alguns minutos depois, chegou à vila. Desacelerou o passo de Wei e adentrou em Nimah, que começava mais uma rotina de suas atividades matutinas, desta vez mais animada e colorida por causa dos festejos. Viu o padeiro sair de seu estabelecimento com um cesto cheio de pães quentes e o quitandeiro abrir as janelas de sua pequena loja, exibindo frutas e legumes frescos. Viu os feirantes arrumarem suas mercadorias e suas barracas para o início de mais uma feira. Crianças corriam de um lado para outro, brincando, sorrindo, alvoroçadas, pois aquele era um dia especial: era o aniversário de seu governante. Aquelas pessoas estavam tão acostumadas à sobriedade e frieza do Duque, que momentos como aqueles – alegres, divertidos – eram raros na cidade. E também estavam tão envolvidas naquele clima de festa que não reparavam nele, um cavaleiro estranho que atravessava o lugar em seu corcel negro.
O barulho ia diminuindo à medida que Syaoran se aproximava do castelo. A grande construção estava estranhamente silenciosa. Passou pelos portões escancarados, sob os olhares atentos de uns poucos soldados que montavam a guarda. Imediatamente, seus instintos gritaram em alerta, fazendo-o levar a mão ao cabo da espada. Sabia que, se o plano de Eriol e Yamazaki fosse bem sucedido, decerto estariam à sua espera, no entanto aquela situação não o deixava confortável, pelo contrário. Tinha a sensação que alguém pularia em seu pescoço a qualquer momento.
Parou o cavalo nos pés da escadaria de pedra que dava acesso à grande porta de entrada. Apeou, olhando atentamente para os lados. De repente, a porta se abriu e um homem saiu. Ele era alto, cabelos escuros em desalinho e olhos que brilhavam numa raiva contida. Usava uma armadura nova e reluzente, com o brasão da família real no broche que segurava a capa. Syaoran logo o reconheceu como sendo o filho do Rei Kinomoto, irmão mais velho de Sakura.
"Syaoran Li?", perguntou Touya, com cara de poucos amigos, olhos estreitos fixos em Li.
"Sim, sou eu", respondeu o guerreiro com altivez, sem se intimidar com a postura ameaçadora do príncipe. "O que queres?".
Habilmente, Touya puxou a espada, encostando a ponta no pescoço de Syaoran no instante seguinte. "O que quero?" retrucou o irmão de Sakura, empurrando um pouco mais a lâmina. "Quero matar-te, arrancar teus membros um a um por ter ousado tocar em minha irmã e ter transformado a vida dela num inferno!".
Porém, se era intimidação que Touya queria, falhou miseravelmente. Li sequer piscou quando a espada o feriu de leve, fazendo escorrer um filete de sangue. E ainda respondeu ao ataque, puxando a própria espada, também a encostando no pescoço de Touya, fuzilando-o com o olhar. "Creio que temos um problema aqui, Alteza", falou com frieza, despejando veneno e arrogância na palavra 'Alteza'. "Não quero morrer no momento. Importa-te se eu resistir?".
"Não esperava outra coisa...". Dando passos para trás, os dois se afastaram, sem perder o contato visual, apenas para avançarem um contra o outro, espadas em riste, olhos furiosos.
Travaram uma luta ferrenha. Touya, por seus motivos de irmão e ciúmes de Sakura. Syaoran, pelo desejo de poder entrar logo no castelo, acabar com Susano e reencontrar sua Ying Fa. Estava preocupado pois nunca ficara por tanto tempo sem o falcão. Disposto a dar um basta naquela briga boba, deu um impulso mais forte para frente, rodando o pulso, fazendo a espada do príncipe girar junto com a sua e, como conseqüência, fazendo Touya perder o controle da arma. A espada caiu a alguns passos dos dois que se encaravam ferozmente.
"Touya!", ouviram uma voz chamar. "Touya, o que pensas que estás fazendo?!".
Fujitaka se aproximou, colocando-se entre o filho e o recém chegado. Olhava para Touya com uma aura de autoridade que fez o príncipe recuar. "Pai...".
"Não tinhas esse direito, Touya. Não te ensinei a desrespeitar os outros. Como ousas atacar este rapaz sem motivo algum?".
"Tenho todo o motivo do mundo, meu pai. Este é Syaoran Li".
O monarca virou-se para o guerreiro. "Tu és Li?".
"Sim, Majestade", falou Syaoran respeitosamente.
"Estávamos a tua espera... Desculpe-me pela recepção rude de meu filho... Espero que estejas bem...".
"Não vos preocupeis, Majestade... Estou bem... Quero apenas saber de meus amigos. Onde estão Yamazaki e os outros?".
"Estão lá dentro e estão bem...", disse Fujitaka, desviando o olhar, o que incomodou Syaoran.
"E Sakura?". O silêncio que os dois homens fizeram deixou Li ainda mais preocupado. "Onde está Sakura?".
Depois de uma pausa, que pareceu para o guerreiro terrivelmente longa e angustiante, Fujitaka falou. "Susano a levou".
* * *
Continua...
N/A: Oi, pessoal! Er... Hum... Eu sei que este capítulo demorou além da conta, minha culpa, assumo tudo e quero pedir desculpas a todos pelo atraso. Tive um problema de saúde e também problemas pessoais, que me tiraram a inspiração. Agora pra completar as aulas da faculdade começaram e uma boa parte do tempo que usava pra escrever, vou ter que usar pra estudar... ¬¬
Mas deixando de enrolação, este foi o capítulo 10. Quero dedicá-lo especialmente aos meus grandes amigos Felipe S. Kai e Kath Klein, que apesar de não conhecer pessoalmente, sinto uma grande afeição. Eles foram importantíssimos para mim neste período de 'entressafra', me ajudando, dando dicas de como continuar. Se este capítulo ficou pronto, foi graças ao auxílio deles.
Quero também mandar um beijão a todos que estão acompanhando a história e esperaram pacientemente por este capítulo. Um beijo à Naki, à Rô, à Miaka, à Yoruki, à Mel e a toda galerinha do AtualizaFanfics.
Um abração e até o próximo capítulo!
Andréa Meiouh
26/08/2003
