Respostas às reviews do capítulo anterior:
Fabi-Chan - Oiêêêêêêê, que saudade! Um capítulo bem longo pra você!
Mil Black - Olá, obrigada pela review. Estranho, SS/HP? Mas tem tantos bons autores dessa ship! Dê uma lida nas histórias de entlzab e Marck Evans, por exemplo. Espero que goste desta aqui.
Capítulo I
Um Ano Depois
Harry estava voltando ao Mundo Mágico Britânico após um ano viajando pela Europa. O afastamento fora a única forma que Harry encontrara para conseguir suportar a depressão que o invadira ao final da guerra.
A carnificina que dominara o período final da guerra marcara a todos de forma profunda. Não fora fácil perder Dumbledore, McGonagall, Bill Weasley. Mas o que mais deixara Harry abalado fora a batalha final: ele havia conseguido derrotar Voldemort, mas para isso Ron se colocara à sua frente no instante decisivo. Ron, seu melhor amigo, morrera para salvá-lo. Isso Harry não conseguira aceitar naquele momento, e ainda não conseguia.
Harry se sentira mal por deixar os amigos que haviam sobrevivido, mas o que poderia fazer por eles? Os Weasleys estavam mergulhados na dor da perda, e a presença do causador de uma das mortes não iria lhes facilitar em nada a situação. Hermione partira para a Bulgária com Viktor, que lutara na guerra do lado da Ordem. Remus havia desaparecido de cena. Hogwarts fora completamente destruída.
Quanto a Snape, Harry não tivera sequer coragem de encará-lo. O modo como Snape o rejeitara na véspera da batalha final o deixara arrasado. Também por isso Harry precisara se afastar. Teria sido doloroso demais rever Snape, e Harry não se sentia preparado para enfrentar essa possibilidade.
Tivera momentos agradáveis durante a viagem, vira lugares belos e interessantes, mas a dor não o abandonara. Nas três semanas em que estivera com Hermione e Viktor na Bulgária, tivera até um namorado, Anton, primo de Viktor. Anton havia sido compreensivo e amável, e um bom amante. Mas, aos poucos, a sensação de vazio se tornara forte demais, e Harry achara que já era hora de voltar e fazer alguma coisa dentro do Mundo Mágico. Não sabia bem o quê, na verdade, pois se especializara em ser o Menino Que Sobreviveu, e agora não havia mais função para ele.
No entanto, ao voltar a Hogsmeade e alugar um quarto em um hotel barato, descobrira que tudo mudara. Destroçado pela guerra, desiludido consigo mesmo e tendo perdido um quarto de sua população na guerra, o Mundo Mágico, sob a orientação do novo Ministro da Magia, Arthur Weasley, se aproximara — um pouco por necessidade, mas também em busca de novos recursos — do Mundo Muggle, e adotara, em grande parte, seu modo de vida. Em tese, a idéia parecia boa: reunir o melhor dos dois mundos. E até parecia estar dando certo. Mas Harry não conseguira se adaptar.
Com a destruição de Hogwarts, agora as crianças estudavam em escolas menores, em prédios comuns, espalhados pela cidade. Os antigos professores haviam-se aposentado e, sem eles, as tradições pareciam estar rapidamente se perdendo. Quadribol ainda era jogado, mas com novas regras para diminuir a violência em campo, e esportes Muggle como o futebol, o rugby e o golfe estavam se tornando populares entre os magos. A tecnologia Muggle invadia Hogsmeade, com seu brilho fugaz e seu insistente ruído: televisão, computadores, celulares...
Durante um mês Harry perambulou por Hogsmeade. Visitou alguns de seus colegas sobreviventes: Seamus estava casado e lecionando Feitiços em uma escola; Neville montara um Apotecário, onde vendia ervas, ingredientes para poções e poções sob encomenda. Todos pareciam, senão felizes, pelo menos acomodados. E Harry se sentia ainda mais deslocado do que na Europa.
Nenhuma notícia de Snape. Não que Harry perguntasse. Mas também não conseguia sufocar a vontade de saber o que era feito dele.
A saudade de Hogwarts era tanta que Harry resolveu ir até o local onde ficava o castelo. Não sentia vontade de visitar os cemitérios dos amigos mortos na guerra, mas visitar as ruínas de Hogwarts, de repente, lhe pareceu um modo adequado de velar pela memória dos amigos e de um tempo que se findara.
Pegou sua velha Firebolt, em memória aos velhos tempos. Tinha uma vassoura de último tipo, mas a Firebolt, que lhe fora dada por Sirius, ainda era sua preferida.
Depois de vários minutos sobrevoando os campos e florestas verdes da Escócia — era final de primavera — Harry avistou ao longe a alta montanha em cujo topo deveria assentar-se o castelo de Hogwarts e suas torres. O lago negro ainda banhava o despenhadeiro, mas no alto da montanha via-se apenas pedras esparsas.
Harry aproximou-se, sobrevoando os campos negros, e ultrapassou o que antes eram os altos portões de Hogwarts, os javalis alados tombados ao solo, em pedaços.
Do outro lado do lado, o Salgueiro Lutador ainda espalhava seus galhos para todos os lados, orgulhosamente. Era como rever um velho amigo.
A Floresta Proibida continuava ali ao lado, exatamente como antes, sólida e impenetrável.
Harry sentiu o coração apertado ao não ver nada no local onde antes ficava a cabana de Hagrid. Seu bom amigo havia sido uma das vítimas da guerra. Mais tarde ele passaria por ali, mas queria primeiro ir ao local onde antes ficava o castelo.
Não havia nada além de pedras jogadas para todos os lados. Harry apontou a vassoura para baixo e aterrizou entre as pedras.
Nada. Absolutamente nada além de pedras. Harry largou a vassoura apoiada a um bloco de pedra negra. Ali ficava outrora o saguão de entrada principal. À direita, o Grande Salão, com a mesa das quatro casas. À esquerda, as salas de aula do térreo. À sua frente, as escadas para o primeiro andar, para as masmorras e para as cozinhas e o Salão Comunal dos Hufflepuff.
A seu lado, Harry avistou um pedaço de uma das duas armaduras que guardavam a entrada. Abaixou-se para recolher o fragmento. Quando se ergueu, segurando o fragmento nas mãos, sentiu uma presença atrás de si e, sacando instintivamente da varinha, preparou-se para se virar.
— Sr. Potter.
Harry quase desmaiou de susto. Mas ao virar-se e reconhecer a figura esguia e taciturna do mestre de Poções, em seus eternos trajes negros, sentiu um frio no estômago.
— Snape!
O impulso de Harry foi de abraçá-lo, mas não, aquele era Snape. Provavelmente ele o amaldiçoaria se tentasse encostar um dedo nele.
— A que devo o duvidoso prazer de sua visita? — perguntou Snape, erguendo uma sobrancelha.
— Prazer em vê-lo, professor — disse Harry, baixando a varinha.
— Não sou mais seu professor. Pelo menos desse infortúnio não sofro mais. — O tom pretendia ser aborrecido, mas havia um toque de expectativa, talvez até nervosismo, na voz de Snape.
— Er... Como assim, "visita"? A não ser que eu tenha me transformado em um Muggle e não consiga enxergar o Castelo, isso aqui é só um monte de ruínas!
— Mais uma vez, Potter, está tirando conclusões precipitadas.
— Como assim?
Snape parecia indeciso. Então deu o seu giro característico, sem dizer nada a Harry, e voltou as costas a ele. Brandindo a varinha, Snape murmurou encantamentos em voz baixa. Harry se aproximou, e viu um buraco se abrir no solo. Harry chegou junto ao buraco e viu uma escada.
— A escada... para as masmorras! — Harry olhou para o ex-professor. — Você... mora lá embaixo?
Snape começou a descer as escadas.
— Siga-me. — Então ele se voltou de súbito, alguns degraus abaixo. — Pegue a sua vassoura. Como o local não é mais habitado, algumas criaturas da Floresta já estão começando a se aventurar por aqui. Não é seguro.
Harry voltou para pegar a Firebolt e então desceu as escadas atrás de Snape. O escuro era quase total.
— Lumos! — disse Severus, ainda na escada, e a ponta de sua varinha se acendeu.
Harry. Era difícil acreditar que Harry estivesse ali. Era difícil acreditar que alguém estivesse ali. Há um ano, desde o fim da guerra, Snape morara ali, e ninguém aparecera lá. Com a exceção de Dobby, claro. Mas Dobby era um elfo-doméstico, não um ser humano.
Não que Severus preferisse seres humanos.
Harry. Como ousava voltar, depois de... Mas não. Ele não voltara por causa dele. Ele nem sequer sabia que Severus morava ali. Severus precisava se controlar.
Ao chegar ao pé da escada, virou-se para trás e viu Harry com um ar espantado. O Barão Sangrento acabava de passar por ali.
— Venha, Potter. Não me diga que tem medo de fantasmas.
Harry continuou olhando para ele, boquiaberto. Severus o conduziu pelos corredores, abrindo uma a uma as portas das salas para que Harry as visse. Ao chegar diante da porta oculta, Severus parou e disse:
— Nobreza de Propósitos!
A porta se abriu. Severus segurou-a e fez um leve gesto de cabeça para que Harry entrasse.
Era a Sala Comunal de Slytherin, com seu teto baixo e iluminação esverdeada.
— Mas... está tudo intacto!
— As mesmas salas cavernosas e geladas, você quer dizer.
— Oh, eu não me importo. Pela primeira vez desde que voltei para o Reino Unido eu me sinto em casa.
Severus arregalou os olhos para seu antigo aluno. Que se transformara em um homem bastante atraente, por sinal. Não ficara mais alto do que a última vez que o vira, mas os músculos haviam se tornado mais definidos e a pele ganhara um pouco de cor. De todas as coisas absurdas que Harry poderia lhe dizer, aquela fora a mais inesperada. Chamar as masmorras e, especialmente, a Sala Comunal de Slytherin de lar!
— Venha, Potter. Vou levá-lo ao meu escritório.
Harry sorriu, e algo pareceu acender-se dentro de Severus. Não era possível. Poucos minutos na companhia de Harry e sua vida já estava entrando em parafuso. Com certeza era o fato de não ter companhia humana há muito tempo.
Severus abriu a porta do escritório e, mais uma vez, ficou de lado para dar passagem a Harry.
— Entre.
Harry parecia maravilhado com os mesmos potes que antes o faziam torcer o nariz em repulsa. Devia ter enlouquecido de vez. Não poderia haver outra explicação. Ele parecia feliz agora, ao contrário de quando Severus o avistara de longe, remexendo nas pedras do castelo. Naquele momento, Severus o achara tão tristonho que cedera ao impulso de ir falar com ele.
— Que bom que tudo isso foi preservado.
— Sente-se. — Severus conduziu-o a uma ala mais íntima, onde havia uma lareira, e indicou-lhe o sofá. — Quer beber alguma coisa? Não tenho suco de abóbora, mas creio que posso arranjar-lhe algo mais... consistente.
Harry sentou-se.
— Como você sobrevive aqui? De onde vem sua comida, por exemplo?
— Responderei às suas perguntas mais tarde, assim que puder me servir de um drinque. Creio que tenho uma garrafa de Firewhisky guardada...
— Oh, eu adoraria um copo de Firewhisky também.
Um ano atrás, não poderia servir Firewhisky a Harry. Será que o garoto sabia beber? Em todo o caso, Severus iria servir-lhe algum petisco junto. Torradas com... pasta de arenque. Abriu o armário, retirou tudo o que precisava. Conjurou uma pedrinha de gelo em cada copo e levou tudo em uma bandeja até a mesinha de chá, ao lado do sofá onde Harry estava sentado.
Copo na mão, Severus sentou-se em uma poltrona diante de Harry e deu um primeiro gole, sentindo a bebida descer pelo esôfago e aquecer-lhe as entranhas.
— E então, Potter, o que veio fazer neste local abandonado e sem nenhum interesse para o Mundo Mágico? — perguntou Severus, com amargo sarcasmo.
Harry passou a mão sobre os cabelos — que continuavam rebeldes, embora agora fossem mais compridos e... sedosos.
— Nem sei... Tudo mudou muito depois da guerra. Passei um mês em Hogsmeade e não consegui, sei lá, me encaixar naquilo.
Severus mexeu o copo devagar com a longa colher bailarina.
— O mundo em que vivíamos acabou. Agora estamos nos adaptando ao mundo Muggle. Triste ironia, pensar que arrisquei minha vida para isso.
Harry suspirou, seu rosto adquirindo uma expressão de dor.
— Tínhamos de lutar, não é? Se Voldemort...
— Eu sei — disse Severus, com impaciência. — Não estou questionando isso. Mas o resultado, infelizmente, é o que vemos.
— Foi a guerra. Não havia outra alternativa, tínhamos de lutar, mas foi muito penoso, e isso mudou as pessoas.
— E nem todos puderam ir viajar pelo mundo para esquecer suas dores — despejou Severus.
Harry franziu o cenho, e largou o copo bruscamente.
— Por um instante eu esqueci com quem estava falando. Você ainda me odeia, não é? Sempre me odiou. Mesmo quando combatia a meu lado.
Severus sentiu o sangue ferver em suas veias.
— Não seja pretensioso. O mundo não gira a seu redor.
Harry se levantou.
— Você sempre me disse isso, e sem motivo algum. Continua errado a meu respeito, Snape. Acho melhor eu ir embora. Não devia ter vindo aqui. Em todo o caso, foi bom ter... — a voz de Harry falhou.
Severus se ergueu, sem saber o que fazer. Não queria que Harry se fosse. Não devia ter dito o que dissera; deixara-se dominar por algo que pensara haver superado há muito tempo. Quando Harry fora embora, Severus sentira algo se quebrar dentro de si. Tolamente, esperara, no fundo, que Harry o procurasse ao final da guerra.
Não queria ter-se traído dizendo aquilo, mas também não iria pedir desculpas. Severus o segurou pelos ombros. Ele ainda parecia tão frágil, como se pudesse quebrar em suas mãos. Mesmo sendo o mago mais poderoso do universo.
— Sente-se, Potter, não seja tolo. — Severus agradeceu a Merlin por Harry tê-lo obedecido. Harry fitava-o de um jeito estranho, magoado e impotente. Severus invocou todos os seus poderes de dissimulação para esconder o quanto estava perturbado. Afastou-se de Harry e sentou-se à poltrona outra vez. Seus olhos se encontraram, e Severus pegou o copo, colocando-o à sua frente, como proteção. — Eu me refugiei aqui após a guerra. Quando todos foram embora, voltei. Eu não tinha para onde ir, e imaginei que as masmorras houvessem resistido: coloquei proteções muito fortes aqui, e sempre é mais difícil destruir o que está sob a terra. Queria ficar longe de toda aquela palhaçada do Ministério, de medalhas e comemorações. Não havia nada a comemorar. Só destruição. Depois... preferi ficar aqui.
Havia um brilho cristalino nos olhos verdes que o fitavam, mas Severus não queria a piedade de Harry.
— E como você sobrevive..
— Eu preparo poções para um Apotecário em Hogmeade.
A compreensão se estampou nas feições de Harry, para o desalento de Severus.
— Neville!
— Sim, Longbottom.
Harry teve a ousadia de sorrir.
— Ah, entendo, você deve achar humilhante que ele seja a sua fonte de recursos, depois de tudo...
— De modo algum. Não é nada humilhante. Ele só conseguiu prosperar em seus negócios devido às minhas poções.
— Eu estive visitando-o. Ele não me contou nada sobre você.
— Eu lhe exigi segredo.
— E ele ainda deve morrer de medo de você!
Severus deu um longo gole, enquanto observava Harry com cuidado.
— Aquele elfo-doméstico que você libertou trabalha para ele.
— Dobby, eu sei!
— É ele que vem buscar as poções aqui e me trazer o pagamento.
— Você não sai nunca daqui?
— De vez em quando preciso ir a Hogsmeade comprar ingredientes para poções, alimentos e outros itens de consumo diário que não posso produzir aqui. Mas grande parte do que eu preciso vem das estufas e da horta e da criação de galinhas de Hagrid.
Severus amaldiçoou-se por ter mencionado o nome do gigante, pois Harry pareceu ficar ainda mais desolado. Viu-o baixar a cabeça, passar a mão pelos cabelos outra vez e então erguer os olhos.
— Estufas? Não foi tudo destruído?
— Eu reconstruí.
Harry assentiu, e tomou um gole de Firewhisky. Então pegou uma torrada.
— E essa pasta de arenque?
— Veio de Hogsmeade, naturalmente. As torradas também. Em geral eu compro torradas em vez de pão, porque elas duram mais.
Harry estava olhando fixo para ele. Severus começou a se sentir estranho, desconfortável. Há muito tempo não conversava com ninguém. Quando ia a Hogsmeade, só trocava monossílabos com os atendentes e caixas de lojas. E era só. Depois de todo aquele tempo, tinha de ser justo Harry a pessoa a aparecer?
Severus esvaziou o copo e levantou-se para encher ambos os copos. Precisava do Firewhisky para se sentir mais seguro. Nunca soubera puxar conversa fiada. Por alguma razão, achava que iria precisar fazê-lo, se — por uma razão ainda mais obscura — queria que Harry ficasse ali por mais tempo.
— Como foram as suas viagens?
— Oh... Vi muitos lugares diferentes, interessantes. Passei pela Holanda, Alemanha, França, Itália, Espanha, Grécia... depois fui para a Bulgária. Eu me senti muito livre e... sozinho. A não ser na Bulgária, onde fiquei com Hermione e Viktor, mas... de certa forma continuei sozinho.
Harry havia respondido, de certa forma, a pergunta que Severus nunca teria coragem de lhe fazer. A chama de uma esperança teimou em brilhar no íntimo de Severus. Ele tentou esmagá-la com botas ferradas. Esperanças nunca lhe haviam servido para nada.
— Então sua amiga Granger se casou com Krum. Um rapaz valoroso. Você chegou a visitar Durmstrang?
Sim, Harry havia visitado Durmstrang, e o assunto rendeu alguns minutos de conversa sobre o trabalho de Granger como professora de Feitiços e Krum como instrutor de Quadribol, e como as Artes das Trevas eram lecionadas lá. Entre mais copos de Firewhisky e torradinhas, Harry contou que ele havia sido convidado a lecionar lá, e declinara. No entanto, com o Mundo Mágico Britânico mudado daquela forma, a opção agora até parecia atraente.
O Firewhisky exercia seus efeitos, e Severus de vez em quando se pegava devorando Harry com os olhos.
— Você não vai se dar bem em Durmstrang... As pessoas lá são... muito interesseiras e oportunistas.
— Calculistas e ambiciosas, como os Slytherins?
— De certa forma, mas os Slytherins têm mais espírito de hierarquia e união. Dez pontos a menos para Gryffindor por ofender a minha Casa.
A risada cristalina de Harry se fez ouvir, e Severus sentiu os cantos dos seus lábios se repuxarem para cima, ativando músculos tão enferrujados que chegavam a doer.
— Mas ser "calculista" e "ambicioso" não é um defeito. Não ofendi sua Casa.
— Vindo de um Gryffindor, só pode ser uma ofensa.
— Oh, entendo. Você continua sendo parcial.
— Não foram só as masmorras que permaneceram intactas.
Mas era mentira. Como Severus podia ter permanecido o mesmo, se todo o seu mundo desmoronara? Aquilo era, de certa forma, apenas um papel que ele representava para Harry. Era um papel que sabia de cor e, por isso, era o mais fácil de adotar.
Harry estava olhando fixo para ele de novo.
— Eu senti saudades.
Um calor abrasante se espalhou por todo o corpo de Severus. Não podia se entregar àquilo. Talvez se reunisse toda a raiva que acumulara dentro de si conseguisse sobreviver àquele momento. Então Harry também ficaria furioso, e iria embora, mas era assim que acabaria sendo, não era? No entanto, justo quando mais precisava dela, a raiva lhe falhava. O máximo que Severus conseguiu fazer foi não dizer nada e continuar sustentando o olhar insistente de Harry.
— Acho... que é melhor eu ir. Já é tarde, não? — Harry olhou para seu relógio de pulso. — Meu Deus, já são nove horas! Esqueci da hora.
Como que acordando de um sonho, mas não completamente, Severus enfim reagiu.
— Não pode voltar de vassoura a esta hora, depois de todos esses copos de Firewhisky. Você vai passar a noite aqui. — Suas próprias palavras o surpreenderam, no entanto. O que estava fazendo, convidando Harry para passar a noite em seus aposentos?
Harry afundou no sofá, com um ar sonolento.
— Se você não se importa...
— Há mais outro quarto nas masmorras, mas está abandonado há uns dez anos, pois nenhum professor jamais quis dormir aqui. Eles acham muito frio e úmido. Esse quarto... está cheio de fadas-mordentes e bandinhos. Precisaríamos limpá-lo primeiro.
— Er... esse sofá aqui parece ótimo.
O coração de Severus disparou outra vez. Deveria oferecer... sua cama a Harry? Não, não deveria nem pensar nessas duas palavras na mesma frase.
— Como quiser. Você... não quer jantar?
— Oh não, eu bebi demais. Acho que já vou dormir, se não se importa.
— Eu vou buscar roupa de cama para você.
Severus se levantou e foi para o seu quarto. Abriu o guarda-roupas e, dentro dele, uma gaveta. Retirou lençóis e fronha, e colocou-os sobre sua cama. Pegou um cobertor azul felpudo e um travesseiro em uma prateleira no alto. Tentou pensar no que mais Harry poderia precisar. Uma camisola. Severus não estava acreditando naquilo tudo. Não podia estar acontecendo. Abriu outra gaveta e suspirou. Todas eram cinza, e velhas. Azar. Harry teria de se contentar com o que ele possuía. Não iria ficar enfeitiçando uma simples camisola para parecer o que não era. Decidido, abriu outra gaveta e retirou uma toalha vermelha. Tentando não pensar muito na imagem de Harry nu enrolado nela — porque a próxima imagem poderia ser ainda mais perigosa —, Severus empilhou tudo e voltou ao escritório.
Harry estava em pé, olhando para os potes nas prateleiras, e se voltou para Severus assim que este entrou no escritório. Severus largou a pilha sobre o sofá.
— Há um lavabo do outro lado da sala. Empurre para o lado aquela estante que está à sua direita; atrás há uma porta.
— Certo.
— Se quiser tomar um banho, no entanto, terá de passar pelo meu quarto.
— Nã-não. Talvez amanhã de manhã, se você não se importar. Agora... eu queria mesmo era dormir.
— Eu trouxe lençóis e cobertor. A camisola vai ficar um pouco comprida e...
Harry se aproximou, e tocou-lhe o ombro.
— Obrigado.
— Eu, er... — Severus mal conseguia falar. Não devia ter bebido tanto, pensou. Afastou-se bruscamente, foi até uma prateleira e agarrou um frasco. Pegou dois copos pequenos, encheu-o com água saída de uma gárgula na parede e pingou algumas gotas do líquido contido no frasco. Depois estendeu um copo a Harry. — Tome isso e não terá ressaca amanhã.
Harry deu um sorriso torto, pegou o copo e olhou para o líquido com desconfiança.
— Não tem gosto de nada, vá em frente — insistiu Severus, esvaziando seu próprio copo.
Finalmente, Harry bebeu. Então Severus recolheu todos os copos e começou a lavá-los.
— Não quer que eu o ajude? — perguntou Harry.
— Não precisa. Vá dormir.
Harry deu de ombros e foi para o lavabo levando a camisola consigo. Alguns minutos depois, a porta se entreabriu e Harry colocou a cabeça para fora.
— Er, tem alguma coisa aqui que eu possa transfigurar em uma escova de dentes?
Severus pensou um pouco e olhou para a sua mesa de trabalho, onde alguns ingredientes estavam espalhados, esperando serem armazenados. A chegada de Harry perturbara a ordem habitual do local. Entre os ingredientes, havia alguns ramos de acônito, com belas flores azuis. Severus pegou um ramo e levou-o até Harry.
Seus olhos se encontraram e, por um instante, Severus achou que Harry fosse abraçá-lo, como naquela noite, um ano atrás. Mas não. Severus acordou do transe e recuou. Harry voltou ao banheiro e fechou a porta.
Severus lavou o último copo e foi refugiar-se em seu quarto.
Harry acordou se sentindo curiosamente bem e confortável. A camisola e os cobertores de Snape... Oh, sim. Estava na sala de Snape. Com a camisola de Snape. Esse pensamento começou a perturbar o seu conforto, já que seu pênis ameaçava reagir de um modo absolutamente imprudente à situação. Não, não podia deixar que isso acontecesse.
Levantou-se e foi para o lavabo, onde encontrou a escova novamente transformada em ramo de acônito. Harry sorriu ao se lembrar de Snape lhe dando uma flor — uma das imagens mais surreais de sua vida. Teria sido aquilo uma cantada, dar-lhe um ramo de lindas flores... venenosas? Snape era tão indecifrável...
Não podia ficar muito tempo mais ali. Aquilo estava começando a enredar-se ao redor de seu corpo e de sua alma como Visgos do Diabo. E quanto mais tentava se libertar, mais Harry se enredava.Tinha de dar um jeito naquilo, e logo.
Quando saiu do banheiro, no entanto, encontrou Snape arrumando a mesa para o café da manhã. Faminto, Harry aceitou o convite e se sentou.
Chá da melhor qualidade, torradas, manteiga, geléia e um bolo inglês. Até que Snape conseguia se virar muito bem sozinho.
— Obrigado pelo café, estava ótimo. Agora é melhor eu ir. Você deve ter trabalhos a fazer, não quero atrapalhá-lo.
Severus assentiu e engoliu em seco. Harry ia embora. A vida voltaria a ser sem graça e incolor. Tentava se convencer de que tudo estaria bem, porque ele tinha o Castelo. O Castelo dava um sentido à sua vida.
Não adiantava engolir em seco. Aquele bolo que se formara em sua garganta não se dissolvia. Por que não conseguia odiar a Potter?
— Er, você está bem? — perguntou Harry.
Harry. Ele era Harry, e Severus o queria. Precisava fazer alguma coisa para segurá-lo ali.
— Eu estava pensando se lhe contava ou não.
— O quê?
— Venha comigo.
Severus conduziu Harry pelos corredores das masmorras e depois escada acima até chegarem ao ar livre. Então, diante das ruínas do Castelo, Severus olhou bem dentro dos olhos de Harry e falou:
— Eu estou reconstruindo o Castelo. Veja.
Severus viu a surpresa estampar-se nas feições do mago mais novo. Não devia ser nada corriqueiro ver paredes surgirem onde antes havia apenas pedras espalhadas sobre o solo.
— Pelas barbas de Merlin! O quê...
— Eu coloquei o Castelo sob Fidelius, e estou reconstruindo-o.
— Sozinho?
— Está vendo mais alguém por aqui, Potter?
— Mas você é louco!
Severus limitou-se a arquear uma sobrancelha. Harry tocou na parede em construção, um pouco abaixo de seu braço estendido. Acariciou as pedras, a emoção evidente em seu rosto.
— Você está usando somente as pedras que já eram do castelo? — perguntou Harry.
— Por enquanto, sim. Depois creio que terei de retirar pedras de alguma ruína antiga e levitá-las até aqui, porque não restaram muitos blocos inteiros. Como você vê, contudo, o miolo das paredes não é feito de pedra sólida, mas de uma argamassa que eu preparo a partir do entulho que sobrou do Castelo. Está vendo essas correntes aqui? São para segurar a massa. Eu preparo a massa naqueles grandes tonéis que você pode ver ali.
— Loucura!
Severus deu de ombros.
— "Sem a loucura, o que é o homem? Mais que a besta sadia, cadáver criado que procria?" — Harry parecia muito emocionado, e Severus aguardava, ansioso, pelo desfecho daquilo. — Gostaria... de me ajudar?
Harry meneou a cabeça, com um ar perplexo.
— Você não pode esconder isso do Ministério. Tem de pedir permissão.
Severus bufou.
— Eles não vão me dar permissão. Eu não sou figura simpática ao Ministério. Serei sempre o ex-Comensal da Morte para eles. Mas... se você quiser me ajudar, talvez possamos ganhar apoio. Afinal, sempre me disseram que o Ministro o considera como um filho.
— Não sei, não. O filho dele... morreu por minha causa. Ele seria a última pessoa a quem eu gostaria de pedir alguma coisa. Talvez você esteja certo, e seja melhor fazermos isso em surdina.
Fazermos. A esperança tremeluziu na alma de Severus.
— Você não teve culpa na morte de Ron Weasley. Você não tinha como saber que ele faria o que fez.
— Não vamos falar nisso, sim?
Severus tentou ler-lhe a expressão. Havia muita dor ali, e Severus sabia reconhecer culpa quando a via. Mas aquele não era o momento para falar naquilo.
— Quando o Castelo estiver reconstruído, será fato consumado. Com o seu apoio, podemos conseguir bons professores, e ao menos alguns pais enviarão suas crianças para cá — disse Severus.
— Mas quanto tempo você calcula que levará? Para duas pessoas erguerem um Castelo imenso como era este?
— Dois magos, Potter. Dois dos magos mais hábeis no Mundo Mágico.
— Convencido, você! — brincou Harry. — Quanto tempo?
— Cerca de dez meses, creio.
— Não é tanto assim.
— Aceita?
— Trabalhar com você na reconstrução do Castelo? Mas... eu teria de morar aqui.
— Podemos limpar aquele dormitório nas masmorras de que lhe falei, ou tentar desobstruir a entrada para as masmorras onde ficavam os dormitórios de Hufflepuff e recuperá-los. Mas se não quiser ficar nas masmorras, podemos encontrar outro lugar.
Harry ficou pensativo por alguns instantes.
— Eu vou ter de pensar a respeito de tudo isso. Não posso decidir assim, às pressas. Vou voltar ao meu hotel. Como não tenho corujas, vou ter de descobrir uma forma de lhe enviar uma mensagem informando-lhe minha decisão.
Uma sombra de tristeza passou pelas feições do mago mais novo. Severus se perguntou se seria por causa de sua coruja, desaparecida junto com todas as corujas do castelo. O garoto era muito apegado àquela coruja branca. Severus também sentia falta de sua coruja, Styx, uma imponente coruja-águia. Ela era discreta, e nunca lhe desobedecia. Até aquele momento, no entanto, Severus não tivera necessidade de corujas. A única pessoa com quem precisava se comunicar era Longbottom. O flu era suficiente para comunicações verbais, e Dobby dava conta do transporte de objetos. Apesar da destruição do Castelo, a maioria dos encantos que protegiam o local continuavam em pleno vigor. Ainda não era possível aparatar em Hogwarts.
— Muito bem, Potter. Aguardarei sua decisão.
continua...
