N.A 1= Primeiro capítulo inédito da fase Saara! É isso aí, muiegada. No fim das contas eu acabei embromando tanto, mas tanto, que deixei muita coisa de fora. A própria história de Kione e Siloé ficou meio "dã", tipo... eu queria contá-la com maiores detalhes, mas, enfim, já estava estourando o limite de páginas. Ia contar como eu realmente concebi a coisa toda. E tinha também um divertido duelo entre Draco e Rony, tinha feito o gancho e tudo, mas acabei o capítulo e falei "Ih, caceta! Esqueci da melhor parte!" Bom, voltei e encaixei ele. Me empolguei pra variar e excedi um pouco o tamanho da coisa. Não quero nem imaginar quando chegar a invasão de Theron. É, sou um caso perdido mesmo.
N.A 2= Ah, pela primeira vez aparece a expressão habib e habiba. Habib é um adjetivo carinhoso, usado entre pais, casais, pessoas que se gostam. Pode significar amor, querido, esse tipo de adjetivo. Habib é o masculino, habiba, feminino. Mas cuidado ao chamar os outros de habib ou habiba, você pode levar um soco de quem não entender pitombas do que significa. EdD também é cultura, hehehehe...
ESPADA DOS
DEUSES
EPISÓDIO III: SAARA
--Capítulo
33—
Proibido
Os estrangeiros tomavam café tranqüilamente no salão, agora sem sinal da grande festa da noite anterior. Moredin chegou no meio da refeição, arrumando a calça e sentando-se à mesa junto dos outros.
- Então... quais os planos dos clientes amigos de Moredin? – perguntou o homem, colocando a camisa por dentro da calça e arrumando a jaqueta de retalhos de couro bordado por cima. – Vão até as ruínas atrás do Templo Perdido?
- Hum... – pensou Lupin, bebendo chá frio. – Não.
Moredin pareceu incomodado. Esperava que os bruxos fossem logo atrás do Templo. Lupin continuou falando, enquanto esticava o copo para Kione, que lhe servia mais bebida.
- Iremos outro dia. Amanhã, talvez. Ficaremos por hoje estudando e treinando os garotos. Não temos pressa.
- Se o Templo até hoje não saiu de lá... – sorriu Sirius. – não vai ser agora que vai fugir.
O mercador ergueu as sobrancelhas aparentemente enojado:
- Sabem as histórias por trás desse tal Templo?
- ...Espada dos Deuses? – adiantou-se Sirius. – Sim, estamos atrás dela, como já lhe foi esclarecido.
- Não. – disse o homem, indiferente. - A Lenda de Theron.
Kione parou abruptamente de servir e engoliu em seco, como se Moredin a tivesse ameaçado. Snape notou a reação da garota e ergueu os olhos para Moredin:
- E o que diz essa tal "lenda"?
O homem olhou-os todos e sorriu:
- Theron, a Cidade dos Deuses. Uma cidade mágica, lendária, que cerca o castelo de Theron. É uma cidade perdida no tempo. Escondida nas areias do deserto.
- Hum... – murmurou Sirius. - Quer dizer... vocês acham que o Templo Sagrado era uma cidade destruída?
- Não. – rosnou Moredin. – Theron ainda existe. É uma cidade que some e aparece no tempo, no espaço, a qualquer tempo, em qualquer lugar. É o reino mais rico de todo o mundo. Possui tesouros que sequer estão em nossos sonhos. O palácio real é feito de puro marfim, mármore e ouro. Não há cidade mais esplêndida e exuberante que Theron. Não há local tão cobiçado. À exceção do Paraíso, talvez. – em seguida ele riu e recostou-se nas almofadas. – Ainda terei Theron para mim. Mas, antes disso, temos que eliminar alguns nojentos escorpiões pretos que a guardam.
Snape balançou a cabeça, suspirando. Gina perguntou, torcendo o nariz:
- ...Escorpiões? Que tipo de escorpiões podem impedir alguém como você de tomar essa tal cidade?
Moredin fitou Gina com um olhar muito irritante, exibindo os dentes de ouro:
- São os guardiões de Theron, os Templários. Bruxos poderosos, guerreiros sanguinários que destroem todo e qualquer um que tente se aproximar.
- Ah...
Lupin percebeu que Kione ficou ainda mais apreensiva, e ele desconfiou porquê. Moredin, como um perigoso contrabandista, provavelmente já havia tentado encontrar Theron, e provavelmente também tinha arranjado uma certa inimizade com os tais guerreiros. Isso, é claro, se toda a ladainha fosse verdadeira.
- Então... creio eu que o senhor Moredin Ali já tenha... encontrado algum desses tais guerreiros... eventualmente.
Moredin o olhou profundamente.
- Esses malditos Templários são os únicos incômodos de meus negócios.
- Bom... então deixa eu ver se entendi... – começou Sirius, limpando a boca com um guardanapo vermelho. – Nós estamos atrás das Espadas Mágicas, que, como você sugere, não estão no Templo Sagrado, e sim, nessa tal cidade de Theron... Ou seja... para conseguir a Espada... nós teríamos de enfrentar esses Templários, e, claro, vencê-los... isso deixaria as espadas mágicas em nosso poder...
- ...e o caminho livre para você saquear Theron à vontade. – concluiu Snape, entre os dentes, com um olhar desconfiado e braços cruzados.
Moredin o olhou espantado, para em seguida fingir uma risadinha:
- Oh, não, não leve para este lado, senhor Severo... Moredin não quer colocar a segurança dos clientes em perigo. Seria apenas uma... feliz coincidência...
- Porquê alguma coisa me diz que você quer é nos usar, já que não tem um pingo de competência para conquistar Theron? – disparou Malfoy, de braços cruzados e mau humor.
A mesa silenciou. Rony e Gina olharam Malfoy com um misto de espanto e admiração. Sirius ergueu as mãos imediatamente:
- Esqueça o que este idiota disse, senhor Ali. Ele apenas...
- Não. Eu diria... – sorriu Moredin, olhando Draco sem piscar. – uma mão lava outra... e as duas lavam o rosto.
- Faz sentido. – suspirou Lupin. – Você sabe onde é a ruína do Templo, mas não sabe como entrar. Nós podemos entrar e abrir caminho. No fim, repartimos os prêmios.
- Isso mesmo. – sorriu abertamente Moredin. – Vocês levam as espadas... eu levo as riquezas.
- Porque insiste tanto em juntar dinheiro? – perguntou Rony, indignado. – Você não acha que já tem muito? Olhe só essa casa... as empregadas, tudo isso... Não tá bom não?
- Nada se compara ao preço da glória, rapaz. Um dia você entenderá.
- Acho que não... – resmungou Rony. – Mas se você diz...
Moredin respirou fundo, olhando Rony ser servido por Kione e murmurou, seco:
- O ouro compra tudo, rapaz.
- Você acha... – começou Rony, fitando Kione, que até então só olhava o chão. – que tudo nessa vida tem um preço?
Nisso a garota ergueu o rosto, e sem querer trocou um longo olhar com o rapaz. Moredin suspirou e chupou ruidosamente o dente de ouro:
- Tenho certeza. Tudo nesse mundo tem um preço. Tudo pode ser comprado. Nada escapa. Com ouro suficiente, você pode ter tudo que quiser.
Rony, ainda visivelmente parado no olhar de Kione, disse, sem medo algum:
- Quer saber...? Tem coisas que o dinheiro não compra não.
Imediatamente a escrava desviou o olhar e se afastou. Snape deu um risinho abafado:
- Moredin é um homem esclarecido, Weasley. Ele sabe disso.
O comerciante prendeu a respiração e ficou olhando Snape. Sirius tossiu para mudar de assunto, mas Moredin foi mais rápido, chamando, ríspido, em voz alta:
- Sandokan! – nisso um dos homens que ficava como guarda nos portões se aproximou. – Busque minhas armas e minha túnica, sairemos em quinze minutos.
Moredin se ergueu, chamou Nura e lhe falou algumas palavras em árabe. Em seguida foi para fora da casa, mas não sem antes deixar de lançar um olhar fulminante para Kione, que entendeu o recado e seguiu o mestre.
Do lado de fora a comitiva de Moredin se preparava para, mais uma vez, partir.
- Muitos de meus rivais estão pela cidade. – comentou, amargo. – Achei que poderia ter paz com os estrangeiros, mas isso faz a caravana andar devagar. Não ficarei longe muito tempo, antes do sol nascer estarei de volta.
Kione, de cabeça baixa, sentia o coração bater acelerado. Alguma coisa a incomodava, e muito.
- Há notícias dos Templários. – continuava, apático – Eles não tardam a entrar em Morada do Sol e caçar impiedosamente os bruxos. E eu quero estar longe e deixá-los destruírem-se por completo. Será melhor. E você... fique e cuide de tudo.
Imediatamente Kione se agarrou à calça de Moredin e murmurou, com medo:
- Por favor, me leve junto!...
Moredin baixou os olhos para Kione, agarrada às suas vestes:
- Não me deixe aqui, meu senhor! Eu lhe imploro, por Alá, me leve junto!
O homem, sem piscar, lhe disse:
- Você fica.
A escrava mordeu a boca com força para não chorar:
- Por favor...
- Por que quer ir?
Silêncio
- Diga!
- ...não quero ficar perto dos estrangeiros.
- Por quê?
- ...Não me sinto bem, meu senhor, por favor, não me deixe perto deles...
- Eles... lhe incomodam? Lhe tratam mal?
Mais uma vez, silêncio
- Você não tem o direto de querer nada. Eu mando, você obedece. Ficará com eles.
- Por favor, meu senh...
- EU SEI O QUE ACONTECE, KIONE! – berrou. A escrava parou de choramingar. – NÃO SOU TOLO! NÃO SOU CEGO!
- ...Então... porque permite que eu fique?... Estou implorando para ficar perto do senhor...
- Você ficará na cidade. Não importa o que aconteça, você ficará servindo os estrangeiros. Agora volte para seu lugar.
- A culpa não é minha, meu senhor... – chorou Kione, passando a mão nos olhos.
- Assim como já aconteceu... não deixará de acontecer novamente. Isso é bom para lembrar-te qual é seu lugar. Não deixarei passar se acontecer de novo, mesmo que seja contra bruxos estrangeiros. Agora volte, que está atrapalhando minha partida.
Com um movimento brusco Moredin puxou as rédeas do cavalo e saiu seguido dos homens. Kione ficou parada no lugar, olhando o chão, sentindo os olhos se encherem de água. Porque aquilo estava começando de novo? Deu as costas e entrou na casa, respirando fundo e limpando os pensamentos. Sentou-se na mesa de madeira da cozinha, pôs as mãos na cabeça e ficou em silêncio. Nura chegou e a olhou, sem dizer nada, apenas com uma penosa expressão. Mas não conseguiu ficar indiferente ao ar que havia no lugar:
- Kione, meu anjo... Alá sabe o que é...
- Não, não sabe. – resmungou, com voz falha. Nura suspirou.
- Nada de ruim irá acontecer. Os deuses jamais permitiriam...
- Jamais? – rosnou Kione, baixo, erguendo os olhos. – Jamais?
Nura baixou os olhos e disse, amargurada:
- Teve que ser, e foi. Isso não quer dizer que...
- Sou escrava de Moredin, Nura. Isso já está bastante claro para mim há anos. Eu digo que irei morrer escrava dele e irei morrer escrava dele sim. Não vou deixar que tudo aconteça de novo.
Nura se aproximou e se agachou na frente dela, segurando suas mãos.
- Quero vê-la feliz, Kione. E não me importa o que tenha que acontecer. Só sei que não será sendo escrava de Moredin que encontrará a felicidade.
- Não existe outra possibilidade para mim além dessa, Nura. E, se eu só serei feliz longe dele, então jamais serei feliz.
- Não diga bobagens, habiba...
Kione respirou fundo, sentindo os olhos arderem de novo.
- Não pode temer seu próprio coração. Você é jovem, é natural que você...
- Porque isso não acontece com Moredin?! – berrou Kione, desabando a chorar, indignada. Nura a olhou piedosamente. – Se eu de repente tivesse o mínimo de sentimento por ele, nada disso me machucaria!
- Moredin Ali é seu dono por direito. Você é uma escrava. Mas, antes de tudo, é uma pessoa. É uma jovem como qualquer outra. Não pode impedir que o que aconteça com as outras meninas aconteça com você.
Kione apertou a cabeça entre as mãos. Nura passou os dedos pelos fios de cabelo que lhe escapavam da burca:
- Não tenha medo de amar, habiba. Não tenha receio de se apaixonar.
- Não quero. – gemeu Kione, apertando a cabeça com mais força e evitando de chorar. – Não posso. Se isso acontecer... Moredin fará de novo. Eu não suportaria isso novamente... eu não consigo, eu não posso...
Nessa hora Rony entrou inocentemente na cozinha, procurando ao redor. Kione deu um sobressalto e Nura se ergueu imediatamente. Ele não percebeu que a garota chorava, e perguntou, um pouco tímido:
- Ahm... bem... eu estou atrás de... um chá... eu acho que exagerei ontem – e começou a rir, encabulado. – Têm algum remédio por aí?
Nura o olhou longamente. Não entendia a língua dele. Kione respirou fundo, se ergueu e falou em árabe para Nura o que ele queria.
- Ah... – Nura sorriu. – Um instante.
Kione foi até o armário de ervas enquanto Nura enchia um bule de água e colocava para esquentar. Rony seguiu Kione com o olhar, distraído. Tentava visualizar por debaixo da burca tudo o que ela havia mostrado na noite anterior, mas estava difícil, era muita roupa para uma só pessoa. Deu um suspiro dolorido e sentou-se à mesa, passando a reparar os detalhes talhados nas pedras no alto das paredes. Pouco depois a escrava sentou-se, de lado, apoiando o braço na mesa, enquanto Nura esperava a água e a mistura de ervas ferver. Rony voltou a olhar Kione, e notou que ela parecia triste. Abriu a boca para dizer alguma coisa, mas a voz só saiu alguns segundos depois:
- Algum... problema, Kione?
Nura olhou por detrás do ombro, Kione prendeu a respiração. Rony continuou, tímido:
- Você parece... triste. Posso... ajudar?
- Não foi nada. – disparou Kione, com os olhos no chão, rezando para não voltar a chorar.
O estômago de Rony afundou e ele sentiu-se, de alguma forma, culpado por ela estar daquele jeito. A verdade é que não tinha sido muito agradável desde que havia chegado, e ver como ela era tratada por Moredin pesou na consciência dele. Sentiu os lábios secarem, sem saber ao certo o que poderia dizer; se fosse Gina, já estaria trocando um longo papo com ela, mas ele simplesmente não sabia como começar. Só tinha certeza que, de algum jeito, tinha que mostrar para a jovem que ele estaria ali para ajudá-la.
Kione sentiu como se um raio caísse em sua cabeça quando Rony colocou delicadamente suas mãos sobre a sua, que repousava na mesa. Seu coração deu um salto e começou a bater próximo da garganta, e só teve coragem de olhar para ele quando a voz do garoto saiu:
- ...Me desculpe.
Estava horrorizada demais para responder, mas, mesmo assim, não tinha forças para tirar sua mão debaixo da dele. Rony, visivelmente constrangido, continuava docemente tropeçando nas palavras:
- É que... desde que cheguei eu sempre tratei você meio mal... eu sempre implicava com seu jeito de ser. Me desculpe por tudo... Eu realmente não queria que nada de ruim acontecesse com você de novo. Eu entendi o que você sofre, o que você tem de passar, e eu prometo daqui pra frente ser mais legal e entender isso. Gostaria que você me desculpasse...
Kione, ainda em estado de choque, não sabia o que falar. Nura, um pouco apreensiva com a cena, colocou o copo e o bule na mesa, e lançou um significativo olhar para a jovem.
- Não... foi nada. – murmurou Kione, se erguendo e puxando a mão debaixo da de Rony. – Seu chá está pronto. Sirva-se. E... com licença.
Kione escapuliu rapidamente pela porta, quase esbarrando em Draco. Rony sentiu-se um pouco desapontado: será que tinha falado alguma besteira de novo? Mas a velha Nura apenas balançou a cabeça, claramente dizendo que não deveria ligar. Draco chegou sorrindo, e sentou-se de frente para Rony, também servindo-se do chá:
- Ótimo, um remédio para descer essa comida horrorosa.
- Que graça! – sorriu Rony, torto. – Ontem você comeu como um porco. Imagina se a comida fosse ruim.
- Antes segurar meus impulsos masculinos me ocupando da comida do que fazendo outra coisa, Weasley. Foi bem mais delicado de minha parte mastigar olhando aquelas beldades dançando do que fazer outra coisa.
Rony juntou as sobrancelhas:
- Você é um babaca nojento, Malfoy. Seu porco imundo.
Draco olhou Rony, que estava com raiva, e achou divertido. Riu, olhando o ruivo:
- ...Que é isso, Weasley... é natural na nossa idade. Você mesmo... acha que engana alguém?
- Que quer dizer?
Draco riu pelo nariz, virando o chá:
- Está mais do que na cara que você está encantado por essa escrava horrorosa.
Rony sentiu as orelhas queimarem;
- Que foi que você disse?
- Além de idiota é surdo? Estou dizendo que está apaixonadinho pela mulher do gordão. Mulher, lógico, ela é escrava, obviamente satisfaz os desejos nojentos dele.
Rony se ergueu e deu um tapa na mesa. Nura se assustou.
- Não fale da Kione desse jeito, seu loiro asqueroso! Ela não é escrava dele porque quer!
- Não fique bravo – sorriu, apoiando o queixo na mão. – Só estou fazendo uma piadinha. Deve até ser interessante ter uma escrava como ela. Imagine que privilégio, uma mulher tão exuberante, só sua, para dançar para você quando você bem entender... única e exclusivamente... só para você. Claro... dançar, nesse caso, é o de menos.
Rony se controlou para não fazer Malfoy engolir o bule fervente. Limitou-se a sair para o jardim, rosnando:
- Como você consegue ser tão... filho da puta?
- Não ofenda minha mãe, amante de trouxas e escravas!
- Vai se foder!
Rony saiu a passos duros, mas Malfoy riu, divertindo-se. Em seguida levantou-se e, ainda sorrindo, jogou o copo de cerâmica na parede, e olhou Nura:
- E, mulher... essa merda tem gosto de água suja, sabia, sua velha acabada?
Nura apenas seguiu o garoto com o olhar, sem entender uma palavra do que foi dito.
Do alto da varanda do seu quarto Kione observava o pôr do sol no horizonte de dunas, perdida em pensamentos, ainda sentindo o coração dolorosamente apertado. Penteava os longos cabelos e fazia uma trança sem pressa. Até descer os olhos rápido para um brusco movimento entre as folhas. Não viu nada, e balançou a cabeça, achando que não era nada além de um chacal atrás das galinhas que ciscavam pelo terreiro, e voltou a olhar o céu, fazendo sua trança. Ao fundo dos arbustos, agachado atrás de uma pequena construção de madeira feita paras as galinhas botarem ovos estava Rony, ofegante, suando, com a mão no peito. Estava treinando sozinho no terreno quando Kione parou no alto da casa para se distrair, e desde então ele forçava o olhar, tentando focalizar seu rosto descoberto. Difícil, mas mesmo assim ele parecia hipnotizado, de boca aberta. Até ela descer os olhos e ele se lançar desesperado na moita, fugindo do olhar dela.
- Quase ela me vê... que... que... idiota, eu! – murmurava Rony, ofegante. Esticou o olhar e ela ainda estava lá em cima. Não era seguro continuar ali.
Se jogou de joelhos e saiu engatinhando veloz pela terra empoeirada, como um calango assustado. Deu a volta pelos arbustos e deu de cara com alguém que usava uma par de botas de tecido duro, entrelaçado com tiras de couro. Ergueu o olhar e deu de cara com o sorrisinho idiota de Malfoy, que estava com as mãos na cintura:
- Ora, ora, se não é um asqueroso animal ruivo rastejando pelos jardins. Resolveu assumir sua natureza, Weasley?
Rony imediatamente se pôs de pé, olhando feio para Malfoy e segurando a espada que usava para treinar com força.
- Não torre meu saco, Malfoy. Não estou com paciência.
Draco sorriu:
- Ora... estava treinando? Que interessante... porque resolveu sair correndo? Treinando fuga? Batida em retirada?
- Batida quem vai levar é sua cara se não sair da frente.
Draco fez um 'hum' e avistou Kione, no terraço, alheia à briga na outra ponta do terreno. E aí aumentou o tamanho do sorriso:
- Rá! Tinha que ter a escrava no meio! Está explicado seu surto de covardia. Não que normalmente você seja corajoso, mas enfim... Todo mundo sabe que você morre de medo de aranhas, não é o... IAU!
Draco saltou e parou a dois metros de Rony, que tinha desferido um gancho com a mão direita com toda a força, e raspou o queixo de Malfoy.
- Está atrás de confusão, Malfoy? – rosnou Rony, com as orelhas picando de raiva. – Pois achou!
- Hum... que medo do moço... – alfinetou Malfoy, sentindo as ondas de calor saindo de Rony, furioso. – Bom... nada como animar um pouco essa viagem sacal, não, Weasley?
Draco tirou a espada da bainha que usava nos treinos e se posicionou, sorrindo desafiador.
- ...Lutaria comigo? – perguntou Rony, estreitando o olhar.
- ...O que você acha?
- Vou fritar sua bunda branca em dois segundos, seu nojento.
- Mal posso esperar, amiguinho de sangue-ruim.
Rony avançou sem receio, erguendo a espada com força. Draco saltou, segurando a sua arma com as duas mãos. Rony imediatamente segurou a base da espada com as duas mãos e desceu um golpe vertical com força. Malfoy posicionou-se e defendeu o golpe, contra-atacando. As espadas se chocaram e um estrondo sacudiu o lugar. No segundo seguinte os dois estavam a três metros do lugar do impacto, numa rápida esquiva.
Ao redor de Draco, as roupas que estavam no varal e os galhos dos arbustos estavam ardendo em labaredas, e, no chão, o sinal negro do fogo. Ao redor de Rony, os arbustos e as roupas estavam cobertos com uma fina e brilhante camada de gelo, assim como o chão.
- ...Fogo. – sorriu Draco.
- ...Gelo. – comentou Rony, apático.
- Vai ser muito fácil fazer você virar um Yeti, Weasley.
- Vai ser divertido torrar você até o osso, Malfoy.
Os dois mais uma vez atacaram, dessa vez um atingindo a espada do outro com a maior força possível, ricocheteando as energias pelo terreno inteiro. Até que Nura e Kione se aproximaram, assustadas com a confusão.
- Isso não me parece um treino... – murmurou Nura. Naquela hora Sirius e Lupin colocavam a cara para fora e saltavam, ligeiros, para, no segundo seguinte, separar os garotos.
- Ei, ei, ei! – gritava Sirius, segurando Rony. – O que vocês dois acham que estão fazendo?!
- Eu vou torrar a bunda desse babaca! – berrou Rony, ainda soltando fogo pelos poros, literalmente.
Gina, que chegava na hora, comentou:
- Poxa, vocês só me chamam agora que a festa acabou?
Lupin apenas mantinha a mão no peito de Draco, o afastando:
- Posso saber o que levou vocês dois a esse lindo showzinho? – resmungou Lupin.
- A culpa é desse loiro ensebado! – resmungou Rony, se livrando dos braços de Sirius e se acalmando.
- Culpa minha? – riu Draco, apontando Kione com a cabeça .– Culpa dessa escrava aí.
- Kione? – resmungou Sirius.
Kione se encolheu, envergonhada, sem saber o que acontecia direito.
- Ela mesma! – exclamou Draco. – Weasley está caidinho por essa daí, ao invés de treinar ficou babando olhando ela na janela, e ficou nervosinho só porque eu passei por perto para atrapalhar o lindo momento de admiração dele... E perder tempo olhando um aborto asqueroso escravo, onde já se viu!
- Cale a boca, seu idiota! – urrou Rony, com Sirius agarrando ele novamente, e precisando da ajuda de Lupin. – Limpe essa boca fedida e podre antes de falar de alguém como a Kione, seu monte de estrume!
Gina suspirou, empurrando o irmão:
- Rony... por favor... seja mais razoável... não perca seu tempo com alguém como Malfoy. Seja objetivo – em seguida ela virou-se para Draco, aos berros. - Vai tomar no meio do seu cú, seu filho da puta!! – e imediatamente virou-lhe três socos seguidos no meio da cara, nocauteando-o.
Kione se jogou de costas na cama, e pôs as mãos no rosto, apertando os olhos com força. Já era noite, a confusão tinha acabado, Malfoy, com o nariz inchado, já estava na cama, com um saco de gelo e ervas no nariz. Gina e Rony, apesar do safanão que levaram dos professores, tinham jantado e se recolhido. Os professores também. Kione havia se despedido de Nura há tempos, mas não estava com sono. Sua mente estava cada vez mais atrapalhada, seus sentimentos cada vez mais confusos. A razão disso se resumia ao seu passado. Ela, infelizmente, ainda se lembrava de Siloé, e do que significou aquele período para a sua vida.
Já haviam se passado quase dez anos, mas mesmo assim toda a história lhe veio clara na lembrança. Moredin esperava do lado de fora da casa sua nova caravana. Enquanto cumprimentava o líder deles, Tremal Naik, uma bela e jovem garota, que começava a deixar a infância, veio correndo de dentro da mansão, e se agarrou à cintura de Moredin. Ele colocou a mão sobre o cabelo preto e brilhante da sorridente garota e disse:
- Kione... comporte-se direito. Não quer me causar problemas diante dos meus novos companheiros, quer?
Kione olhou para o homem que descia do cavalo e sorriu, encabulada.
- Perdoe-me, senhor... – disse, inclinando-se respeitosamente.
- É uma bela serva, senhor Moredin. – sorriu o Tremal Naik – Vejo que ela tem a mesma idade de meu filho. Aposto que poderão ser bons amigos.
Enquanto isso da caravana saiu um garoto, da idade de Kione, magricela, carregando um grande malão nas costas e com o enorme turbante preto do pai na cabeça.
- Ei, Siloé! – riu Tremal Naik. – Deixe as bagagens para os homens fortes. Venha conhecer nossos novos companheiros.
O garoto tirou o turbante, revelando um rosto fino, com olhos pretos muito redondos e brilhantes, e um cabelo também preto, colado ao rosto suado. Tinha uma hilária ameaça de bigode, no rosto moreno de sol, típico dos mais jovens. Ele pareceu ofendido:
- Pai, sou um homem forte! – e em seguida olhou Moredin e Kione, sorrindo. – Ah... muito prazer, sou Siloé, O Escolhido.
- Não liguem – riu o pai. –, ele acha ótimo ter esse nome bíblico dado por um parente católico. Você devia saber, Siloé, Kione significa Rainha do Nilo. Mais importante que "O Escolhido". Você foi escolhido. Escolhido para amarrar meu cavalo. Vá logo, garoto.
O pai entregou as rédeas para o filho e entrou, rindo, junto de Moredin. Kione, ainda agarrada em Moredin, entrou, sem tirar os olhos do novo amigo.
Os dois garotos se tornaram amigos rapidamente, e não se desgrudavam. O comerciante reparou na afinidade e passou a incomodar-se com ela. Os homens de Moredin começavam a comentar que Kione estava tornando-se uma moça muito bonita, e ainda não precisava usar a burca, ajudando a atiçar o interesse dos homens.
- Onde está Kione? – perguntou Moredin, azedo, para Nura, na cozinha.
- Foi às compras com Siloé... não deve demorar.
- ...Não a quero mais perto desse garoto. – rosnou Moredin. – Kione é minha escrava. Minha.
- Moredin, são apenas crianças...
- Há tempos não são mais. Preciso dar um fim nisso.
Entardecia, e o casal ainda comprava ervas no comércio local. Siloé tinha comprado com suas pequenas economias uma série de flores brancas e delicadas, as havia trançado como uma coroa e tinha dado de presente para Kione, que desfilava com sua nova preciosa jóia na cabeça.
- Tão bela quanto uma deusa. – sorriu Siloé, deslumbrado. Kione riu encabulada.
- Assim você me deixa envergonhada, Siloé...
E assim continuaram a passear despreocupados, até uma correria louca começar, e os guerreiros e bandidos que circulavam sacarem suas varinhas, cimitarras e gritarem entre a multidão:
- Templários! Templários! Preparem-se! Templários!
Kione resmungou alguma coisa e agarrou Siloé pelo braço, fugindo pelos corredores. Siloé olhava para trás, e pode ver pelo menos cinco cavaleiros de negro correndo entre a multidão, golpeando sem dó os homens que tentavam atacá-los. Até que, num tranco, Kione deu um grito e caiu de costas, levando o garoto junto. Um enorme cavalo negro empinava na frente deles, bloqueando a saída. O homem, todo de negro e rosto coberto, olhou os garotos, com um penetrante par de olhos cinza claro.
Siloé se adiantou, pegando um pedaço de pau que estava no canto da parede, e se pôs na frente de Kione. O cavaleiro sacou sua cimitarra dourada e apontou para o casal, com o cavalo se debatendo, nervoso.
- Não se preocupe, Kione! Eu vou proteger você! – berrou o garoto, segurando firme o pedaço de pau, e fitando o enorme cavaleiro sem medo. – Não se aproxime, templário! Você não vai machucar a Kione!
O cavalo bufou e se empinou. O templário ainda fitava o garoto, com seus olhos claros e alguns fios de cabelos prateados lhe caindo na face quase toda coberta. O pequeno parecia disposto a enfrentá-lo:
- Eu não estou brincando! – gritou o garoto. Kione agarrou-se à cintura dele e murmurou "cuidado, habib..."
Por fim o cavaleiro olhou Kione, voltou a olhar o garoto. Guardou a cimitarra, deu uma última olhada em Kione e se afastou à galope. O casal o acompanhou, parar em seguida voltar correndo para casa.
Depois do jantar a escrava olhava o horizonte estrelado à beira do lago aos fundos da mansão de Moredin, até que Siloé se aproximou, vestindo uma bela túnica branca, de banho tomado e sorrindo.
- ...Kione...?
- Olá... – sorriu.
- Olhando o céu?
- É. – confirmou, olhando o firmamento. – Acho as estrelas lindas. E elas também guardam muitos segredos... são... misteriosas.
Siloé coçou a nuca e comentou, tímido:
- Como você.
- Jura?
- É... só que você é mais bonita.
Kione ficou envergonhada e colocou o cabelo solto atrás da orelha. Siloé esticou a mão que escondia nas costas e lhe mostrou uma linda e rara orquídea.
- Para você.
Kione ergueu o olhar:
- Mas... é... uma orquídea.
- É. Não é bonita?
- Muito. E rara.
- Como você.
Ela ergueu o olhar e não disse mais nada. Sentia o rosto quente e o coração batendo forte. Siloé a olhava com os olhos brilhando, sorrindo docemente.
- Você me chamou de habib... – sussurrou, feliz. Kione fez que sim com a cabeça. – Posso te chamar de habiba também? – Kione fez que sim novamente.
Mais uns instantes, só se ouvia os grilos e o barulho manso da água. Até Siloé se aproximar mais de Kione, que tentou afastar o corpo mas foi impedida por causa da muretinha do lago. Ele vagarosamente encostou seus lábios no dela, lhe dando um inocente beijo. Em seguida ele se afastou, e mais uma vez olhou Kione, que estava um tanto nervosa com o que tinha feito.
- Kione... quer casar comigo?
- ?
- Quero... que você seja minha esposa... você casa comigo? – perguntou novamente.
Ela definitivamente não sabia o que dizer. Mas estava feliz. Uma felicidade, uma sensação que nunca tinha experimentado antes.
- Eu falo com meu pai, falo com o senhor Moredin... Sei que você é escrava dele, mas ele há de entender... não vai ter problema...
Kione abriu um satisfeito sorriso, segurando a flor junto do peito:
- Você vai... pedir pra ele deixar eu casar com você?
- Vou. Mesmo que demore... eu te espero. Você aceita?
- ..Claro! Claro que aceito!...
Os olhos dela brilharam de lágrimas, enquanto Siloé lhe abraçou. Em seguida lhe deu mais um beijo, dessa vez mais demorado, e Kione perdeu o medo, permitindo que ela mesma provasse o doce sabor do primeiro amor. Era um sentimento completamente puro, inocente e sincero.
Os dois ainda ficaram juntos um bom tempo, até entrarem e finalmente separarem-se, Kione deitou-se e dormiu, tão leve e despreocupada que se esqueceu do patrão, que via tudo do terraço da mansão, com o olhar carregado de ódio.
Siloé acordou pela manhã com um barulho parecido com o do ataque dos templários. Correu para fora da casa e viu os homens de seu pai digladiando-se com os de Moredin. Em pouco tempo todos foram mortos, sem piedade. Siloé correu mas parou no meio do pátio de terra, chocado com aquilo.
- O que...
Deu um salto ao sentir a presença forte de Moredin às suas costas. Ele arregalou os olhos para aquele grande homem, apavorado:
- Onde... está meu pai? Porque o senhor...
Moredin, com o olhar sem um pingo de remorso e a roupa salpicada de sangue, ergueu a cabeça recém-decepada de Tremal Naik pelos cabelos.
- Procuras por este homem?
Siloé abriu a boca apavorado, e antes que pudesse correr os homens de Moredin o agarraram e o acorrentaram. Jogaram o menino no chão, chutando-o. O comerciante jogou a cabeça do ex-companheiro longe e apenas observou o garoto ser arrastado e amarrado a alguns metros entre dois troncos. Nessa hora Kione acordava com o barulho e corria para a varanda.
- Siloé! – berrou. O garoto a olhou e também a chamou, e ela foi prontamente agarrada por dois homens de Moredin e arrastada até o jardim. – O que está havendo?! – chorava, aterrorizada com tudo aquilo.
- Cale a boca! – berrou Moredin, virando um tapa em Kione. – Bonzinho por demais, pirralha asquerosa! Vou ensinar a nunca mais desafiar Moredin Ali!
- Ela não fez nada! – berrou Siloé, ganhando um chute no estômago por isso. Ainda assim murmurou. – Ela... não tem culpa de nada, senhor...
- Você vai morrer, moleque. – rosnou Moredin.
O homem, sem piedade, descarregou toda a raiva no jovem, sem se importar em Kione estar assistindo tudo, sem se importar em ser um grande homem adulto espancando um mirrado e indefeso garoto. A escrava, aos berros, implorava para o senhor não judiar do rapaz, mas de nada adiantou, pois ficou durante todo o tempo sem poder fazer nada além de chorar desesperada, vendo cada parte do corpo de Siloé ser atingida, cada pedaço de pele ser cortado, cada osso ser quebrado. Do chão, misturado ao sangue, ao suor e à poeira do lugar, o jovem agonizava, respirando ofegante. Moredin pediu a espada de um dos homens e, sem remorso, abriu lentamente um profundo corte no pescoço do rapaz, pondo fim à sua vida da forma mais cruel possível.
- Dêem aos chacais do deserto todas essas carcaças nojentas. – murmurou Moredin, cuspindo no corpo do rapaz.
Os homens imediatamente obedeceram. Kione caiu de joelhos no chão, chorando sem parar, olhando Siloé. Não entendia porque tudo aquilo tinha acontecido. Não entedia, não mesmo.
- ...P... Por... Por... q... quê...? S... senhor...? – soluçou, olhando Moredin.
Moredin passou a mão sobre o bigode molhado de suor, e respondeu com outro tapa. Antes que Kione se erguesse ele a agarrou pelos cabelos e a arrastou para dentro de casa, e, aos tapas, levou a menina até seu quarto. Kione se desequilibrou e caiu na cama de Moredin, se erguendo, passando a mão na boca, que começava a sangrar. Seu senhor chegou, fechou a porta e mais uma vez lhe empurrou. – Por favor, meu se... senhor... o que...
- Você é minha escrava, Kione! Minha, entendeu?! Você quer ser uma mulher? Pois é de meu direito fazê-la ser mulher! Você queria um homem? Eu serei seu homem! Seu único homem, entendeu?!
Kione abriu os olhos assustada e passou a mão no rosto suado. A madrugada avançava. Levantou-se da cama e foi para a sala de banho, atordoada, confusa. Tentava a todo custo esquecer o que tinha acontecido, apagar aquele dia da sua memória, mas não conseguia. Encostou a cabeça no azulejo branco do banho, chorando de manso, sem parar, envolvida pelo vapor da água quente. Com os olhos abertos ou fechados ela só lembrava daquele dia, e sentia-se desesperada por não tirar da cabeça a voz, o rosto e o toque do estrangeiro, e, no segundo seguinte, se lembrava daquele dia, daquela noite, e mordia os lábios com força, lutando contra o choro de desespero que sempre lhe tentava vencer.
Voltou para o quarto muito tempo depois, ainda pensando em tudo, e rezou, pedindo para que os céus lhe ajudassem, e que fizessem o melhor para ela, independente do que fosse. Antes de se deitar não deixou de jogar pela varanda dois fatídicos escorpiões pretos que ziquezagueavam pelo quarto, desnorteados.
