N.A 1 Muito bem... basicamente o mesmo capítulo de antes, mais "enforcado" (calma, calma! Não falta nada, não cortei nada, eu juro!)
ESPADA DOS
DEUSES
EPISODIO III: SAARA
--Capítulo 41—
AïshaA Caverna do Tempo era no fim de um longo e estreito caminho, uma gruta úmida e com as paredes azul petróleo, que começava ao pé da estátua de um dragão, no fundo dos jardins do palácio. Kione tinha de andar devagar e curvada, tateando as frias paredes, com os pingos de água gelada caindo em suas costas. A luz do dia sumiu quando se afastou da entrada, mas quanto mais descia pelo lugar, mais uma luz azul iluminava a caverna, e tornava-se possível ouvir um barulho de cachoeira que ficava cada vez mais alto.
Ela pensava, a cada passo que dava, o que é que estava fazendo ali, que loucura toda era aquela, porque estava acontecendo tudo aquilo com ela, justo com ela. Quanto mais descia mais imaginava consigo mesma se não era melhor que nada tivesse acontecido. Queria ainda ser só a escrava de Moredin. Não, aí também não... mas ter vivido o que viveu com Rony, um estrangeiro, o "Cavaleiro do Fogo", ter se rebelado e ter morrido por ele seria ideal, maravilhoso.
Mas agora ela estava indo em direção a um novo destino, uma nova vida. Um segredo guardado há milênios, a esperança de um povo mágico. Não cabia em sua cabeça ser rainha, nunca. Jamais, que absurdo, uma escrava rebelde, virar uma rainha de uma hora pra outra? Inconcebível.
Kione chegou ao fundo da gruta, e no fim da minúscula passagem viu um grande salão, como se fosse outra caverna. À sua frente uma grande cachoeira, que mais parecia um véu branco que descia até o chão, cheio de pedrinhas redondas. O lugar era iluminado por uma luz azulada. Tudo tinha diferentes tonalidades de azul. Kione olhou tudo boquiaberta, nas paredes vários desenhos e hieróglifos talhados em baixo e alto relevo. Resolveu chamar por alguém, e a voz medrosa ecoou pelo lugar:
- Alô?... Tem alguém aí?
Assim que o eco silenciou, Kione percebeu que dois vultos apareceram por trás da cachoeira. Uma silhueta grande, outra um pouco menor, mais delicada.
- Quem tem coragem de pôr os pés na Caverna do Tempo??? – trovejou uma voz masculina. Kione se encolheu com o barulho, sua voz ficou tão medrosa quanto quando Moredin estava mal humorado:
- Eu... não queria... importunar...
Alguns instantes. Os vultos se olharam.
- Uma garota?... O que faz aqui?
- Bem... desculpa... eu... achei...
- Quem é você, garota?
- ...Sou Kione.
- ...Filha do Nilo... – comentou o vulto menor, uma voz feminina e doce. Kione sentiu um estranho frio na espinha. - ...É um nome lindo.
- O... obrigada...
- A única pessoa que pode pisar aqui é Aïsha. – trovejou o vulto masculino. – Princesa herdeira do trono de Theron.
- Eu sei, mas...
- Quem você pensa que é, sua insignificante??
- Eu não fiz por...
- Como ousou pisar nesse solo sagrado?!
- Me perd...
- Você pensa que é quem? Aïsha?? – riu o vulto.
Kione silenciou. O vulto também.
- Responda, menina!!! Você é Aïsha?????
E agora? Dizia o quê? Sempre foi escrava, mas agora tinha o quarto real do maior palácio árabe da terra. Era tratada como uma Deusa. Era chamada de rainha. Todos acreditavam nela, a fé deles estava depositada nisso. Kione era Aïsha, rainha de Theron, a Cidade dos Deuses, e essa era a verdade deles.
Deles, não dela. Por mais que parecesse tudo tão real, essa não era a verdade que Kione tinha em seu coração.
- Vou perguntar de novo. – rosnou o homem. – Você é...
- ...Não.
Os vultos ficaram em silêncio, levemente surpresos com a resposta. Kione, começando a respirar ofegante, sentindo um leve desespero, voltou a dizer pausadamente, olhando o chão:
- Não, eu não sou Aïsha. Eu sou uma escrava. Apenas uma escrava, que fugiu de seu Senhor e deveria ter sido morta por...
- Então por que está aqui? – perguntou o homem. Em seguida foi a vez da voz feminina:
- Se você não é Aïsha, por que profanou esse lugar vindo aqui? Se sabe que não passa de uma escrava rebelde, por que veio?
Kione pensou um pouco, e sentiu a voz engasgar:
- Eu... vim... porque... acreditaram em mim.
- "Acreditaram"?
- Os Templários, eles... acreditam que eu seja Aïsha. Eles me salvaram... me trouxeram... me ressuscitaram...
- Ressuscitaram? – riu o homem. - Ninguém pode fazer isso, em nenhum lugar.
- Bom... Eu não sei... Eu fui morta no Templo do Fogo, e... acordei em Theron.
- Templo do... Quem abriu o Templo?
- B-Bom... nós.
- Nós quem? – perguntou o homem, intrigado.
- Bem... os bruxos estrangeiros que vieram atrás das Espadas Mágicas... Eles estavam comigo...
- O Templo Sagrado foi lacrado por Aïsha – explicou a doce voz feminina. – Apenas ela o abriria. Quem foi capaz de ler a profecia e abrir o lacre sagrado...?
Kione mordeu os lábios antes de dizer, com medo das conseqüências. Já estava enrolada por demais.
- ...Fui... eu.
O homem gargalhou, fazendo a jovem se encolher mais ainda:
- Quanta bobagem! Quanta blasfêmia! Como tem coragem de dizer na nossa cara que é Aïsha? Achar que é Aïsha? Você não pode ser Aïsha!
- Eu não estou dizendo que sou... – resmungou baixinho, ficando um pouco impaciente com aquele cara. – Apenas...
- Você não é mais virgem.
Kione olhou o vulto através da cachoeira intrigada:
- E o que isso tem a ver?
- Aïsha é pura e intocada.
- Bem, avisem os Templários, então. Ficaram vinte anos correndo atrás de mim à toa. Me mandaram aqui sabendo disso.
- Você é ingênua demais, menina, sabia? Por que acreditar em homens que nunca conheceu?
- Mentira. Conheço Giafar. Ele é Izack, meu irmão que morreu no ataque à caravana da minha família, quando éramos crianças.
Os vultos mais uma vez ficaram em silêncio.
- Chamou o Templário líder... de irmão? – indagou o homem, como se tivesse levado um tapa. – Disse que sua família foi atacad...
- O nome Ramsés lhe diz alguma coisa? – perguntou a mulher.
Kione puxou da memória:
- Era... meu irmão caçula. – completou, com medo de dizer alguma porcaria. - Morreu bebê...
- Qual o nome de seus pais?
- ...Ísis... e Quéfren...
- Ísis e Quéfren?
- Aproxime-se da luz. – pediu a mulher.
Kione olhou os lados, como se procurasse uma segunda alternativa. Poucos segundos depois tomou coragem, e avançou lentamente, entrando na luz, na frente da parede de água. Ergueu os olhos para os vultos. A mulher se aproximou também. Kione olhou para cima, e se viu sendo iluminada pela quase ofuscante luz azul claro.
- Quem lhe deu essas pedras que carrega na testa? – perguntou a mulher. Kione desceu o olhar e pôde ver muito mal a silhueta colorida da mulher. Parecia ter um longo cabelo caramelo, e usava uma roupa branca.
- Ah... essas? – perguntou, passando a mão nas pedrinhas de sua testa. – Bem... ninguém deu. São... minhas.
- Suas?
- É, sempre as tive... Não sei porque, mas não dá pra tirar... São... ahm... grudadas.
Kione disse a frase sabendo que não convenceria ninguém. Grudadas? Mas eram! Até ela achava aquilo muito estranho. Moredin mesmo já tinha tentando arrancar porque se incomodava com elas. Ás vezes dava vontade de arrancar mesmo com a unha, mas... não saíam. Era como se Kione tivesse nascido com elas...
Ninguém falou nada. Ela se sentiu um tanto desapontada, e suspirou:
- Eu vou embora... Perdoem minha afronta. Eu sempre soube que não sou nada além de uma escrava. Não castiguem os Templários por minha causa, eles não têm culpa... Só não queria ter decepcionado...
- A quem você decepcionou? – perguntou a mulher.
- Aonde pensa que vai? Ainda não terminamos nossa conversa. – avisou o homem. – Você não está esquecendo de nada?
Pronto, pensou Kione, agora ela estava enrascada. Sentiu o estômago embrulhar. Não tinha saída, então continuou no mesmo lugar, de frente para os vultos. A mulher estalou os dedos, e Kione sentiu o corpo formigar. Uma linha de estrelas minúsculas e brilhantes circulou seu corpo de cima a baixo, desaparecendo no ar em seguida.
- O... q...?
Ela passou a mão na testa e sentiu que não tinha mais as pedrinhas.
- Minhas... o quê está...
O véu de água se abriu, e Kione gelou e sentiu seu queixo cair ao ver os vultos: sem dúvida alguma eram reis de Theron. Usavam longas túnicas brancas, várias jóias, como uma pequena armadura, e usavam uma grande coroa, exatamente como os desenhos dos antigos faraós. O homem a olhou superior, e sorriu:
- Este é o seu julgamento.
- Meu... o quê? – gemeu, gaguejando.
- Ninguém abre o templo e vem até aqui, a não ser Aïsha... – disse a mulher. – Apenas iremos... conversar.
Kione sabia que não iam só conversar, e eles falarem isso deixou-a com uma vontade quase incontrolável de sair correndo.
- Muito bem... Como você encontrou o Templo do Fogo?
- Bom... – começou Kione, se lembrando de quando tinha que contar com detalhes tudo que tinha acontecido em casa quando Moredin saía sem ela. – Desde pequena, eu... brincava nas ruínas...
- ...Quem a levou pela primeira vez às ruínas?
- Ninguém, eu as encontrei quando criança... Meu senhor queria me bater porque eu sem querer quebrei um vaso valioso que ele havia roubado de uma pirâmide, e... eu fugi, com um tapete... e acabei encontrando as ruínas, foi onde me escondi.
- Não adiantou, não é mesmo? – riu o homem.
- ...Não. – resmungou Kione, de cabeça baixa, mas brava com a atitude do homem.
- E, depois disso, você sempre voltava lá?
- Sim, senhor.
- Hum. E quem entrou pela primeira vez no subterrâneo?
- Eu e os bruxos estrangeiros clientes de meu senhor. Eles procuravam pelas Espadas Mágicas.
- Com que finalidade? – murmurou, juntando as sobrancelhas.
- Eles dizem que para salvar o mundo. Que um bruxo das trevas as procura e que não podem deixá-las cair em mãos erradas.
- Hum. Como conseguiram ler as inscrições feitas por Aïsha?
- Fui eu. Eu li tudo que eles pediram e encontraram. Sei que a língua não existe mais, mas... sempre tive facilidade em ler qualquer coisa em línguas antigas. Sempre li os manuscritos que meu senhor conseguia...
- Aprendeu com quem?
- Ninguém. Na verdade, Nura me ensinou a ler, escrever, tudo que sei, mas essas línguas vieram como conseqüência... Li a profecia que Aïsha escreveu sem dificuldade...
Os vultos se olharam. A mulher perguntou:
- Qual a visão que tinha dos Templários antes que eles lhe salvassem?
- Cavaleiros de Negro... Eles sempre atrapalhavam os planos do meu senhor e de seus companheiros, como bandidos mágicos, demônios do deserto. Eram vistos como perigosos, eu sempre tive muito medo deles, apesar de...
- De...?
- Achava que, de certa forma, eles estavam com a razão, se são mesmo protetores de relíquias e tesouros mágicos. O dever deles seria destruir quem tentasse roubá-los.
- Já foi picada por algum escorpião?
Kione estranhou a pergunta. Que isso poderia ter de importante?
- Não. Bom, se querem saber, escorpiões nunca me picam. Desde criança, vários escorpiões apareceram no meu quarto, especialmente os de casca preta... Mas nunca me fizeram mal. Na verdade os vejo como bichinhos de estimação. Quando estou só ou triste sempre aparece algum, e eu fico me distraindo, jogando-os de cima da varanda.
- Que cruel. – resmungou o homem. A mulher riu.
- Como se sente estando em Theron?
- Eu nunca acreditei... Parece incrível, sempre me parecia apenas uma lenda boba... Mas agora fui morta e, de alguma forma, trazida para cá. Me sinto estranha... É tudo novo, mas... não me sinto... deslocada.
- Não?
- Eu não sei. - balançou a cabeça, ficando cada vez mais confusa com tudo aquilo. – Mas, desde que cheguei aqui... Eu não sou Aïsha, mas... minha mente não pára de ser invadida por cenas estranhas, como se alguém as colocasse na minha mente...
- Hum...
- Eu realmente quero esclarecer minha mente. – choramingou. – Eu morri naquele Templo... para proteger o Rony, não me arrependo, mas penso... Todos nós morremos e viemos para cá, então? Quer dizer... Somos agora só espíritos, no paraíso, ou no lugar pós-vida?
Kione ergueu o olhar para os dois. O homem ergueu a mão e apontou o dedo indicador para Kione. No instante seguinte uma lâmina feita de uma luz azul disparou do dedo dele e atingiu em cheio o rosto da garota com uma força que a fez levar as mãos na bochecha e cair de joelhos, soltando uma exclamação de dor. Olhou as mãos e viu que sangrava, o corte doía sem parar, aberto, com o sangue quente escorrendo. Olhou o homem, que resmungou:
- Você parece morta?
Ela mordeu os lábios, enrolando a manga da roupa na mão e colocando no machucado. É, ela não estava morta. Ainda.
- Muito bem... Quem é esse rapaz a quem disse que deu a vida? Por acaso é seu senhor?
- Não. – murmurou, erguendo-se e se sentando de novo. – Ele é um estrangeiro, cliente de meu senhor, Moredin. E eu...não pensei antes de dar-lhe a vida porque... eu me apaixonei por ele.
- Como ele é?
- É um europeu, cabelos cor de fogo, Nura vivia chamando-o de Cavaleiro do Fogo, dizia que eu estava predestinada a...
- Já chega. – trovejou o homem.
A caverna silenciou. Kione achava que agora receberia seu castigo, pois o homem se aproximou. Olhou-a alguns instantes e ordenou:
- Estique sua mão direita.
Ela obedeceu, olhando–o de cabeça baixa. Ele puxou o punhal adornado em ouro e pedras preciosas de sua cintura e fez um corte na mão da jovem, que soltou uma exclamação contida de dor. Em seguida ele fez o mesmo em sua mão, mas ele não sangrou. Ao invés disso vários vermes amarelos - como os que Kione viu quando Giafar levou um tiro – saíram de sua mão. Ela, imediatamente, recolheu sua mão e prendeu a respiração, mas o homem gritou:
- Eu mandei esticar a mão! – e continuou, olhando a expressão assustada de Kione. – Esta é sua prova final.
- ?
- Isto em minha mão são vermes mágicos. Eles dão a vida eterna a quem mora em Theron, todos da realeza e os Templários os têm. Vamos, estique sua mão. Um destes animais entrará em sua carne pelo corte. Se eles aceitarem seu corpo e você sobreviver, não há prova maior de que é Aïsha. Caso contrário, sofrerá a morte mais dolorosa e repugnante que ser algum do mundo jamais sonhou.
Kione sentiu o estômago embrulhar. Mordeu os lábios, sabendo que sua vida acabava ali. O que aconteceria com aquele verme no corpo? Antes que falasse qualquer coisa o homem a puxou pela mão e colocou a sua sobre a dela. Kione a puxou assustada, e antes que tocasse a ferida viu que um dos bichos rapidamente entrava em seu corte, como um peixe que volta para a água.
Ela sentiu as cócegas dele penetrar sua carne, e mais nada. Fechou o punho, apavorada. Ergueu o olhar para o casal. No instante seguinte o verme surgia na altura de sua pele, veloz, subindo pela veia do braço, até o ombro, subindo pelo pescoço, contornando a nuca e entrando em sua cabeça. Ela sentiu todo o trajeto dele, e ao entrar em sua cabeça, Kione sentiu as piores dores que poderia sentir: como numa explosão, o verme se multiplicou, centenas, milhares de vezes, dentro de sua cabeça, e eles começaram a correr por dentro de seu crânio, ela sentia cada um deles andando pelo couro cabeludo, como se devorassem seu cérebro, descendo pelo rosto, pescoço, tomando conta do corpo. Levou as mãos na cabeça num berro de dor e agonia e caiu de joelhos.
- TIREM ISSO DE MIM! – urrou, encolhendo-se no chão, chacoalhando a cabeça, se debatendo de dor. Sentiu quando eles chegaram em seu coração e foram bombeados junto do sangue pro resto do corpo. Ela explodiu num incontrolável choro de dor, de desespero, por mil vezes queria estar sendo executada em praça pública: nada se comparava à dor que sentia agora. – POR FAVOR! PARE...! ESTÁ... DÓI! NÃO! NÃO!
A caverna foi tomada pelos gritos da jovem, enquanto o casal apenas a olhava sem esboçar nenhuma reação. Seu corpo estava tomado de um frio e um tremor intenso, como se cada músculo se repuxasse involuntariamente. Ao sentir os vermes romperem a barreira de seu estômago, ela sentiu um súbito enjôo e vomitou tudo que havia em seu estômago, nada além de uma gosma esbranquiçada, misturada aos bichos e ao sangue de suas hemorragias.
Kione tombou de lado, no chão, encolhida, respirando ofegante, sentindo todas as recentes cicatrizes da praça e suas antigas marcas se abrirem, como um tecido velho que se rasga. Ela agarrou-se as pedrinhas do chão, respirando fundo, sentindo seu corpo ser tomado por um grande arrepio, uma onda de dor e, após escutar um estalo dentro de sua cabeça, tudo parou, e ela suspirou, relaxando os músculos e fechando os olhos, entorpecida pela dor.
- ...Está morta. Que vergonha. – resmungou o homem. – Se tivesse morrido naquela praça teria uma morte menos dolorida.
A mulher ao seu lado sorriu.
- Quéfren... Você continua subestimando a capacidade de noss...
A mão de Kione se mexeu, assim como seu corpo, respirando fundo. Ela abriu os olhos, piscando algumas vezes. Era uma sensação parecida com a de quando acordava após tomar os remédios de Nura, quando era açoitada. Ficou de joelhos, para em seguida se erguer, sentir uma tonteira passageira. Ainda soltou um longo gemido, para olhar suas mãos: não sentia mais nada. Não possuía mais sinal nenhum.
- Hum... – murmurou o homem.
Kione ergueu o olhar para os dois, como se perguntasse: "o que aconteceu?". A mulher sorriu docemente:
- Eu sabia.
Então o casal se transformou, deixando de lado aquelas vestes reais para se tornarem pessoas bem mais "humanizadas", fazendo o coração da jovem disparar. Ísis era uma mulher de meia-idade, pele morena, cabelos cacheados e cor de caramelo, meio dourados. Algumas rugas por causa do sol que judiou tantos anos do rosto, e uma delicada pedra redonda na testa, brilhante. Vestes brancas, e jóias, muitas jóias de ouro: colares, brincos, anéis, braceletes. Ela deu um largo sorriso pra Kione, que tinha uma certa semelhança com a mulher:
- Não sabe o quanto esperei pra te ver de novo, Kione... habiba minha...
Kione sentiu os olhos se encherem de água ao escutar a voz da mulher, e um aperto muito grande no peito. Levou a mão na boca, mordendo os lábios, e choramingou:
- ...Mãe...?
A mulher deu dois passos e juntou a cabeça de Kione num apertado e afetuoso abraço materno. A garota se agarrou à mulher, começando a chorar de mansinho.
- É bom ter você de volta pra casa... Aïsha.- disse o homem, desfazendo a expressão dura que tinha desde o início.
Kione ergueu os olhos por cima dos ombros da mãe, e viu seu pai, Quéfren, sorrindo também, que se aproximou e passou a mão na cabeça da filha. Ísis, a mãe, segurou o rosto da filha com as mãos:
- Lembra-se de nós, meu anjo?
- Ísis e Quéfren, que fundaram Theron... – contou Kione, baixinho, como se sua memória fosse um quebra cabeças incompleto, e que aos poucos pequenas peças se colavam. – Ramsés e Giafar, meus irmãos...
- E você, Aïsha, "Aquela que vive para sempre".
- Eu... É como se...
- Acalme-se. – disse Ísis. – Você tem um período para se lembrar. Está de volta a Theron, nossa cidade está completa. Mas você ainda é Kione... Irá se lembrar aos poucos, a cada dia... não tenha medo...
- Aïsha... – disse Quéfren, passando a mão no rosto da filha. – Sua memória aos poucos irá voltar, a cada dia. Que bom que voltou... Que bom que resistiu às suas próprias provações...
A mãe se afastou, sorrindo, e fez um leve movimento com as mãos, e apareceu uma delicada tiara em forma de correntinha, de prata e diamantes, que ela colocou na cabeça de Kione, deixando como um cordãozinho, com um pingente no centro da testa, no lugar das pedrinhas. Ísis pôs as mãos na boca, sorrindo encantada:
- Sempre achei você linda assim.
- Lembra-se? Esta é a sua coroa. – sorriu o pai. – É a prova definitiva de que você é Aïsha.
- Então... – sussurrou Kione, limpando o rosto com as mãos. – esse era 'meu' segredo?... Meus pais... me esperando, para que eu me lembrasse de tudo?
- Hum... não. Você poderia 'não ter passado no teste'. Mas a vida que você levou como escrava, nas mãos de homens inescrupulosos... Mesmo uma vida com tanto sofrimento não fez você perder o que tem de mais importante, Kione: seu coração puro. Você foi judiada, humilhada, violentada, mas nunca guardou rancor. Resistiu a essa dolorosa provação não por ambição própria, mas porque você decidiu se arriscar em nome de seus amigos, das pessoas que lhe depositavam toda a fé. Você é transparente, e é isso que faz de você uma rainha. Faz de você a nossa rainha.
- Tudo voltou ao normal, habiba. Volte para Theron, retome seu lugar, sua vida. Você terá a eternidade toda pela frente. – disse a mãe, doce, colocando o cabelo da filha atrás da orelha. - Estaremos com você.
Kione respondeu com um doce e molhado sorriso. Recebeu um beijo na testa dos pais, antes deles recuarem e desaparecerem junto da cachoeira, deixando a caverna vazia. Olhou as paredes alguns instantes, respirou fundo e tomou o caminho de volta pra Theron, sem evitar de abrir um largo sorriso e fazer seu riso ecoar pela caverna vazia. Ela não estava sonhando, e a cada segundo uma pequena peça do quebra-cabeça de sua memória voltava, confirmando isso.
Ooki estava preso numa masmorra no porão da mansão de Moredin, magicamente acorrentado às paredes. Agora o Templário sabia porque os homens que implicavam com Moredin desapareciam. Ele estava muito fraco, precisava voltar logo pra Theron. Rony foi transportado numa das carroças de Moredin, enquanto Ooki foi gentilmente arrastado pelos camelos e estava detonado. Um dos bruxos capangas de Moredin voltou à masmorra, para lhe conceder mais dez doces minutos de Crucio ininterruptos.
- Vai ficar aqui até morrer, grandão. – riu o homem, guardando a varinha.
Antes dele sair Ooki ergueu a cabeça com dificuldade:
- Onde... está... o Cavaleiro do Fogo?
- Ah, o estrangeiro? Não esquenta. Ele ainda é cliente de Moredin. Está sendo bem tratado.
- Mas... Aïsha...
- Aïsha? Que Aïsha? Tá ruim mesmo, heim, grandão?...
E saiu da prisão gargalhando, deixando Ooki.
Rony estava debruçado na janela do seu quarto, na mansão. Já curado, mas com o braço direito enfaixado e com curativos em outros lugares do corpo. Olhava as dunas no horizonte, com o olhar perdido e vazio. Estava na mesma posição há algumas horas. Sozinho. Acordou no quarto, não se lembrava de nada, a não ser de ter pulverizado a manticora com o dragão de fogo. Depois disso, apagou. Onde estavam todos? Pra onde tinham ido?
- Não vai se alimentar, senhor... Easle?- perguntou Moredin, fingindo naturalidade. Rony o olhou com mesmo olhar desanimado.
- Não. – disse, apático. – Não estou com fome. E é Weasley.
- Perdoe a ignorância de Moredin.
Alguns instantes, e Rony perguntou:
- Onde estão os outros?
- Não sabemos. O templo foi destruído. Não encontramos ninguém.
- Então... Como saí de lá?
- Moredin também não sabe. Você estava sozinho desacordado nas ruínas, na areia.
- Só eu? Mais ninguém?
- Mais ninguém.
Rony ainda ficou um tempo quieto.
- Kione... está morta.
Os bigodes de Moredin se mexeram. Rony continuou olhando para Moredin, que colocou as mãos para trás, com ar levemente superior.
- Hum.
- Você... Não vai dizer nada?
- Era uma boa escrava. Trabalhava direito. Vai ser difícil substituí-la. Terei de arranjar pelo menos mais duas ou três pra seu lugar.
- É isso que pensa?
- Hum... por conta de sua morte terei de arcar com um prejuízo grande. É uma pena, o triplo de despesas.
- Sabe... – pensou Rony. – Eu tenho inveja de você. Por ser alguém tão podre e miserável... você não é capaz de entender ou sentir o que eu sinto em saber que ela jamais vai poder voltar.
- Sou apenas um humilde comerciante abençoado pelos Deuses. – sorriu Moredin, mostrando seus irritantes dentes de ouro. – Agora com licença.
O homem deu as costas, deixando Rony novamente sozinho.
- Mas... – comentou, antes de sair, sem sequer olhar Rony. - ...não tenha esperanças. Não há como sair vivo daquele inferno que caiu sobre seus amigos. Acredite nas palavras de Moredin: todos estão mortos.
O vento soprou forte, e Rony olhou o horizonte de novo, como se um fio de esperança trouxesse alguém de volta. O dia estava caminhando para o entardecer. E ele sentia que, se nenhum milagre acontecesse, ele também mergulharia na escuridão.
