Nereida III
Por Senhorita Kaho MizukiAbriu a porta e deparou-se com um quarto de pernas para o ar. Roupas espalhadas pela cama, uma mala aberta em um canto e um loiro nervoso a vasculhar o armário na outra extremidade do aposento. Ao virar-se e vê-lo parado a porta, paralisou. Jogou a peça de tecido que tinha nas mãos sobre cama e cruzou os braços, erguendo uma sobrancelha, esperando que falasse e olhando-o como a um intruso.
Suspirou. Mais essa... Vasculhou o lugar com os olhos, voltando a encarar o adolescente no meio do quarto.
– Onde está Isaac?
– Trancado no banheiro, já está lá há um bom tempo.
– Mirou a mala aberta na cama, fazendo-o acompanhar seu olhar.
– O que está fazendo?
– Não sei o que fizeram a Isaac, mas irei levá-lo embora comigo!
– Hyoga... Não se precipite, foi decisão dele? O que disse sobre isso?
– Disse nada. – deu de ombros – E a idéia é minha, vamos voltar para casa juntos!
Ajeitou a bandeja que equilibrava nas mãos. Estava cansado demais para tentar argumentar com um jovem irritado. Atravessou o quarto, parando em frente à porta do banheiro. Deu duas batidas com os nós dos dedos. Esperou um pouco, nenhuma resposta. Franziu a testa. Esperava que nada grave tivesse acontecido lá dentro. Encostou a orelha na madeira e escutou alguns soluços abafados, ficou mais aliviado.
– Trouxe seu café da manhã, Isaac.
– Não tenho fome. – disse num resmungo.
– Precisa se alimentar.
Ficou em silêncio novamente, não insistindo mais. Deu as costas e depositou a bandeja no criado mudo. Andou até a porta e virou o rosto parcialmente, dirigindo-se ao russo parado no meio do quarto.
– A casa dele, você querendo ou não, é aqui.
E antes que pudesse responder qualquer coisa, cerrou a porta. Hyoga bufou indignado. Olhou para a comida que acabara de deixar e fez o mesmo, batendo na porta do banheiro.
– Kanon está certo, é bom comer alguma coisa.
Longos segundos se passaram até ouvir o som da tranca. A porta entreabriu e o olho do rapaz de cabelos verdes vasculhou pela fresta, vendo se o general marinho tinha mesmo ido embora. A última coisa que queria ver era o rosto do grego. Estava completamente tomado pela vergonha! Então Cisne o puxou para fora, fazendo-o sentar na cama e colocou a bandeja no seu colo.
Cortou um pedaço de panqueca doce. Parou o garfo a caminho da boca, percebendo finalmente a bagunça em que seu quarto se encontrava. Lançou um olhar interrogativo a Hyoga. Este suspirou e sentou-se ao seu lado.
– Estou fazendo suas malas, vou te levar para casa.
– ...Ca...sa?
– Sim, vai ficar melhor comigo e com Camus.
Encarou o amigo com um ar confuso, o outro mandou que comesse. Botou um pedaço boca adentro, mastigando preguiçosamente, sentindo o gosto doce. Mirou um ponto perdido à sua frente enquanto isso, divagando sobre o que havia acontecido.
Hyoga permanecia do seu lado, sentado no meio daquela confusão de roupas, vigiando sua refeição. O que era aquilo agora? Ir embora? Casa? Nos últimos anos aquela não havia sido sua casa? Que ironia. Agora não conseguia encarar ninguém ali, como ainda podia se sentir em um lar?
Porque Julian havia feito o que fez? O jovem milionário fora sempre mimado, verdade, mas também era gentil e cortês, pelo menos com ele. E então ele virara seu brinquedo de prazer, de uma hora para outra? Provavelmente tinha finalmente percebido sua admiração secreta, que, segundo os amigos marinas, nem era tão "secreta" assim. Como adolescente ingênuo que era, se deixou levar, fácil, muito fácil.
Podia entender ser usado, mas não entendia as atitudes do herdeiro na noite anterior. Lembrou-se dos olhos diferentes, irradiando autoridade. Engoliu com dificuldade o pedaço de doce que comia. Aquele olhar... só o havia visto na batalha contra Athena, a voz dura e ao mesmo tempo sensual. Poseidon ainda dormia no corpo de Julian. Ele podia manifestar-se inconscientemente?
Perdido em seus pensamentos, assustou-se com a mão tocando seu joelho. Encarou Hyoga, que o olhava com preocupação e curiosidade. Alegrava-lhe o fato de deixarem a inimizade de lado e tornarem a ser os amigos de infância de antes.
– Isaac, o que aconteceu?
– ... – vacilou um pouco, sua voz falhando – Na-nada.
Forçou um sorriso, que de nada convenceu o loiro. Cresceram juntos sob a tutela de Camus. Hyoga sabia muito bem quando algo estava errado com seu amigo.
Como assim, nada? Kanon te trouxe adormecido no meio da madrugada, você tinha o cabelo um pouco úmido e cheirava a sabonete.
O sorriso forçado do finlandês murchou, arregalando o olho solitário. Um banho. Kanon o havia... A vergonha lhe voltou redobrada, a imagem do mestre voltando-lhe a mente, o rosto chocado ao vê-lo.
Naquela manhã, quando acordara, vira Cisne sentado ao seu lado, de cenho franzido. Logo a lembrança recente viera à mente, lágrimas de desgosto chegaram junto e disparou ao banheiro, trancando-se e ignorando os chamados do russo.
Seu interior ainda ardia, como prova do que acontecera, e havia algumas marcas avermelhadas espalhadas pelo corpo. Mas os outros vestígios, sêmen e algum sangue, haviam sido eliminados pelas mãos do marina mais velho.
Sentindo a garganta apertar, apenas murmurou pedindo a Hyoga que não se preocupasse. O loiro continuou olhando desconfiado, mas concordou, voltando a fazer as malas.
oOo
Atravessou os corredores da mansão em largas passadas, o cenho franzido e sério. Os empregados assustados se desviavam ligeiramente, evitando serem atingidos pelo homem e se entreolhando curiosos.
Kanon os ignorava, absorto em pensamentos sobre a noite anterior. O que Julian estava pensando? O que mais o preocupava era o estado do jovem grego, o mortal e o deus misturando-se e confundindo-se. Sentira o deus dos mares se manifestar, e assim acordou e levantou-se de súbito, alerta.
Era raro acontecer, a maior parte das vezes fora quando Julian era criança. Poseidon não havia despertado no menino ainda, mas estava em estado latente. Lembrava de estar sempre atento, movendo-se e permanecendo próximo a ele, mesmo seus tutores não gostando daquela idéia. Devia estar acontecendo novamente, afinal Athena o havia derrotado, mas não voltara a lacrá-lo como na última batalha, há séculos.
Deixara-o dormindo em um dos Solos, seus hospedeiros preferidos. Antes rondava o pequeno grego ansioso, esperando o dia em que despertaria e sua vingança se realizaria. A situação agora era diferente, sua função ainda era servi-lo, como os demais marinas. No entanto também era sua obrigação mantê-lo sob controle, e impedir qualquer iminência de uma outra tragédia semelhante a anterior. Por sua culpa.
Faria de tudo para isso, como sua rendição à deusa. Mas... não podia deixar Isaac ficar no meio do caminho, ferido.
Diminuiu os passos e recostou-se na parede, um tanto abalado. Levantara-se de sua cama sentindo o cosmos conhecido oscilar, agressivo. Saiu de seu quarto do jeito em que acordara, procurando a fonte, percorrendo afobado os corredores no escuro. Suspirara pesaroso ao ver luz pelas frestas da porta da biblioteca, a qual costumava freqüentar antes de se recolher toda noite.
Recriminou-se mentalmente, recordando que ficara parado na entrada, vendo a cena fatídica de desdobrar diante de si. A expressão sublime de prazer submisso do rapaz de cabelos esverdeados, que se transformou em dolorosa humilhação ao encontrar seus olhos. O sorriso lascivo de Julian atrás dele, segurando seu rosto, regozijando-se com seu estupor. Um tremor percorreu sua espinha, reconhecendo aquele olhar, que apenas havia presenciado quando Poseidon havia finalmente tomado o controle do garoto.
Saiu de seu estado de choque apenas quando viu Isaac desfalecer e cair aos seus pés, no chão. E então um único sentimento tomara conta de si, fazendo-o avançar sem pensar duas vezes sobre o jovem grego. Segurou-lhe pelas laterais do robe desalinhado, empurrando-o contra a prateleira mais próxima. Quando olhou para aquelas orbes azuis, não viu mais aquele olhar. Os olhos de Julian tinham um quê de melancolia e arrependimento, logo desviando-se e abaixando a vista para onde o finlandês estava caído.
Soltou-lhe lentamente, imitando-o e suspirando. Em silêncio abaixara-se examinando o garoto, para então vesti-lo e carrega-lo com cuidado. Saiu sem se virar, deixando um Solo silencioso e sozinho, que nada tinha a ver com a figura arrogante de costume.
Ele mesmo o levara e o despira, depositando seu corpo na banheira generosa do seu quarto. Parara alguns minutos a contemplá-lo. Havia marcas avermelhadas espalhadas pela pele pálida, que adivinhou terem sido provavelmente causadas pela boca e mão do herdeiro. Deslizou a ponta dos dedos por elas, absorto. Isaac havia crescido.
Nunca o tocara daquele jeito, pelo que se recordava apenas para ajudar-lhe a cuidar dos ferimentos causados pelo árduo treinamento que lhe aplicava quando se tornara seu mestre.
Kanon esfregou as têmporas, repreendendo-se pela sensação proibida. Desencostou-se da parede, respirando fundo e voltando a percorrer a mansão em busca de uma certa pessoa. Havia um assunto pendente a resolver.
oOo
Em uma das sacadas da grande propriedade dos Solo, quatro adolescentes se dispunham à mesa posta, iluminados pela luz matinal. Os três marinas olhavam Julian remexer no seu prato, como se a comida fosse um objeto estranho a ser cutucado por um garfo.
Estava distraído demais para perceber ou se incomodar com os olhares sobre si. Assim como Kanon, eles também haviam sentido a presença forte, com certeza provinha do deus deles. Os jovens saíram de seus aposentos quase juntos, encontrando-se e concordando em sair atrás da presença. Mas o general marina mais velho fora mais rápido e os impediu, proibindo-lhes. Mandou que voltassem a seus quartos, mas quem disse que conseguiram voltar a dormir? Estavam morbidamente curiosos, só esperando o grego falar algo. Sorento chegou a se irritar, vendo que dali sairia nada.
– A comida não vai te morder, Julian.
– Ahn? – acordou, ouvindo a voz melodiosa do rapaz de cabelos lilás – Desculpe. – arriscou trazer a boca um bocado.
– Aconteceu alguma coisa?
– E porque acha isso, Io?
– Está um pouco avoado essa manhã.
– Mesmo? – fingiu um ar surpreso.
"Não se faça de desentendido conosco", pensou Skilla, lançando um olhar desconfiado para Baian, que retribuiu. Foram interrompidos por Kanon, que acabara de entrar, aproximando-se da mesa. Sorento se adiantou, servindo-lhe café assim que se sentou junto com eles. O herdeiro largou o talher e mirou a paisagem, visivelmente querendo evitar que seus olhares se encontrassem.
Sorvendo alguns goles de sua bebida quente e amarga, ignorou a atitude juvenil, pedindo que os demais os deixassem a sós. A contragosto, os três marinas se levantaram, Julian fez menção de acompanhá-los, alegando que havia coisas para fazer. O grego mais velho segurou sua mão, surpreendendo-o com sua calma aparente.
– Eles podem fazê-lo por você, e só quero ter algumas palavrinhas.
Acenou para os rapazes, que se retiraram obedecendo. Era impressionante a autoridade que aquele homem mantinha não só sobre eles, mas sobre o único herdeiro do império marítimo dos Solo.
Julian recostou-se na murada, cruzando os braços e mantendo certa distância. Olhou de esguelha para o grego que degustava seu café da manhã, sem pressa alguma.
Tinha apenas seis anos quando seu avô trouxera Kanon para a mansão, então era apenas um estudante de dezoito anos. Logo se dera bem com o rapaz, a principio auxiliava na sua educação, além dos seus tutores. E sempre estava perto de si, o velho Solo parecia confiar bastante. Em poucos anos tomara posição mais importante.
Em dois anos, quatro crianças da sua idade foram trazidas para seu convívio, todas de famílias conceituadas e um tanto abastadas. Não tanto quanto a sua, e pelo que sabia serviam a sua família por anos. Algo a ver com tradição, seu nome e fortuna eram antigos na Grécia. E assim, Baian, Io, Sorento e Tétis tornaram seus amigos de infância, para não dizer os únicos, uma vez que lhe era negado freqüentar a escola e sua companhia além de Kanon eram seus guarda costas.
Pouco depois de completar quinze anos ele veio, o garoto vindo da Rússia, trazido por Kanon de uma de suas viagens. Mal acostumado com o clima marítimo grego, tinha a tez pálida e constantemente sua face ficava avermelhada. Isaac olhava sempre para baixo, evitando encará-los. A cicatriz recente que marcava metade do seu rosto, a falta de um olho, obviamente atiçava a curiosidade dos adolescentes. E isso só piorava a tentativa de se socializar.
Como o grego mais velho, um quarto de hóspedes lhe fora concedido, mas a posição dele era clara. Mais um dos empregados, mesmo que Kanon o tratasse com mais atenção e carinho que os demais. Seu precioso pupilo.
Julian se remexeu, desgostoso. Se houve uma paixão na sua curta vida adolescente, essa estava a sua frente, terminando a refeição matinal e deixando-lhe nervoso com a espera. Ainda que três anos houvessem passado, que Isaac tenha se tornado próximo a eles. Não podia aceitar ser roubado ingenuamente por ele, ainda que...
– Suponho que levarei uma bronca pelo que fiz a seu "querido" Isaac.
Sua voz saiu incontidamente agressiva, atraindo o olhar do homem sobre si. Permaneceu em silêncio, para então sorrir, surpreendendo o garoto. Não era o que esperava depois da surra que quase levara na noite anterior.
– Sabe o quanto ele te admira, Julian. Se aconteceu o que aconteceu, foi porque ele o quis também.
O jovem grego sorriu malicioso, lançando-lhe um olhar de desafio.
– Ah sim... Lhe garanto que apreciou cada segundo.
Soltou, analisando atentamente o efeito de suas palavras no rosto másculo. Sustentando seu olhar por alguns segundos, Kanon apenas sorriu, irritando-o com sua atitude. Em um gesto de fúria, pegou o primeiro objeto que sua mão alcançou, um copo, espatifando-o contra o chão de mármore branco.
– Droga, Kanon! Você sabe muito bem o que eu quero!
Deu alguns passos, alcançando-o e agarrando o colarinho de sua camisa, para que o mirasse bem de perto.
– Quero quebrá-lo, usá-lo e jogá-lo! – sua voz embargou – Só para te ver machucado...
Seus joelhos falharam e caiu ao chão, agarrando a suas pernas e escondendo o rosto no seu colo. O ouviu soluçar e sentiu o tecido de sua calça molhar, uma cena muito familiar de alguns anos atrás. Acariciou os fios azulados carinhosamente, vendo-o encolher os ombros instintivamente.
– Porque não fica bravo, porque não me bateu ontem? Io disse que você o ama...
– E amo. – o garoto se apertou mais a ele – E a você também, Julian.
O garoto ergueu o rosto molhado, levando os olhos marejados e incrédulos a encontrarem os aparentemente sinceros de Kanon. "Mentira", mexeu levemente a cabeça, limpando desajeitado as lágrimas.
– Então... porque? Porque nunca mais me tocou ou me tratou como antigamente?
– Julian... – suspirou profundamente – Porque o que fiz não foi certo.
– Não foi... se arrepende?
O jovem voltou a explodir, levantando-se de súbito e cerrando fortemente os punhos. Sua amargura era visível, o grego mais velho cerrou os olhos, sentido. Como poderia explicar-lhe?
Até dois anos atrás o que lhe guiava era a ambição, cegando-lhe e fazendo-o capaz de ferir todos a sua volta. Muitas intenções más estavam envolvidas quando se aproximou do herdeiro como se aproximara. Era culpado, terrivelmente. Athena o fez ver seus erros, conseguira o perdão do irmão. Era seu tempo de redimir-se.
Tão jovem, lhe enojava lembrar do que fora.
– Você mudou, Kanon. Mas quero o antigo de volta, esse que está na minha frente me diz nada!
Abriu os olhos, mexido com as palavras raivosas. Seguiu-se um intervalo silencioso, e deu-lhe as costas, como se a refletir sobre algo. E então virou-se novamente para si, o sorriso estampado no seu rosto fazendo-lhe arrepiar-se de medo.
Soltou uma risada sarcástica e se aproximou, ajeitando a roupa. Ao chegar bem perto do dragão marinho, inclinou-se um pouco, apoiando a mão no espaldar de sua cadeira e ficando com seu rosto próximo.
– Talvez, se eu ferir Isaac, te traga de volta. O que acha?
Em um impulso o outro segurou seu rosto e pulso violentamente, Julian gemeu de dor. Levantou-se e o empurrou a uma parede, o jovem gritou de surpresa, sendo alvo de olhos agressivos. Queria arrancar alguma reação parecida, afinal, não queria?
– Olhe para dentro de si mesmo, Julian. O motivo pelo qual ainda não lhe dei uma surra é porque sei que não seria capaz.
Um sorriso amargo ameaçou-se no canto dos lábios, e tentou falar algo, mas foi interrompido. Kanon jogou de novo suas costas contra a parede, fazendo-o lacrimejar de dor.
– Ignore a voz invejosa dentro de si e encare a realidade, está estampada na sua face, apenas você não quer ver.
Soltou-o lentamente, vendo-o arregalar os olhos, com esperança de que começasse a entender. Afastou-se e ajeitou a terno que usava, dando-lhe as costas e retirando-se. Julian continuava mirando o lugar vazio, antes ocupado pelo marina.
Deixou-se cair, sentindo-se de repente esgotado.
oOo
Não tinha certeza do porque estava fazendo aquilo, ajudando Hyoga a recolher suas coisas e encher as malas. Talvez porque fosse melhor voltar para a Sibéria, não devia mesmo pertencer àquele lugar. Saíra da sempre fria e isolada terra, trazido por Kanon depois do acidente, para onde o sol fazia suas bochechas ficarem pateticamente vermelhas.
Isso já fazia três anos, deveria ser o tempo suficiente para adaptar-se. Era-lhe mais fácil meter-se entre os empregados e fazer tarefas simples, que juntar-se aos rapazes em jogos. Bonitos e fúteis, como era a sociedade na qual nasceram. Havia sido um brinquedo para Julian, uma distração de um menino rico entediado. Porque não encarara a realidade antes? Antes de cair de novo nas armadilhas infames.
Poderia ter sido também apenas um joguete nas mãos do deus adormecido. Bem, havia jurado servi-lo três anos atrás, portando a armadura de Kraken, não? Estava destinado a ser assim?
Vasculhava o armário, jogando algumas coisas para o russo, que arrumava a última mala. Um envelope jogado no fundo de uma gaveta chamou-lhe a atenção. Pegou abrindo intrigado, encontrando algumas fotos, mas não lembrava-se delas, nem do dia em que foram tiradas.
Distraidamente, dispôs-se a olhá-las, uma a uma, parando e forçando a vista, tentando lembrar-se. Eram imagens de praia, reconhecendo ser uma das particulares pertencentes aos Solo. Retratavam uma bela tarde ensolarada, os marinas e Julian em trajes de banho.
Assustou-se ao ver-se sorrindo timidamente nelas, e então se recordou. Alguns meses antes do aniversário de dezesseis anos de Julian, e da noite em que Poseidon despertara, e a guerra contra Athena finalmente começara. Mas porque guardara ali? Em um simples envelope, escondido no fundo de uma gaveta, enquanto apenas as fotos das pessoas de sua antiga vida tinham lugar privilegiado no álbum que havia mostrado a Julian naquele dia.
Parou de virar elas, se atendo a uma foto específica. Kanon sorria, com o braço sobre seu ombro, para que não escapasse e segurava a câmera na outra mão. Sua expressão saíra encabulada, mas o sorriso não escondia que estava feliz de estar ali.
Apertou as fotos e o envelope entre os dedos, do que havia esquecido?
Hyoga fechou a última mala e pôs as mãos na cintura, virando-se para Isaac. Estranhando seu ar distraído, o chamou. O rapaz de cabelos esverdeados de virou ao chamado, e olhou de novo para a foto. Guardou tudo dentro do envelope, e então passou decidido pelo russo, saindo do quarto.
– Onde vai? – perguntou-lhe do corredor.
– Já volto. – apenas respondeu, sem pensar.
oOo
Saiu em disparada pela saída que dava para os fundos da mansão Solo, as ajudantes da cozinha de Gertrudes se assustaram. Olharam para a porta, percebendo que quem saia com tanta pressa era o menino de cicatriz. O que acontecia naquela casa, se perguntavam, uma vez que Kanon também fora visto com um humor esquisito pela manhã.
Nem se importara em se trocar, usava uma bermuda e uma regata, correndo em seus tênis já velhos e surrados. Era outono e a temperatura estava baixa, mas para Isaac não passava de um clima agradável. Não precisava olhar as imagens novamente para saber onde devia ir. Lembrava-se, lembrava-se de cada minuto passado. Pela deusa, como pudera esquecer, estar cego?
Tantas coisas mudaram depois que enfrentaram Athena e seus defensores, mas ainda estava lá, e ele não enxergara. Ou não queria enxergar.
Não precisou andar muito, mas sua corrida afobada o deixara sem fôlego. Se apoiou nos joelhos, encurvando as costas e ofegando. Deixou-se cair sentado na areia macia, fitando o horizonte limpo. O céu claro encontrando a linha do mar, de um azul escuro.
Abriu o envelope e pôs-se a procurar uma das fotos, pegou-a e estendeu o braço, comparando a imagem e a vista. Era uma foto com todos, a paisagem do mar e das rochas ao fundo. Passou a observar apenas as ondas, o vento pouco forte sacudiu os fios lisos de seu cabelo. Passou os dedos para afastá-los da fronte, acabando por tocar a cicatriz inconscientemente.
Três anos atrás, tudo o que sentia era ódio...
Por Hyoga não lhe dar ouvidos, havia tragicamente tragado para outro destino. Dava-lhe frio na espinha ao lembrar-se de como fora tragado pela correnteza, a dor lancinante rasgar-lhe o olho esquerdo. O desespero percorrendo-lhe as veias, e então... o silêncio e a escuridão.
Acordara perdido, descobrindo-se estar em uma espécie de ruína antiga. Arquitetura grega, presumiu, mesmo que só a conhecesse através dos livros de Camus. Grécia? Em que parte estaria? O ar era úmido, e não era tão iluminado quanto esperaria que fosse.
Olhou para cima, perdendo o fôlego repentinamente. Aquilo em cima dele, cobrindo todo o céu, era água!
Levantou-se de súbito na cama improvisada na pedra na qual repousava, entrando em pânico e dando alguns passos a esmo. Passou as mãos no rosto, sentindo alguma atadura cobrindo seu olho esquerdo, voltou com a mão manchada de escarlate. Apenas ajudara seu pânico e confusão aumentarem, ofegando assustado.
Mas nesse momento suas mãos foram seguras, e seus ombros envolvidos por braços fortes. A voz pedia calma, suave e madura. Falava em grego, felizmente aprendera o suficiente dessa língua para compreendê-lo. E assim se acalmou, respirando pausadamente.
O homem o virara, segurou seu queixo e analisou o estado da ferida. Pela expressão dele, percebeu que era nada boa. Percebeu que o olhara temeroso, então desfez a cara preocupada e sorriu. Embaraçado, subitamente lembrou-se de se apresentar.
– Meu nome é Isaac. – pôs a mão espalmada no peito, para então baixar um pouco a cabeça.
Ouviu o homem dar uma longa risada, olhou-o confuso.
– Eu sei. O meu é Kanon.
Em uma sucessão rápida demais de dias, descobriu-se no reino de Poseidon. O homem em questão era um de seus guerreiros, o dragão marinho. Fora convencido a integrar a tropa do deus do mar, certo de que fora traído pela deusa a qual deveria um dia proteger, e pelo seu único amigo, Hyoga.
Poseidon o havia salvo, devia-lhe obediência eterna, e jurou-lhe aos pés da armadura sagrada da divindade, antes de subirem à superfície.
Nunca mais recuperaria a visão do olho esquerdo, sendo substituído no lugar uma grande cicatriz. Ódio e orgulho feridos. Mais do que nunca queria tornar-se o monstro vingativo que representava, Kraken.
Se viu em meio aqueles jovens, com Tétis, Baian, Sorento e Io treinara. Todos sob a supervisão de Kanon. Como garotos um tanto mimados demais, não o levavam muito a sério. Mas a partir daquele momento começava sua outra fase da vida, aquele era seu novo mestre.
Julian antes de ser tomado pela ambição do deus grego, parecia-lhe muito agradável e elegante. Seus gracejos faziam suas faces cobrirem da cor vermelha, o rosto esquentar e sentir-se bem, ainda que desconfortável com a sensação. Sua personalidade misturada ao deus o amedrontava, mas ao mesmo tempo causava-lhe arrepios embaraçosos.
As batalhas se foram, seu ódio fora junto. Mas a sua nova vida continuara, ainda eram os marinas devotos a Poseidon. Kanon pedira-lhes perdão de joelhos, não fora preciso. Era o dragão marinho, e eles seus subordinados e discípulos.
Percebeu envergonhado uma grossa lágrima cair, limpou-a com as costas das mãos. Franziu as sobrancelhas, como não havia notado a presença de alguém. Fora tão sorrateiro, ou estivera tão absorvido em lembranças.
Enrijeceu-se ao ouvir a voz conhecida, a poucos passos de si.
– Isaac... Entendo o que pode estar passando. Pode não concordar, mas somos parecidos em muitos aspectos. Só peço que perdoe Julian, ele não queria, acredite.
Acreditar? Gostaria muito, mas sentia-se machucado demais para tal. Abraçou os joelhos, escondendo a cabeça entre os joelhos. Ouviu seu suspiro, mas nenhum passo fora dado. Esperou ansioso.
– Você deve sentir saudades da sua terra, da Sibéria fria, da pessoa que aprendeu a perdoar. E principalmente do seu mestre. Camus deve sentir muito sua falta também... – deu uma longa pausa – Sinto muito por ter tirado tantas coisas de você.
Som de areia, Kanon havia dado as costas e estava se afastando. Não queria que fosse, mas sentiu-se por um instante incapaz de desenterrar sua cabeça dos joelhos.
Longos minutos se passaram até que o general marina mais velho ouvisse passos agitados, e então braços passarem pela cintura e se prenderem fortes. Sentiu o corpo quente aconchegado em suas costas, surpreso.
– Eu não tenho outro lugar para ir, Kanon. – sua voz era abafada pela roupa do outro – O único mestre que tenho é você, e... também a pessoa mais importante da qual sentirei falta. – terminou em um sussurro.
O grego levou suas mãos até as de Isaac, descobrindo um papel amassado, segurado com força pelos dedos do rapaz. Tirou-o com dificuldade das suas mãos, desamassando ficando surpreso e vendo a foto. Soltou uma risada, aquela que Kraken certamente sentiria muita falta.
– Havia me esquecido desse dia.
Sua voz soou rouca, Isaac enterrou mais seu rosto contra suas costas, prestes a derramar mais lágrimas.
Seus braços foram desatados do corpo de Kanon, antes que protestasse, fora puxado. E então sentiu uma pressão nos lábios, seguida de uma invasão quente e úmida, completamente atordoante, na sua boca.
Maio/2005
N.A.: "Risada insana"
"Capota de sono"
