Capítulo 17. Ritual de morte
Eram seis horas da tarde de 31 de outubro de 1981 quando Bellatrix e Rodolfo aparataram no átrio da mansão Malfoy. O lugar estava vazio, mas eles podiam ouvir muitas vozes vindas da sala de estar. Assim, sem hesitar, os dois seguiram em direção ao som.
A primeira pessoa com quem depararam foi Narcisa Malfoy. Ela os mirou com os olhos arregalados, como se estivesse olhando para algo que simplesmente não deveria existir.
— Vo... Bella, você não morreu... — ela murmurou em tom que Bellatrix pôde identificar como decepcionado.
A jovem apenas sorriu para a irmã e falou candidamente:
— Sim, querida, estamos muito vivos e precisamos urgentemente de um chá e algumas roupas que não tenham sido compradas numa loja trouxa. Juro, odeio essas coisas amassando a todo momento — ela empurrou Narcisa para o corredor que levava à cozinha e, assim que achou que a outra não podia mais ouvi-los, cochichou para Rodolfo: — Dá para acreditar nisso? É como se estivessem torcendo para que tivéssemos sido devorados por dragões ou algo assim...
Rodolfo expressou um sorriso cansado e envolveu os ombros de Bella com um abraço, conduzindo-a pelo corredor que dava na sala enquanto dizia:
— Não se preocupe com isso. Estão é com inveja. Achavam que nunca íamos conseguir.
Ela sorriu em concordância, mas logo em seguida, como que se lembrando de algo, parou e puxou-o na direção oposta.
— O que foi?
"O que foi?" Eu conheço minha irmã e sei que ela consegue fingir muito bem na maior parte do tempo - ela andava em passo acelerado, com Rodolfo em seu encalço, e falava sem tomar fôlego, atropelando as palavras.
— O que tem isso?
— Pense um pouco, Rodolfo — ela estacou e mirou Rodolfo nos olhos de uma maneira tão intensa que ele engoliu quaisquer palavras que estivesse prestes a dizer. Ficou olhando dentro daqueles olhos negros, ávidos, determinados. — Rodolfo! Rodolfo, você está me ouvindo?
— Ah, sim... — ele voltou a si bem a tempo de perceber que Bellatrix o tinha trazido de volta para o átrio.
— Você não acha muito estranho que Narcisa tivesse tanta certeza de que estávamos mortos que nem mesmo conseguiu conter a surpresa?
— Bom, talvez ela estivesse realmente surpresa...
— Exato! — falou Bellatrix. — Ela tinha certeza que não voltaríamos. Alguém nos denunciou em Munique, algum de nós, e eu apostaria esse caduceu que Narcisa sabia — ela concluiu e puxou a manga das vestes, revelando a tatuagem de caveira dos Comensais.
Ela pressionou a unha bem entre os olhos da caveira e só teve que esperar um instante antes que a figura sombria de Lord Voldemort surgisse no átrio dos Malfoy. Não estava sozinho. Trazia, agarrado pelas vestes, um bruxo mirrado, com os dentes da frente muito proeminentes, guinchando de terror como um roedor assustado.
A luminosidade azulada emergia da superfície cristalina do líquido no caldeirão. Cintilava nas paredes de maneiras estranhas e imprimia sombras cadavéricas nos rostos humanos ao redor.
Bellatrix observava enquanto três bruxos discutiam as condições da masmorra. Achavam que estava úmida demais, o que talvez atrapalhasse o ritual. Deixou escapar um muxoxo de impaciência. Nunca fora uma exímia preparadora de poções, mas sabia que o que iria ser feito ali pouco tinha a ver com aquele caldeirão. Era apenas um disfarce. Distração, para que ninguém depois pudesse dar pistas do que estava para acontecer.
Apertou com mais força o cetro entre os dedos. O caduceu. O poder imortal das serpentes. Não à toa Salazar Slytherin deixara como legado aquele símbolo para sua casa e para o brasão da escola que ajudara a criar. Era um lembrete de que algo dele sempre estaria ali, renascendo e se renovando a cada geração. Suas palavras haviam sobrevivido aos séculos sem grandes perdas, como cobras que, ao ficarem velhas, trocam de pele e reaparecem vistosas e brilhantes.
Narcisa passou pela porta entreaberta, suas mãos segurando a capa azul-celeste bem junto ao corpo. Tinha no rosto uma expressão de repulsa e lançava olhares desgostosos para as paredes com infiltrações. Aproximou-se de Bellatrix e ficou em pé junto à irmã, os lábios comprimidos e um ar de quem tem algo para falar, mas não tem certeza de como começar.
— Não se preocupe — murmurou Bella, jogando para trás o capuz da capa e revelando a cabeleira negra que refletia intensamente o brilho das chamas sob o caldeirão. — Apenas diga a seu marido para andar na linha e eu finjo que não percebi que você sabia de tudo.
— Nos disseram para preparar as coisas para a queda do Lord. Lúcio até mandou construir uma sala secreta debaixo da sala — sussurrou Narcisa, lançando olhares ansiosos para os demais bruxos na masmorra. — Mas não sabíamos de nada disso antes de você partir. Só depois ficamos sabendo que alguém ia denunciar vocês.
— E pode ter certeza de que esse alguém vai ser encontrado em pedaços menores que o Régulo assim que isso tudo terminar— garantiu. — Quanto a vocês, não vou fazer nada por enquanto, embora eu saiba que isso tudo é mentira e que vocês sempre souberam que Snape ia nos trair. Ele e seu marido sempre foram próximos e, agora que as coisas estão ruins para o nosso lado, não há forma melhor de pular fora que nos jogar nas mãos dos aurores e posarmos de vítimas. Mas não vou comentar isso com o Mestre, ainda que eu queira muito que vocês paguem. E não é por causa da traição.
— E por que é? — Narcisa levantou as sobrancelhas pálidas.
— Por eu ter tido que me casar com Lestrange — Bellatrix ergueu o dedo com a aliança para a irmã, que deixou escapar uma exclamação de surpresa.
Os bruxos saíram da masmorra ainda discutindo. Narcisa os seguiu, não sem antes lançar um último olhar curioso a Bellatrix. A jovem Comensal ficou no escuro.
Girou o caduceu bem diante dos olhos negros, admirando a precisão do trabalho. Não trabalho humano, mas mágico. Magia antiga e poderosa. As duas serpentes se enrolavam no bastão, quase perfeitamente simétricas. Suas cabeças retangulares se encontravam no alto, os olhos de pequenas esmeraldas precisamente alinhados para se encararem mutuamente. Em vez de escamas, seus corpos sinuosos eram marcados por precisas inscrições. Runas. A mais antiga escrita de poder. Na base do cetro, uma terceira serpente se enroscava formando um anel com a cauda na boca.
Os objetos mágicos, ela sabia, tinham um valor simbólico muito significativo. O simbolismo fazia parte de seu poder, era a conexão da técnica moderna com os rituais antigos que tinham criado a noção de magia. E o caduceu de Shesha era cheio de simbolismos.
A serpente. A regeneração que pode conduzir à imortalidade. A sabedoria que alcança não só o presente, mas a totalidade do tempo. O potencial de morte, o comportamento sorrateiro, ardiloso. Sua mágica de envenenar sem se envenenar. Nesse sentido, quem sempre pretendera usurpar a esperteza da cobra fora o ser humano, concluiu ela. Grandes deuses mitológicos lutaram com serpentes para lhe subtraírem o poder. Às vezes conseguiam, às vezes eram passados para trás pela víbora. Mas nenhum mortal jamais chegara perto disso. E agora seu Mestre conseguiria.
Ela ouviu os passos secos ecoando no corredor e se virou para a porta bem a tempo de vê-la sendo aberta por Rodolfo. Ele lhe lançou um olhar vago e abriu espaço para que Lord Voldemort pudesse entrar. Depois, sem dizer nada, foi embora.
Bellatrix esboçou um sorriso quando seu Mestre lhe estendeu a mão, pedindo o caduceu. Ela o entregou, os olhos brilhando de contentamento. Voldemort examinou o objeto por alguns momentos, correndo os dedos finos pelas inscrições. Depois olhou para Bella. Não sorriu. Mas aquela seriedade, ela sabia, era na verdade um sinal de cumplicidade.
Ele não teria pedido a mais ninguém. Não confiaria em mais ninguém. Ele a preparara como bruxa e como pessoa para aquele momento desde que era apenas uma estudante. De propósito, fizera-na subir devagar, por seus próprios esforços. E agora ela se tornaria a maior dentre todos os outros. A melhor. Depois daquilo, ela nunca poderia deixá-lo.
Bellatrix se levantou da cadeira e desamarrou o cordão da capa. Deixou-a escorregar para o chão, ficando apenas com suas vestes negras. Havia sido preparada com muito cuidado. Os pés descalços, os cabelos molhados. Tudo fazia parte do ritual.
Voldemort fez um movimento de varinha para acender uma pira, posicionada bem no meio da masmorra. Bella andou até làsentindo arrepios percorrerem seu corpo. A umidade, ela tentou se justificar. Mas a verdade era que, agora que o momento havia chegado, estava com medo. Como poderia não estar?
Procedimento simples. Matar a alma do último guardião, que ainda estava presa ao caduceu. Então, vazio, ele estaria pronto para ser usado. O ritual fora aprimorado por Voldemort. Ao invés de confiar sua alma mortal a um objeto, ele a entregaria a Bellatrix.
— Está pronta? — a voz aguda de Voldemort ecoou nas paredes de pedra, se misturando ao som da água que escorria pelas paredes.
— Mestre, sabe que sempre estou pronta — Bella respondeu com uma firmeza que surpreendeu a ela mesma.
Imortalidade. O sonho louco da alquimia e da magia. Pelo que sabia, até os trouxas perseguiam esse sonho. Ela ia realizá-lo naquele momento. A luz alaranjada do fogo parecia insuficiente para lidar com toda aquela escuridão. Não se espalhava. E não havia calor.
Voldemort pousou o caduceu dentro da pira, em meio às chamas. Não queimou as mãos; sua magia era mais forte que isso. Em poucos instantes, o metal ficou incandescente, mas emitindo luz verde. Uma densa fumaça cinzenta se ergueu dos olhos de esmeralda. Um cheiro familiar impregnou a masmorra. Cheiro de morte. Bellatrix o conhecia muito bem.
Para os bruxos antigos, a morte nada mais era que um ritual de magia. Aquele, ela sabia, era um ritual de morte, embora sua vítima há muito não tivesse um corpo físico. Talvez ansiasse por aquilo. Ser libertada do mundo e poder, enfim, morrer.
Os antigos guardiões dos segredos da imortalidade haviam sido os primeiros a usarem aquele ritual. Seu destino, eles sabiam, seria serem assassinados por guardiões mais jovens e mais fortes que, então, tomariam para si a tarefa. Era uma regra selvagem, mas era o ritual, o mesmo que depois foi usado na sucessão das dinastias reais. A morte para eles era parte dos ciclos e ritmos regenerativos que movem o mundo e a natureza, a revitalização da existência, da vida e da magia.
Linhas amarelas se desenharam em toda a extensão do caduceu. Brilhavam intensamente. Bellatrix apertou os olhos para continuar observando. Foi de repente que aquela casca se partiu e os estilhaços voaram em várias direções. Ela ergueu o braço para proteger o rosto, mas nada veio em sua direção. Quando voltou a olhar, não viu cedro nenhum. Em vez disso, havia na pira duas serpentes de chamas esverdeadas.
Bella ergueu os olhos para seu Mestre, que sorria em contemplação. Uma das serpentes se ergueu acima do fogo, preparando um bote. Seus olhos, pequenos círculos brilhantes, se fixaram nos de Bellatrix. Ela inclinou a cabeça para trás e puxou os cabelos para longe dos ombros, oferecendo seu pescoço à víbora.
Antes que pudesse pensar em ter medo, sentiu os dentes, não transpassando, mas queimando sua pele pálida.
N/A.:
Às voltas com o desafio S/B do forum 3V acabei esquecendo de atualizar a fic u.u
bjos o/
Bel.
