Capítulo 18 Guardiã de alma
Quem você pensou que enganava dizendo que ia ao exterior numa missão? Agora vejo o belíssimo contrabando que trouxe de lá... – Rabastan Lestrange ria, acompanhando o irmão para dentro do bar/pensão na Travessa do Tranco.
Rodolfo não lhe deu atenção e correu os olhos pelo lugar. Edghar Munch estava no momento muito atarefado com os pedidos de um grupo de bruxos particularmente barulhento. Havia algo de nostálgico no ar, um certo fantasma do tempo que preenchia todo o lugar. Rodolfo parou a caminho do balcão, os olhos presos na entrada para o corredor que levava à parte de trás do bar, onde costumava freqüentar reuniões com jovens militantes.
Então todas as alemãs são beldades ou você só deu sorte? – Rabastan ainda troçava quanto bateu no balcão tentando chamar a atenção do dono do estabelecimento.
Rodolfo cruzou os braços num ar de reprovação e o irmão apontou para a mulher que chegara com ele - Bellatrix, que aguardava um pouco mais pálida que o normal, se apoiando pesadamente na moldura de uma porta. Ela estava distante desde que estivera sozinha com Voldemort na mansão Malfoy. Insistira, estava absolutamente certa de que os Malfoy tinham algo a ver com a traição que quase pusera a perder toda a missão. Rodolfo não tinha tanta certeza, mas, pensando bem, não havia nenhum forte motivo para confiar em Lúcio Malfoy. Voldemort, no entanto, adiara o assunto em favor da aplicação imediata do caduceu.
Munch se aproximou trazendo consigo uma braçada de garrafas de cerveja amanteigada vazias a caminho do balcão.
Eu... hum, quero um quarto para dois - falou Rodolfo, ignorando a risada do irmão.
Edghar fez com que as garrafas flutuassem para prateleiras acima de um armário e desapareceu por uma porta lateral, ordenando à mulher que preparasse um quarto. Entrementes, Rabastan recomendava que Munch colocasse Rodolfo e sua acompanhante na "suíte de lua-de-mel".
Agora me diga, garoto, quem é essa florzinha? – Munch voltou ao balcão e inclinou o rosto na direção de Bellatrix.
Ela não me é estranha... – murmurou Rabastan, pensativo.
Vocês não sabem? – Rodolfo se apoiou no balcão, com um ar de pouco caso. - É Bellatrix Black. Vocês a viram aqui por mais de um ano fazendo recrutamento de comensais.
Munch forçou a vista de uma maneira estranha para Bellatrix, como se duvidasse de Rodolfo.
Ela é aquela maldita peste mandona que enchia meu bar de moleques? Aquela menina virou essa... - ele não conseguiu encontrar qualquer palavra digna de completar a frase e apenas entregou a Rodolfo a chave do quarto número 21, ainda olhando para Bella com os olhos arregalados.
Rodolfo apenas observava com curiosidade enquanto Bellatrix respirava pausadamente, adormecida, os compridos cabelos negros ainda úmidos se espalhando sobre o travesseiro como um véu brilhante. Ela chegara ao quarto e imediatamente se enfiara no banheiro, saindo apenas meia hora depois para mergulhar num sono pesado.
Não haviam trocado nem uma única palavra desde que tinham deixado a mansão Malfoy. Ela parecia exausta demais até mesmo para falar. Ele se lembrava de tê-la apoiado na subida das escadas em direção ao quarto; os pés dela mal conseguiam erguê-la de um degrau a outro. E agora, enquanto ela dormia, Rodolfo podia ver algo que tinha absoluta certeza de que não estava lá antes de entrarem mansão Malfoy.
Duas pequenas marcas, como finíssimas queimaduras, na base do pescoço, com filetes de sangue seco descendo em direção ao ombro esquerdo. Lembrando-se da imagem do caduceu, ele apenas podia supor o que ela aceitara fazer por seu Mestre.
Sempre soubera que Bellatrix era, entre todos os Comensais, a maior protegida de Voldemort. Rodolfo até mesmo sabia da paixonite que ela alimentara por seu Mestre durante a adolescência. E se lembrava de ter se abalado seriamente quando pareceu que Voldemort se importava de alguma forma com as cartas infantis de Bella que Rodolfo lhe encaminhava, supondo que essa atitude faria a garota perder a altivez quando percebesse que o Lorde jamais se daria ao trabalho de responder.
Voldemort, no entanto, respondera não apenas uma, mas muitas daquelas cartas. E, como não podia fazer nada contra seu Mestre para aliviar aquele sentimento que ele não sabia bem o que era, Rodolfo concentrara suas energias em dificultar ao máximo as coisas para Bellatrix. Dificultava seu acesso às reuniões, mantinha-a afastada das discussões, dava-lhe tarefas minoritárias. Ele não a conhecia bem naquela época, não sabia que tudo isso apenas a tornaria ainda mais determinada a galgar caminho dentro do Movimento Comensal.
E onde aquilo tudo os havia levado? À Alemanha, aos confins da Floresta Negra atrás de um cedro de serpente idiota, e agora àquele quarto, onde Bellatrix parecia ter tido drenado um bom bocado de sua energia.
Ele ouviu batidas afobadas e mirou o relógio. Já passara da meia noite. Mesmo assim, se ergueu da cama, cobriu Bellatrix com o lençol e se aproximou da porta. Abriu apenas uma fresta, o suficiente para ver a expressão preocupada de Rabastan enquanto falava sem tomar fôlego:
Estão-dizendo-que-ele-se-foi!
Rodolfo demorou alguns segundos para entender o que o irmão queria dizer e, quando finalmente entendeu, a lembrança do bruxo que chegara com Voldemort à mansão Malfoy o atingiu e ele correu escada abaixo em direção à lareira que havia junto à entrada da pensão.
Não é possível! Simplesmente não é possível... - Bellatrix repetia e repetia para si mesma enquanto andava de um lado para o outro.
Era tarde de primeiro de novembro e ela e Rodolfo estavam sozinhos num dos esconderijos usados por Lord Voldemort. Mesas cheias de papéis, cinzas na lareira, cadeiras viradas. Tudo ali parecia abandonado, como se seus ocupantes tivessem fugido às pressas. As últimas horas tinham sido um verdadeiro caos para todos os Comensais. Eram prisões e mais prisões sendo executadas, as pessoas anunciavam o desaparecimento de Voldemort e comemoravam em todos os lugares com festas e exibições de luzes. Falava-se em um herói que mal sabia balbuciar palavras, um bebê que fora o responsável pelo desaparecimento de seu Mestre.
Inconformada, Bella resmungava para si mesma como se nada daquilo tivesse qualquer sentido lógico. Ainda estava pálida, Rodolfo reparava, mas parecia ter recuperado completamente as forças ante à situação.
Não, não, Rodolfo, não faz sentido, ele não desapareceu.
Certo - ele falou, como se não se importasse realmente. - Então como você explica isso? Acha que ele fingiu que foi derrotado pelo bebê dos Potter? O que ele ganharia com isso?
A resposta veio na forma de um grito de fúria e, quando Rodolfo se deu conta do que tinha acontecido, Bellatrix o segurava pela gola das vestes e o pressionava contra uma parede com a ponta da varinha pressionada dolorosamente contra seu pescoço.
Eu lhe digo o que houve: ele foi de alguma forma enganado e aqueles aurores malditos fizeram algo que o deteve - falou Bella entre dentes.
É mesmo? Como você sabe que ele simplesmente não morreu? Pessoas morrem, sabe? - retrucou Rodolfo, tentando se manter alheio à ameaça.
Eu sei - ela fez, abrindo um sorriso vitorioso. - Mas quem foi que te disse que Lord Voldemort é uma pessoa?
Como se só então percebesse o que estava fazendo, Bella arregalou os olhos para Rodolfo e o largou, voltando a andar e resmungar como se ele simplesmente não estivesse ali.
Não é uma pessoa? O que você quer dizer com isso? - e ao que Bellatrix o ignorou, ele acrescentou: - Ele é um vampiro?
Bella não pôde conter uma gargalhada divertida. Voltou-se para Rodolfo, sem fôlego de tanto rir.
O que te faz... O que te faz pensar nisso? Por acaso você já viu algum vampiro fazendo magia?
Ele a mirou com raiva e andou até ela, dessa vez ele agarrando-a pela gola, afastando seus cabelos compridos e revelando as duas marcas do lado esquerdo do pescoço.
É isso, Bella, é isso que me faz pensar nessa possibilidade.
Ela o mirou atônita, vendo nas feições de Rodolfo algo que ela só vira no dia em que ele se enfurecera porque ela queria permanecer na Bulgária ao invés de retornar à Inglaterra com ele. Era uma expressão de desesperado desolamento, de alguém não que não estava realmente com raiva, mas queria parecer que estava.
E, se dando conta daquilo, Bellatrix sentiu, pela primeira vez em toda a sua vida, a necessidade de se explicar a alguém. E foi o que ela fez, mesmo sabendo que havia coisas mais urgentes que aquela situação ridícula, mesmo com a plena consciência de que não devia aquilo a Rodolfo.
O caduceu... Eu e o Mestre fizemos... - ela suspirou longamente. - Bem, não acho que você possa entender, eu tive que ser preparada por quase um ano para entender totalmente o que fizemos. Aquela coisa, o caduceu, era um recipiente. Guardava a alma de uma vítima de sacrifício usada pelo último bruxo que tentou evocar seu poder. Ele não conseguiu, provavelmente morreu durante o ritual. O Mestre se preparou para não ter o mesmo destino. Ele modificou o feitiço do caduceu e o usou para guardar sua alma em mim. Sem uma alma humana ele é agora imortal. E é por isso que eu sei que ele não pode ter morrido. Se isso tivesse acontecido eu... eu estaria morta.
Bella não esperava nada diferente que aquele silêncio de descrença que se seguiu à explicação. Talvez Rodolfo a amasse, mas nunca seria capaz de entender. Não tinha a mesma vontade cega que a guiava, sua obsessão e sua razão de vida. Ele era um Comensal de mãos limpas, como ouvira uma vez alguém se referir a ele. Nunca fora escalado para um assassinato frio. Só matara pessoas em batalhas, duelos.
Bella, por outro lado, era em seu âmago uma assassina dentro do Movimento Comensal. Era temida por todos os inimigos do Mestre - uma sombra fria e destrutiva. Era talvez ainda mais temida pelos aliados de Voldemort.
Rodolfo ainda mirava Bellatrix sem conseguir assimilar o que ouvira quando dois estalos consecutivos chamaram sua atenção. A figura mirrada de Bartolomeu Crouch Júnior se materializou no esconderijo apenas um instante antes da silhueta maciça de Rabastan Lestrange. O jovem de dezenove anos saíra da pensão com Bella e Rodolfo e fora incumbido de verificar os demais esconderijos dos Comensais em busca de alguém que tivesse maiores informações sobre o que havia acontecido.
Vocês... vocês não foram pegos! - exclamou Bartô. - Longbottom está pegando todos...
Do que está falando? - perguntou Rodolfo.
Eles com certeza sabem o que aconteceu, aqueles aurores – resmungou Rabastan, se sentando numa cadeira de modo desleixado.
Bellatrix mirou o rapaz, incomodada. Não gostava da presença do irmão de Rodolfo. Rabastan era descuidado e sempre cometia erros infantis. Por culpa dele, o Movimento tinha sido exposto para a imprensa um ano antes, quando o corpo de Régulo fora encontrado completamente destroçado. Nem um pouco profissional, Rabastan havia sido afastado das atividades centrais dos Comensais e parecia imaginar que, agora que o irmão estava de volta, poderia voltar a uma posição de liderança.
Eles não sabem - concluiu Bella, categórica. - Ouvi dizer que prenderam o idiota do Sirius. Acham que ele é um Comensal, vejam só... - completou sacudindo a cabeça.
Longbottom sabe - insistiu Crouch. - Ele está comandando as buscas por Voldemort. Eu digo que temos que encontrá-lo antes. Só sobramos nós para fazer isso. Todos os outros são covardes demais para fazerem qualquer coisa.
Bellatrix olhou sugestivamente para Rodolfo e, com um discreto aceno de cabeça, ele aceitou. Estavam juntos. Não importava que sua missão tivesse terminado. Não importava que ele achasse mortalmente idiota que ela tivesse aceitado a proposta de Voldemort. Não importava se ela estava furiosa com ele por não compreender.
Nada mais importava. Eram os Comensais a quem Voldemort confiara sua vida. E não era hora de decepcioná-lo.
