Seiya
Autores- Lexas / Kiki-chan
Revisão - Naru L
Aquela cadeira de metal era terrivelmente incômoda para quem havia passado as últimas horas sentado, com direito a ouvir discussões em tempo integral. Quem é esse alguém? Eu, claro. Não que seja do tipo que adora se martirizar. Tenho a tendência de ignorar coisas que me façam sofrer, a não ser que me forneçam algum tipo de força.
Ignorar. Era isso que tinha que fazer. Passei anos a fio aprendendo como simplesmente desprezar qualquer coisa que me atrapalhasse. Todavia, fingir por tanto tempo cansa e aborrece.
Qualquer um que me conheça na infância poderia duvidar da minha profissão atual, agente. Não, nada de 007 ou essas coisas que façam para vender. Simplesmente duvidariam porque o pequeno Seiya era incapaz de mentir. Mas essa arte é fundamental para viver e não importa o quando duro seja, você tem que aprender. Mesmo que ao fazer isso ainda sinta um desconforto no estômago, como eu.
-Ei, Shyriu – Perguntei para o homem adormecido no leito do hospital – Consegue se lembrar?
Com um suspiro desanimado, embrenhei os meus dedos no cabelo bagunçado. Tanto tempo acordado sem ao menos uma mísera xícara café. Era natural que meus neurônios se recusassem a trabalhar. Desviei meu olhar para o relógio no alto da parede pálida. Realmente, já era bem tarde, bem além do horário de visitas. Um sorriso sarcástico brotou nos meus lábios. Quem se importava? Já invadi uma clínica às três da manhã, peguei as informações e ainda simulei um tornozelo torcido.
Voltei a observar meu provavelmente aposentado companheiro de missão. Sim, aposentado. As chances de ele voltar à ativa eram praticamente nulas e na organização em que trabalhávamos não havia lugar para... hm... Pessoas incapazes de utilizar a visão. Ou seja, ele estava fora.
Shiryu e eu não éramos exatamente a melhor combinação para se trabalhar. Ele vivia resmungando que eu era barulhento e infantil, sem contar que sua língua viperina sempre tinha algum comentário quando me via atrapalhado em frente ao computador. E eu também não poupava reclamações. Meu colega era certinho demais, pensava demais e isso é definitivamente irritante. Parecia um operador de telemarketing, sempre com respostas mecânicas e principalmente, os operadores de telemarketing NUNCA te deixam falar ou dar sugestões, empurram milhares de instruções para você e acabou. E quando eu conseguia soltar algumas palavras, ele simplesmente me olhava como se eu fosse uma espécie de elefante com pintas roxas e meu Q.I fosse abaixo de zero.
Contudo, enquanto continuava com os olhos pregados no corpo inerte, tinha uma vontade de largar tudo. Não exatamente pelo agente-com-aposentadoria-forçada, mas sim por minhas memórias estarem cheias de memórias daquele tipo e aquilo certamente me desgastava.
Nesses breves momentos de 'eu estou desolado', contesto meus motivos. Alguns podem pensar que o que me move é a diversão, adrenalina ou qualquer outro motivo que leve em consideração o indescritível prazer por aventura, levando em conta meu jeito um tanto impulsivo de ser. Claro, estaria mentindo descaradamente se dissesse que tenho um motivo nobre, como salvar a reencarnação de Buda. A minha razão era egoísta e mesquinha, mas e daí?
-Então... –Comecei – Quem teria feito isso com o 'eu-sou-um-deus,seu-mortal.-Não-erro'?
Poderia compar�-lo com um Dragão que voava alegremente no céu e uma bomba malvada cortou suas asinhas. Claro, que teimoso como Shyriu era, iria se arrastar até o fim, mesmo sem asas. Pobre Dragão 'desasado'.
Uma risada amarga saiu dos meus lábios e minha cabeça pendeu para trás. Eu era realmente podre. Meu ex-parceiro estava cego e eu falava de como o mundo seria melhor com sua ausência. Shiryu tinha o seu valor, mesmo que eu nunca fosse falar isso. Nós passamos por muitas situações perigosas e ele sempre acabava encontrando uma saída.
O que talvez servisse de consolo para o meu colega era que, no fim, sempre fizera o que gostara.
Senti meus ombros se curvarem e minhas pálpebras pesarem. Tudo o que eu queria era dormir. Olhei mais uma vez para Shiryu e revirei os olhos. Estava preocupado com aquele bastardo.
Minha cabeça começou a doer. Nada havia me preparado para aquele tipo de situação. As palavras de Saori vieram à tona, principalmente a parte em que ela falava que tínhamos um traidor entre nós. Meus pensamentos se resumiam na senhorita Kido dizendo: 'Acredito que temos um traidor entre nós. Acredito que temos um traidor entre nós. Acredito que temos um traidor entre nós. Acredito que temos um traidor entre nós. Acredito que temos um traidor entre nós'.
Se minha mãe estivesse viva, com certeza diria que tudo aquilo era punição de Deus. Minha boca se curvou em um meio sorriso. Que Deus cruel para castigar alguém em vida.
Respirei profundamente, tentando lidar com a confusão em que estava. Eu poderia simplesmente culpar Saori por tudo e passar a odi�-la por errar. Por mais que eu blasfemasse Shiryu, não poderia deixar de ficar revoltado com aquilo. No entanto, eu realmente não conseguia. Não sei se é exatamente 'amor' o que sinto por ela, não me importo totalmente.
Era estranho. Mesmo sendo confirmada a informação de um traidor, ainda assim todos a odiariam muito mais do que já faziam. E por que não? Argumentos não faltariam. Se desejássemos, falaríamos que ela não calculara bem e fora muito precipitada em deixar Shiryu partir sozinho.
Balancei a cabeça. Ela era quem deveria estar mais abalada. A organização era como uma fortaleza, mas que se revelava algo como um... castelo de cartas. Os membros que sabiam sobre a identidade do meu ex-parceiro eram poucos e com cargos importantes. Ninguém cogitaria uma traição, nem mesmo Saori. Que sensação esquisita não poderia confiar em ninguém.
Lembrei-me dos tempos em que o avô de Kido comandava. Um homem de postura inabalável, que exalava poder. Confiávamos nele e o obedecíamos perfeitamente, mas era passado. Coisa para ser esquecida.
A porta se abriu num rangido fraco e me assustei, afinal nenhum passo fora ouvido. Anos na função, ensinam a enfermeira a caminhar pelos corredores do hospital em total silêncio, como se fosse um fantasma. A luz forte entrava no quarto contrastava com a escuridão que estava no cômodo. A mulher de branco aproximou-se do paciente e certificou-se de que o homem no leito estava bem. Rabiscou algo na prancheta e partiu.
Sai do canto do recinto em que tinha me ocultado. Era bobagem me esconder, porém preferia evitar perguntas insistentes da enfermeira. Coloquei as mãos no bolso e caminhei para a saída. A verdade era inexorável.
Fechei a porta do quarto de Shiryu e me dirigi ao banheiro. Liguei a torneira e coloquei a cabeça debaixo d'água. Gelada, como aquela sensação era agradável. Gotas iriam escorrer por minhas costas e molhar toda a camisa, entretanto essa era a última coisa que poderia passar por meus pensamentos.
Meus dedos apertaram o mármore da pia e criei coragem para fitar meu provavelmente acabado reflexo. Olheiras, face mais ou menos pálida. Realmente, minha imaginação estava ficando cada vez mais próxima da realidade. Espalmei minha mão no espelho e suspirei. Então, era isso. Estava sozinho. Qualquer um poderia ser o traidor, portanto nada de contar informações para os outros. Até mesmo Saori poderia ter traído o grupo.
Ser anônimo não é uma perspectiva muito boa. Se você é uma daquelas pessoas que se inicia no meio militar para ter uma salva de tiros no funeral, receber medalhas, ser homenageado e essas coisas pomposas, o meu serviço não serve. Mas o que atrai, é o pensamento de estar seguro. Claro, foi um tanto ingênuo pensar que estaríamos protegidos pelo anônimo. Sou Pegasus em missão, mas aquele codinome um tanto mitológico não era mais uma segurança, muito menos um segredo. Estava totalmente... vulnerável.
É por isso que eu odeio a porcaria da sensação de estar sozinho em qualquer coisa. Primeiro é a solidão, depois seu cérebro processa as informações e você se descobre vulnerável e finalmente, vem o medo. Esse é o motivo pelo qual trabalhamos em duplas normalmente. Evitamos a solidão, a vulnerabilidade e o medo. A tríplice aliança mais perigosa e a mais desprezada por mim. Essas são emoções que certamente me irritam.
Tanto quanto Saori, eu ODEIO falhar. E o medo faz você errar umas duzentas vezes mais que o comum.
- É isso ai, colega... –Disse para minha imagem.
Por um motivo egoísta e entrei e por um motivo egoísta vou continuar.
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A primeira coisa que eu tinha que descobrir era qual o objetivo do traidor. Desfalcar o grupo era algo óbvio, quem estava fazendo aquilo com certeza tinha uma pessoa para atingir. Não posso pensar em quem ficaria realmente abalado com o acidente do Shiryu a ponto de se descontrolar completamente. Só se fosse... Saori. Ela realmente estava abatida.
A próxima pergunta era: por que alguém faria isso com Saori? Sorri laconicamente.
Primeiro: quase todos desprezavam Saori.
Segundo: Ela era a líder da organização.
Terceiro: Como líder, se ela cometesse erros ou ficasse muito afetada, a organização já era.
Molhei os lábios com a língua e voltei-me ao hamburger que me aguardava pacientemente na caixa. Meu estômago estava um tanto revirado, mas precisava me alimentar para pensar direito. Não entendo como Shiryu conseguia passar tanto tempo pensando, era realmente um saco. Milhares de possibilidades e você tem que analisar todas. Não era para mim.
- Posso ver fumaça saindo de sua cabeça, Seiya. – Uma debochada voz feminina falou perto de meu ombro.
Bufei.
- Não está acostumado a pensar... Entendo – Ela riu.
-Minha querida irmãzinha... –Comecei enquanto sentia que ela envolvia meus ombros com uma espécie de abraço. Olhei para cima e a vi com um sorriso divertido nos lábios – em certas situações, pensar é dispensável.
-Oh sim! Quer dizer que para você TODAS as situações desprezam essa arte?
-Você pegou o espírito da coisa! Meus parabéns!
Marin deu uma pequena gargalhada antes de se sentar ao meu lado. Deu uma rápida olhada na tela do celular e me fitou com aqueles olhos intensos. Era uma característica dela, a intensidade em tudo que fazia. Talvez por isso eu ainda tivesse uma espécie de... temor quando brigava com ela.
-Shiryu não está junto hoje?
Estreitei meus olhos.
-Ele tem de estar em tempo integral ao meu lado?
Marin levantou as mãos em sinal de rendimento e encolheu os ombros.
-Calma, eu só estava perguntando. Então... Posso ajudar?
-Como assim?
Ela revirou os olhos e me encarou como se quisesse dizer 'seu idiota!'.
-Ajudar você a pensar. Parece bem enrolado com isso.
'Marin... me ajudar?' Não parecia bem certo a princípio. Estávamos com um traidor à solta e qualquer informação deveria ser guardada, mesmo que ela fosse uma parente próxima.
Bem, ela era minha irmã, afinal... Não éramos as pessoas que se davam melhor no universo. Brigávamos como gato e rato até os dezessete anos, todavia, pelo menos na teoria eu poderia contar com ela, certo? E de qualquer forma, eu não iria conseguir resolver aquilo sozinho.
Respirei fundo.
-Ok. Há uma poderosa organização e um dos membros do alto escalão sofreu um... imprevisto em uma missão. Não foi por falta de planejamento, a tarefa dele era algo supostamente simples. Por esse motivo, supõe-se que exista um traidor, pois acesso ao plano é restrito, e as pessoas naquela organização trabalham sendo anônimas. E só o alto escalão sabe a verdadeira identidade do membro ferido. O problema é descobrir o intruso.
Marin pareceu pensar por um instante. Mordeu o lábio inferior e estalou os dedos de leve, como fazia quando estava imersa em divagações.
-Você tem pistas do traidor? –Perguntou.
-Achei que a pessoa que mais se atingiria com isso seria o líder. E não faltam motivos para atingi-lo... também tem o fato de quase todos os membros não gostarem do chefe. Mas ao mesmo tempo, o líder pode ser o traidor também.
-Entendo. Problema difícil... Algum suspeito?
Balancei a cabeça em negativa.
-Vamos ter que ir pela psicologia então. –Sorriu e pegou uma caneta na bolsa e tirou uma folha da agenda – Seguiremos pela base de que querem atingir o chefão. –Desenhou um C do centro do papel – A pessoa tem que ser bem esperta, já que se infiltrou de modo brilhante lá dentro. Se o alvo é o líder, o indivíduo não deve parecer que o odeia demais, nem que o adora muito.
-E daí?
Ela suspirou.
-Pelo que me disse, o chefe não é muito apreciado lá. O primeiro passo de alguém que quer se infiltrar é juntar-se ao grupo, só que não pode passar a imagem que o odeia demais, quer queira, quer não, esse será o primeiro suspeito. Digamos que a pessoa provavelmente demonstra seu desagrado pelo líder, mas não fica reforçando isso a cada minuto.
-A pessoa não pode ficar neutra ou fingir que adora o líder?
-Pode, mas ao menos que o individuo tenha sido colocado lá em cima direto, ele teve que se juntar ao grupo. Não adianta mentir uma adoração ao chefe se vai ser rejeitado pelos outros. A confiança dos companheiros é importante, e como todos não amam o chefe, demonstrar um pequeno desprezo seria considerado uma atitude normal.
Minha cabeça estava cheia e começava uma dor incômoda. Parecia que surgiam cada vez mais possibilidades!
-Ok, chega por hoje. Prometo que vou pensar sobre tudo isso.
Ela riu e guardou as coisas na bolsa.
-Boa sorte, mas... e Shiryu?
-Por que insiste nele?
-Seiya... eu trabalho com hospitais, esqueceu? Soube que ele foi internado, é algo grave?
-Não. –Menti –Só umas fraturas leves.
-Entendo, mas mesmo assim você parece bem preocupado.
-Eu, preocupado?
-Claro, ele é seu amigo, não é?
'Shiryu, meu amigo? Que espécie de pessoa Marin era? Uma estúpida?' Qualquer um que nos visse, acharia que éramos rivais ou coisa parecida.
-Marin, você só pode estar delirando...
-Não, eu trato de pessoas que deliram todos os dias, mas não me influencio por isso. Ele é seu amigo sim. Sabe disso melhor que eu.
-Por que fala isso?
Ela pegou na minha mão e sorriu tristemente.
-Você o escolheu para saber do segredo.
Continua...
