O Visitante
Autora – Madam Spooky
Revisão – Naru L
O plano era simples. Simples demais para dar certo. Eu só tinha que entrar no apartamento do meu irmão, revirar as coisas dele e descobrir o que estava acontecendo na Organização que ele relutava tanto em me dizer.
Revirei os olhos, lembrando do que tinha descoberto entre um boato e outro. Hyoga e Seiya tinham feito visitas à Saori desde que todos ficamos sabendo que Shiryu ficaria cego. Pelo humor de Cisne as poucas vezes em que cruzamos pelo prédio, devia ter se deparado com um muro chamado "informação confidencial", a frase favorita dos chefes quando estavam pouco dispostos a falar. Quanto a Seiya, imaginei que teria coisas mais interessantes a tratar com Athena que o fracasso de uma missão. Um caso curioso era assistir até quando os dois iam conseguir continuar enganando todo mundo.
O prédio onde Ikki vive desde que se formou no colegial fica na pior parte da cidade, um lugar cheio de bares baratos, casas de streepers e pontos de agiotagem. O último lugar onde um agente secreto em boa situação financeira escolheria residir. Assim que estacionei na frente de lugar, um bando de garotos de rua encostou, pedindo trocados e me olhando como se tivesse acabado de aterrissar uma nave espacial no meio da rua. Sorri para eles, me sentindo ligeiramente deslocado, e distribui moedas com a condição de que tomassem conta do veículo.
Olhei em volta, a rua estava deserta. Entrei no prédio como se estivesse acostumado a ir até ali, ignorando que era a segunda vez em mais de três anos que eu pisava naquele lugar. Meu irmão e eu sempre fomos parte de mundos diferentes. Nosso trabalho era a única coisa que nos unia desde que nos tornamos adultos. Ainda falávamos ao telefone e íamos a algum lugar de vez em quando, mas no que dizia respeito as nossas vidas pessoais, nos tornamos completos estranhos.
Atravessei o saguão. Um único homem estava sentado em uma cadeira de madeira não muito firme, completamente adormecido, com o rosto coberto por um jornal. Não prestei maior atenção nele, apesar de manter meus sentidos em alerta. Não importava que eu estivesse em um edifício barato e aquele fosse apenas um velho porteiro com problemas para se manter acordado, estranhos sempre despertavam a minha desconfiança, mais nos últimos dias, desde que o acidente com Shiryu abalara as bases da organização.
Shiryu.
Peguei–me pensando nele enquanto subia as escadas. Ainda não tinha ido vê–lo. Um sentimento idiota de que se fosse até ele, teria que aceitar de uma vez por todas que um dos melhores agentes que eu conhecia tinha sido ferido gravemente, o que levava ao horrível pensamento de que nenhum de nós era invulnerável. Quando você trabalha por anos com um grupo sem jamais haver um fracasso significativo, começa a criar a ilusão de que nunca acontecerá. Eu nunca tinha me sentido tão humano quanto naqueles últimos dias. Como se de repente, eu tivesse olhado para o meu corpo e percebido que a armadura intransponível que eu tinha imaginado usar jamais tinha existido. Aquilo tudo era assustador.
Perdido em meus pensamentos, mal percebi quando sai das escadas para um corredor repleto de portas estreitas e brancas, a tinta de um azul luminoso ainda aparecendo em pequenos fragmentos nos cantos. Não demorei muito a localizar o apartamento de Ikki. A porta estava cheia de rabiscos com os nomes da maioria das mulheres que ele já tinha levado até ali. O suficiente para mais de uma vida, na minha opinião.
Sorri ao colocar a mão no bolso e retirar um pequeno utensílio que passaria muito bem por um grampo de cabelo. Algo sem o qual nenhum agente podia viver. Cheguei mais perto da porta, cobrindo a fechadura com o corpo e introduzindo cuidadosamente o objeto na mesma. Cinco segundos e a porta estava aberta. Completamente. Ikki não poderia me culpar por invadir mais tarde quando ele mesmo não tomava algumas precauções.
Segurei a fechadura, empurrando com cuidado. Dentro a escuridão reinava a não ser pela luz que entrava de uma das janelas que ele esquecera de fechar... Janela aberta? Nem Ikki seria tão descuidado. Empurrei a porta de uma vez, um alarme soando na minha cabeça. Mal coloquei um pé dentro da sala, percebi um facho de luz atravessar o cômodo na minha direção e desaparecer novamente.
Tudo aconteceu em alguns segundos. Saltei para o lado e senti a pressão da bala passar a centímetros do meu braço. Rolei pelo chão, esperando que todas as portas se abrissem para ver o que estava acontecendo, mas isso nunca aconteceu. Aparentemente todos ali estavam acostumados com esse tipo de confusão. Levantei–me com um salto, temendo aproximar–me da porta. Estava desarmado. Não gostava de andar com armas uma vez que meu trabalho exigia muito mais da minha inteligência do que da força. Agucei os ouvidos, tentando identificar qualquer som que me desse uma pista do que acontecia dentro do apartamento, mas tudo tinha voltado ao completo silêncio.
Mais uma vez caminhei até a porta. Fosse lá quem tivesse atirado podia estar esperando que eu me movesse, aguardando a chance ideal de me atacar ou ter fugido pela janela. Tateei nos bolsos, em busca de qualquer coisa que me servisse de arma, mas nunca cheguei a encontrar. Naquele instante, a porta se abriu e senti o peso de um soco me atingir direto no estômago. Cambaleei ofegante e em dor. Tinha sido um golpe desferido com força suficiente para jogar um homem comum à distância no chão.
Mas eu não era um homem comum.
No segundo seguinte eu estava correndo o mais rápido que podia escadas abaixo. Os cabelos compridos e escuros dele esvoaçavam enquanto fugia, única coisa sobre ele que eu conseguia ver claramente. No último andar, porém, desapareceu completamente, como se tivesse sido tragado pela terra.
Não havia nada na recepção e o porteiro adormecido também desaparecera de seu posto. Coincidência?
Voltei para cima, para o apartamento de Ikki. Estava tudo completamente revirado e eu não tinha como saber se o estranho tinha ou não conseguido encontrar o que estava procurando. Sentei–me no sofá, cansado e frustrado, pensando como as coisas tinham saído de controle em um espaço tão curto de tempo.
Deixei o apartamento sem esperar por meu irmão. Conversaria com ele sobre aquilo mais tarde. Agora mesmo tinha que fazer algo que não podia mais ser adiado.
Sai para a rua, mantendo a atitude tão natural quanto possível. Os garotos tinham desaparecido também. Provavelmente tinham ouvido o disparo e assumido que eu não voltaria.
Entrei no carro e liguei o motor. Nada. Um calafrio percorreu minha espinha quando senti o metal frio de uma arma encostar–se ao meu pescoço.
– Está ficando descuidado, irmãozinho.
Ikki estava sentado no banco de trás do meu carro, comendo amendoins de um grande saco plásticos e espalhando as cascas por toda parte. Devo ter deixado transparecer meu desagrado porque ele riu e balançou a cabeça.
– Você sempre foi o irmão certinho. Eu espero ouvir uma ótima explicação sobre o que estava pensando quando decidiu arrombar meu apartamento.
Virei–me novamente para frente, suspirando derrotadamente.
– Eu estava com saudades daquelas meias com estampas de Páscoa que te emprestei o ano passado. Achei que não ia se importar se eu viesse pegar.
– Você podia ter morrido – Ikki disse, dessa vez em tom sério. Não olhei para ele, mas podia imaginar que ele estava me olhando da mesma maneira que fazia quando éramos crianças e eu aparecia machucado por ter cruzado o caminho de meninos mais velhos.
A preocupação, no entanto, não me compadeceu.
– Se vocês não me contam o que está acontecendo, esse tipo de coisa tende a acontecer – respondi. – Agora saia do carro, preciso ir a um lugar.
– Vai me deixar aqui, com esses caras malvados rondando o meu apartamento? – ele retomou o tom irônico.
– Você não estaria aqui se estivesse preocupado.
Isso foi tudo. Ikki pegou seu grande saco de amendoins e saiu do carro, batendo a porta e acenando da calçada. Ele não falaria sobre o que eu queria saber. Ele nunca falava nada. O lema do meu irmão era que cada um deveria descobrir as coisas por si mesmo a não ser que ele tivesse algum interesse em falar.
Sem acenar de volta, comecei a dirigir na direção do Santuário. Precisava ver Shiryu.
