Epílogo – O presente do corvo
O riso alastrou-se rapidamente enquanto o rapaz enxugava as lágrimas, resquício das gargalhadas contagiosas.
-Não acredito que fizeram isso com meu túmulo! Uma coroa de rosas?
A garota de orbes púrpuros somente corou, deixando com que a vermelhidão se alastrasse por todo o rosto, até o pescoço. Remexeu-se incomodada enquanto procurava desviar o olhar.
-Muito gentil de sua parte falar isso quando cuidamos disso todos os anos e você estava vivo!
-Não me leve à mal, Botan... –Tentou se controlar enquanto articulava as palavras – É simplesmente tão... – Leu a frase na faixa – "O amaremos e o admiraremos por toda a eternidade".
-Ridículo. –Completou Hiei enquanto escondia um riso divertido – Eu avisei, eles não têm o mínimo de bom senso e gosto. Tão...
-Brega. –Sorriu Kurama.
O ruivo deixou seu corpo pender para frente e para trás enquanto colocava as mãos no sobretudo marrom. A garota ao seu lado parecia entrar em processo de combustão, tamanho seu desconcerto. Possuía até um pouco de compaixão, mas a situação era divertida por demais para não tirar sequer um proveito. Balançou a cabeça em negativa e suprimiu o riso ao ouvir a voz aguda ao seu lado.
-Não fale assim das flores! Tivemos trabalho, sabe... Além do mais, são rosas colombianas, colombianas! Têm onze centímetros de diâmetro! E ficou tão bonito!
-Ah, claro! Se quiser fazer uma lápide que parece uma árvore natal está lindo! – Ironizou o demônio de fogo.
-Parem com isso!
O koorime e youko trocaram olhares cúmplices e morderam o lábio inferior.
-Pelo menos, Kurama, as rosas são brancas e não naquele tom horrível e berrante. Rosa-choque.
-E não têm aqueles poemas que costumam deixar em cima da lápide. –Concordou.
Hiei desviou o olhar e fitou de esgueira Botan. Ela não merecia, no entanto...
-Na verdade, tinha. Tiraram assim que souberam que estava voltando –Falou o pequeno como se revelasse um grande segredo – Cheio de poemas melosos e melancólicos. Uns trinta apenas da sua mãe e... Bom, todas aquelas garotas idiotas escreveram pelo menos um junto com desenhos e fotos. Acho que alguém poderia morrer de diabetes só de ler aquilo.
-Oh... –Os olhos verdes se arregalaram.
-Será que vocês dois não podemdar um tempo?–Exclamou Botan parecendo uma cereja de tão envergonhada – A gente faz, faz e depois tiram sarro!
-Boas intenções não constroem o mundo, se você não sabia. –Disse o demônio de baixa estatura, despreocupado.
-Agradeço do fundo do meu coração a todos vocês. –Sorriu a raposa de forma doce enquanto as madeixas eram levadas pelo vento – No fundo, o único ingrato fui eu. Obrigado pelo carinho.
-E o grande Kurama agradece sua platéia... Que lição de moral! – Disse mordaz o outro enquanto girava os olhos – Vai falar que ama a todos agora?
-Bom, na verdade, quem mais amo é... –Parou, corria o risco de ser morto se esboçasse qualquer tipo de declaração.
-É? – Estreitou os olhos rubros.
-Você sabe... –Falou inocentemente e os orbes do outro se tornaram apenas um risco vermelho – Amo todos os meus amigos e familiares! – Completou sorridente
Hiei somente bufou e cruzou os braços em frente ao peito, o mau-humor voltava a dar forma às suas feições suaves. Andou até a outra lápide - bem mais simples e menos decorada - e sentou-se cansado de andar o dia todo a ouvir as pessoas mimarem o Youko constantemente. Não era ciúme, ficaria irritado se fosse qualquer pessoa. Demonstrações afetivas em público não eram exatamente o que apreciava.
A tarde estava se acabando, a luz alaranjada já tomara conta de toda a extensão do céu, outrora azul claro. Não havia vento, porém o tempo estava agradável e ameno.
-Já volto! –Acenou Botan.
Kurama concordou com a cabeça e foi até Hiei em passos preguiçosos. Sentou-se ao lado dele de forma despretensiosa e o observou.
-Eu te-
-Pelos céus! Não se atreva a falar que me ama agora e torne essa cena açucarada demais para que eu possa agüentar. –Cortou-o.
A raposa riu.
-Então vai deixar que a cena se torne idiota demais?
-Não me venha com essa. Como espera que eu haja diante de uma "declaração" nesse lugar? Faça beicinho como uma garota estúpida esperando pelo beijo do príncipe?
-Iria ser engraçado! Mas não combinaria com você.
-Tinha alguma dúvida? Sinceramente espero que não combine com você também, porque eu nunca te b-
-Beijaria se eu fizesse algo tão idiota. Eu sei, também não faz meu... tipo.
-Graças aos deuses.
O silêncio pairou sobre os dois de modo confortável. Não era necessário se comunicar para que existisse algum tipo de interação entre eles. Diferente dos humanos, suas almas e corpos se entendiam de forma mudo. Além de que a ausência de som era relaxante para ambos.
-Kurama... –Começou hesitante, com o tom diferente da confiança usual – O que aconteceu naquele dia de verdade? Quando te achei não havia resquícios de batalha ou o cadáver de Otoyo.
-Aquilo... –Iniciou Kurama, deixando que as lembranças inundassem sua mente.
-Acabou, Ototo. É seu fim, sei quem você é. – Disse o Youko com a voz exalando tranqüilidade.
O outro apenas deixou que suas unhas roçassem na carne do outro numa ameaça silenciosa. Os músculos do kitsune nem se enrijeceram. Era inútil, colocaria um ponto final em tudo aquilo em apenas alguns segundos.
-Quem eu sou...? Não seja ridículo! Como se eu me escondesse na pele de alguém. Sou Otoyo, seu futuro mest-
-Chega de brincadeiras, Koronue. O teatrinho foi interessante, mas já encheu a paciência, sabe...
A pressão em seu pescoço cessou de imediato. Observou o youkai sem expressão alguma no rosto e de repente, de dentro do corpo daquele demônio, saiu um corvo tão negro quanto a noite eterna. Ele ergueu as asas e pousou em um galho enquanto Otoyo caia desfalecido sobre a terra. Em pouco tempo, os restos mortais foram desaparecendo lentamente, até restar nada.
O corvo curvou a cabeça, como qualquer pássaro faria, todavia, quando abriu o bico, foram palavras que saíram.
-Parabéns, Kurama. Devo dizer que estou... orgulhoso?
-Sua interpretação continua excelente. –Retorquiu – Mas o que estava fazendo aqui?
Os olhos da ave se fecharam enquanto a raposa se aproximava decidida. Os galhos que impediam a luz da lua de tocar o chão foram encolhendo, até que os dois pudessem apreciar todas as estrelas brilhantes do céu noturno.
-Eu estava apenas impedindo que não fizesse nenhuma bobagem.
-Não preciso ser protegido, sabe...
-Não mais! – Kurama poderia jurar que via um sorriso na cara do animal – Entenda, eu sei de cada coisa que faz, cada pequeno passo e não poderia deixá-lo morrer.
-Se eu fosse morrer, seria por sua causa. –Retorquiu seco.
-Seria por incompetência sua, provaria estar tão bobão quanto da primeira vez que o encontrei e nesse caso, a morte seria melhor. Ainda bem que não me decepcionou.
O youko deu uma leve risada. Era sempre assim. Koronue estava sempre um passo à frente, quando começava a arquitetar algum plano, o outro já o tinha pronto. Além de ser bem melhor em manipulação.
-Então, já planejava isso desde o começo. Criar um corpo de um idiota ninfomaníaco e me "proteger". – Falou casual.
-Ah, eu não criei corpo nenhum. Simplesmente me apossei deste e como consumi muita energia, no momento em que me separei dele, desapareceu. Não tinha total controle sobre ele, entende? Por isso não pude refrear seus... impulsos, se é que me entende.
O kitsune cruzou os braços e se sentou.
-Para que tudo isso?
-Eu sabia que viria para cá e tentaria se libertar. Não faz bem reprimir o lado youkai, apenas evitei que jogasse sua vida pela janela.
Kurama deu uma risada leve e balançou a cabeça. Ergueu seu braço num convite para a ave vir pousar em seu braço e disse:
-No final, eu sempre acabo em dívida com você e desta vez, é uma dívida eterna, não?
O corvo voou rasante sobre a relva até alcançar o braço forte do outro. O olhar que o pássaro lançava continha um misto de carinho e tristeza.
-Cuide da sua vida para sempre, é o bastante para mim. A vida é o mais precioso tesouro, não importa qual forma tome.
-Isso me lembra o dia em que morreu... –Disse baixinho.
-Sim, eu me recordo. E acho que disse outra coisinha interessante para você...
"Não morra antecipadamente, eu vou para lá, você fica, então, viva".
A ave concordou com a cabeça e deu uma bicada carinhosa no pescoço do youko.
-Adeus, se formos nos ver agora, será só na outra encarnação. –E bateu as asas para o alto, enquanto seu corpo dissolvia-se, virando apenas algumas penas negras que caiam sobre a terra.
A raposa olhou para o céu melancólica. Esfregou os orbes dourados e se levantou. O peito ainda doía, mas ao mesmo tempo era abarrotado por uma enorme sensação de felicidade.
-Obrigado por tudo... mestre. –Sussurrou ao vento enquanto seus lábios eram tomados por um sorriso terno.
-Kurama? –Chamou Hiei pela milésima vez.
O rapaz piscou atordoado e virou-se, encarando o companheiro que o observava estranhamente. Não costumava ficar fora do ar, era sempre atento, claro que o koorime estranharia sua "ausência".
-Sim? –Tentou sorrir.
-O que você ia falar? Aquilo...?
O Kitsune somente balançou a cabeça enquanto ouvia o som de vozes conhecidas se aproximando. Alegres e vibrantes, seus amigos corriam na direção deles. Estavam todos juntos e em paz, finalmente. Era o que importava. Pousou a mão no ombro do outro de forma amistosa e fechou os olhos.
-Nada, esqueça.
-Mas...
-Não é importante. Eu derrotei Otoyo, só isso que precisa saber. Deixe que o passado fique com isso.
-Está bem. –Concordou Hiei um tanto contrariado.
-E AÍII, BAIXINHO! – Exclamou Yusuke enquanto dava um enorme tapa nas costas do pequeno youkai.
Os olhos escarlates se estreitaram em fúria uma segunda vez naquele dia e se virou com os caninos arreganhados.
-Vai pagar por isso, seu humano idiota!
-Huhu! Estou morreeeendo de medo, tam-pi-nha!
-Vocês dois, não briguem! –Gritou Keiko com certo nervosismo a se aproximar do grupo.
E lá vinham eles também, andando vagarosos e envolvidos pela presença um do outro, como um casal de namorados deveria ser. Hiei piscou ao ver a querida irmã tão próxima ao idiota de cabelo laranja. Sua atenção foi tomada pelos dedos entrelaçados e o braço que envolvia o quadril da garota de jeito audacioso.
Perigoso... Muito perigoso. Kuwabara não devia possuir um pingo de amor à vida.
-Tire... Suas... Patas... Asquerosas... Dela... AGORA! – Disse entre os dentes
Uma gostosa gargalhada pôde ser ouvida. Virou-se para Urameshi, que se apoiava no ombro de Keiko e com a outra mão segurava a barriga com força. Rapidamente limpou os olhos lacrimejantes e uma expressão marota dominou seu rosto.
-Quando o baixinho arrumar uma namorada, de tão ciumento que ele é, a coitada vai ter que ser presa com correntes!
Hiei trincou os dentes e envolveu a empunhadura da katana com os dedos pequenos, porém firmes. Deixou que o pé direito deslizasse discretamente para frente, num esboço de posição de batalha. Os outros somente arregalaram os orbes, divididos entre o cômico e a apreensão. Rezaram silenciosos para que a morte daqueles dois impulsivos demorasse a chegar.
-Quem vai ser acorrentado aqui é você e esse cara de cabelo esquisito!
-Ei! Eu não tenho cabelo esquisito! –Exclamou Kuwabara ofendido.
-Talvez enquanto John Travolta e seus topetes estiveram na moda, seu cabelo fosse o mais bonito de todos!
O koorime sentiu os olhares inquisitórios queimando sobre si, mas Botan respondeu por ele, com as bochechas a tornarem-se vermelhas novamente.
-Ahn... Eu forcei-o a ver um dos filmes de John Travolta.
Yusuke somente elevou uma das sobrancelhas, com a cabeça pendendo para o lado. De supetão, um sorriso malicioso surgiu em seu rosto enquanto os olhos brilhavam em deboche.
-Não sabia que era fã desse tipo de coisa, tampinha, além do John Travolta. Digo, sobre dois homens acorrentados e mandar brasa!
-EU NÃO GOSTO DESSE TIPO DE COISA! –Urrou ferroz.
-Sinto muito, mas primeiro de abril já passou!
-Vai ter uma ÓTIMA ESTADIA NO INFERNO! –E partiu para o ataque.
Kurama se limitou a dar alguns passos para o lado, de forma que os lutadores pudessem ter espaço o suficiente para brigar. Mirou o horizonte e suspirou, contente. As pálpebras se fecharam enquanto a promessa silenciosa surgia em sua mente.
As coisas iam e vinham, era o seu fluxo natural e nada poderia mudar.
A vida era a coisa mais preciosa que poderia ganhar, sabia. Por este motivo, iria aproveitar o doce presente de Kourone.
FIM
N/a: Não sei se era o fim que esperavam XD Ficou totalmente idiota, mas queria deixar essa fanfic tão melancólica com um final alegrinho. Levem em conta que escrever humor não é minha especialidade (gota).
Realmente quero agradecer a todos que acompanharam a fic, de coração e que deixaram review no último capítulo (Imouto, Shampoo-chan e Satsume). Não têm idéia do quanto isso é importante para mim, me deixa muito feliz e empolgada para escrever.
Dark Side acabou, mas vou continuar escrevendo. Aprendi bastante coisa com essa fic, e estou triste por ter dado um fim nessa história. A idéia original era mostrar um Kurama não-bonzinho, porque não creio naquela gentileza toda dele... De qualquer forma, mesmo que não tenha atingido meus objetivos iniciais, estou feliz com o resultado final.
Detalhe curioso da fic: durante sua escrita, acabei mudando de casal favorito, comecei a realmente gostar de Kurama e Koronue... Mas é uma fic Hiei e Kurama XP, por isso pretendi deixar com que o Koronue pelo menos tivesse um lugar especial no coração do youko.
No final... Eu estou realmente triste por dar um ponto final. Mas nada dura para sempre, certo?
Muita boa sorte para todos que acompanharam a história!
Obrigada novamente! E até a próxima!
Beijos,
Kiki (fic terminada dia 4 de maio de 2005)
