Por que meus olhos ainda vasculham a multidão, procurando a longa trança castanha que ricocheteia alegremente no ar? As orbes violetas que tanto me fascinam? Minha mente se nega a acreditar que Duo realmente partiu.
Será que foi assim que ele se sentiu quando eu fui embora com Relena? Vazio, perdido, como se algo fundamental para sua existência tivesse desaparecido? Não sei, mas é assim que eu me sinto agora.
Ainda ouço sua voz alta ecoando pela casa, seu perfume adocicado permanece em seu travesseiro intocado a semanas, impregnando o ar daquele quarto que dividíamos. Ou talvez seja só fruto de minha mente perturbada tentando amenizar a dor em meu coração. Em vão, pois a única coisa que pode curar-me é o amor de Duo. Amor que desprezei por medo, e agora quero a qualquer custo.
Já fazem três dias que meu americano trançado saiu de casa para ir morar com aquela Anne. Três dias! E nesse tempo, eu não dormi, não consegui comer nada, só fiquei debruçado na janela, esperando inutilmente ver Duo na esquina, com as malas nas mãos, dizendo que vai voltar para nós. Mas isso ainda não aconteceu. E ele ainda deve estar em uma colônia distante da Terra, se divertindo com aquela garota. E tudo que me resta são meus poemas, trancados a chave numa gaveta da escrivaninha de mogno do quarto.
— Heero! – ouvi Wufei me chamando da cozinha
Morbidamente, me levantei dali e fui até onde estava o chinês. Parei na porta, e encontrei-o sentado na mesa. Sentei-me ao seu lado e fiquei esperando que ele dissesse algo. Mas ele só suspirou, e o silencio perdurou por longos minutos. Eu sabia o que estava por vir... Wufei ia gritar comigo.
— REAJA, HEERO! NÃO É PORQUE DUO FOI EMBORA QUE VOCÊ TEM QUE FICAR ASSIM! JÁ ESTÁ ÓBVIO O QUANTO VOCÊ O AMA PARA TODOS NÓS, MENOS PARA ELE. E EU NÃO VOU DEIXAR VOCÊ ARRUINAR SUA VIDA POR CAUSA DISSO. SEJA HOMEM! FAÇA ALGUMA COISA! FOLLOW YOUR DREAMS!
Aquela última frase foi como um tapa na cara pra mim. Follow your dreams. Duo sempre falava isso quando algum de nós estava triste, ou desiludido. Siga seus sonhos. Esse era o lema dele. Ele ia atrás do que queria custe o que custasse. E nunca falhava.
O chinês, vendo em meu rosto que sua frase tinha surtido efeito, continuou:
— E, por favor, vá até o centro da cidade comprar açafrão pra mim?
Olhei para ele, indignado. Então ele me animara só para ir até o centro comprar tempero? Mas mesmo assim eu tinha que lhe ser grato pela sacudidela, então peguei o dinheiro que estava sobre a mesa, meti no bolso da minha calça jeans e saí de casa.
Ainda bufando, mal humorado, eu tomei a primeira lotação (1) para o centro. Por sorte ela estava meio vazia, então me sentei em um dos bancos vazios logo na frente e fiquei escutando a música que tocava. Não era algo que eu costumo ouvir, decerto, mas a melodia parece boa. Rock... não faz o meu tipo.
"Do que eu preciso é uma doce vingança
Para recuperar tudo o que eu perdi
Eu te dei tudo o que eu tinha pra te dar,
mas nunca realmente te conquistei"
Aquela letra chegou aos meus ouvidos como um baque. Um balde de água fria. Aquela letra lembrou-me Relena. E de que ela ainda estava impune pelo que fez a mim. Eu queria ficar e ouvir o final da música, mas já tinha chegado o meu ponto, e eu precisava descer.
Enquanto meus pés levavam-me até a loja onde Wufei normalmente comprava açafrão, aquela música não me saía da cabeça. Vingança... Relena merecia uma. E das grandes. Talvez a própria música me desse alguma idéia. Talvez... Eu precisava escutar ela inteira. Mas como faria isso? Não sei... teria que esperar por um golpe de sorte.
Deixei isso para lá por um tempo, para me concentrar no que eu estava fazendo. Comprei o tempero para o chinês e aproveitei para parar numa lanchonete para almoçar. Eu estava faminto! Dois beirutes com tudo o que tem direito, um mega milkshake e um sundae gigante foram suficientes para mim. Eu costumava pular algumas refeições, mas a empolgação com uma nova perspectiva das coisas me deixou com fome. E só uma quantidade tão grande de carboidratos e açúcar conseguiu me acalmar. Tomei a lotação, e voltei para casa.
Assim que adentrei a sala, a primeira coisa que fiz foi ligar o rádio e colocar na estação que Duo costumava ouvir. Só precisei de 15 minutos para que ouvisse uma introdução de guitarra, e a voz grave do cantor:
"Tenho pensado em você, meu amor
E todas as loucuras que você me fez passar
Agora estou dando a volta por cima,
Jogando tudo de volta pra você
Você estava pensando em mim, quando beijou ele?
Você sentiu meu gosto quando lambeu a pele dele?
E todo aquele tempo que eu confiei em você e te cobri de promessas...
Do que eu preciso é uma doce vingança
Para recuperar tudo o que eu perdi
Eu te dei tudo o que eu tinha pra te dar,
Mas nunca realmente te conquistei"
Céus, até parece que a música foi feita para mim! É exatamente a mesma coisa! Me assusto um pouco com a presença de Quatre na sala, que acompanha o rádio como se já tivesse ouvido essa música um milhão de vezes
"Adrienne, eu pensei que te conhecia
Mais uma vez, você me usou, me usou
Adrienne, eu deveria ter te deixado
Muito antes de você me usar, você me usou"
— Quatre, você conhece essa música? Sabe de quem é?
Ele simplesmente fez que sim com a cabeça enquanto continuava a cantar.
"Gastou meu dinheiro, dirigiu meu carro
Eu te tratei como uma princesa
Mas no meu céu todo queimando você estava
E eu darei a última risada quando ver você ao lado de outro
Pois eu sei que você vai acabar sozinha
Então ouça isso, um bom conselho
Tudo o que você fez vai voltar duas vezes
Você nunca se importou com o quanto isso machuca,
mas eu preciso te contar
Adrienne, eu pensei que te conhecia
Mais uma vez, você me usou, me usou
Adrienne, eu deveria ter te deixado
Muito antes de você me usar, você me usou
Do que eu preciso é uma doce vingança
Para recuperar tudo o que eu perdi
Eu te dei tudo o que eu tinha pra te dar,
mas nunca consegui te alcançar"
— É de uma banda nova, chamada The Calling (2). A música estreou esses dias e já em todas as rádios.
— Nome da música?
— Adrienne.
Antes que ele pronunciasse mais uma palavra, corri para meu quarto e liguei meu laptop. Nunca antes ele me pareceu tão lento. E eu nunca o usei para nada além de trabalho. Conectei a Internet e acessei um site de busca, fazendo uma pesquisa pelo nome da banda. Mais de 2000 resultados pularam na minha frente em poucos segundos, e com pouca procura achei um site com a letra da música e a própria para dowload. Fiquei mais feliz do que criança no Natal.
— Está tudo bem, Heero? – perguntou meu amigo loirinho com a cabeça para dentro do meu quarto
— Melhor impossível – respondi com um sorriso imbecil no rosto, sem nem tirar os olhos da tela do computador.
— Se precisar de alguma coisa, estarei no quintal.
Pelo visto meu amigo e Trowa tinham tido uma noite maravilhosa. Era sempre assim. Quando tudo ia bem entre eles, Quatre sentia que estava negligenciando os cuidados comigo e com Wufei (nada poderia ser mais absurdo, claro, já que sabemos nos cuidar sozinhos) e, para nos recompensar, arruma a casa inteirinha.
Passei a música para o meu MP3 Player (3) e imprimi a letra dela, deitando na minha cama para ver se, com a música, tinha alguma idéia para a vingança perfeita.
Sem querer adormeci daquele jeito, com a música no repeat, e tive um sonho um tanto quanto esclarecedor. Algo simples, mas realmente eficaz. Fazê-la provar do próprio remédio. E eu tinha alguém perfeito para me ajudar. Peguei meu casaco e fui até um condomínio a três quadras daqui.
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— Oi, Heero, a quanto tempo!
— Oi, Treize. Desculpe vir assim sem avisar.
Ele fez um gesto dizendo que não se importava, e eu entrei em seu apartamento. Havia estado ali poucas vezes, mas tudo continuava como da última vez: as paredes claras, móveis antigos e artefatos de todas as regiões da Terra e das Colônias espalhados pelas paredes, ou ornamentando a mobília. Simples, mas bonito. Como meu amigo. Não dava pra negar que Treize era um homem e tanto. Um pessoa modesta, de muito bom humor, simpático, agradável, e dono de uma beleza estonteante. Muitas mulheres dariam tudo para passar um tempinho com ele. Infelizmente para elas, ele preferia os homens. E por isso ele era a pessoa ideal para me ajudar. Alguém praticamente inatingível, que Relena não conseguiria resistir.
— Mas me diga, o que te faz sair da sua tão longínqua casa e vir me visitar?
Ri da ironia. Mesmo morando tão perto dele, eu raramente vinha visitá-lo. Andei tão preocupado com meus próprios problemas ultimamente, que não cultivei minhas amizades. Mas Treize entendia que eu nunca fora acostumado a isso, e me perdoava.
— Nada, oras! Não posso mais visitar meus amigos?
Ele me olhou profundamente e suspirou.
— Já te disseram que você anda um péssimo mentiroso ultimamente, garoto? Me diz, o que foi?
— Preciso da tua ajuda, Treize. É um favorzão, mas eu prometo fazer qualquer coisa em troca.
— Até me arrumar um encontro com aquele chinês birrão que mora com você? – ele me olhou desafiador.
Fazia um tempão que ele pedia para sair com Wufei, mas o outro nunca aceitava. Nunca. Nem uma vez só. Essa era a maior frustração da vida do ex-comandante. Era um trato complicado, mas vali seu preço.
— Até isso.
— Faço qualquer coisa. Aquele garoto anda me enlouquecendo.
Contei detalhadamente meu plano a ele, que a cada momento ficava mais boquiaberto.
— Enlouqueceu, Yuy? – perguntou-me ele, passando a mão nervosamente pelos cabelos castanho-claros
— Não.
— Quer que eu seduza Relena Peacecraft, faça-a se apaixonar por mim, durma com ela uma vez ou duas, use-a para resolver algum problema que eu ainda tenha com o governo, e depois abandone-a? É isso.
— É.
— Ficou doido... não vou fazer isso! O irmão dela é meu melhor amigo, sabia?
— O Wufei não vale esse esforço?
Ele suspirou novamente.
— Vou pensar no assunto. Mas te recomendo uma visita ao psiquiatra, viu?
— Eu estou muito bem, obrigado.
— Se você diz...
— Digo.
— Te ligo até a meia noite, então, para responder.
Me despedi de Treize Kushrenada e tomei o rumo de casa, com só uma certeza. Ou melhor, duas: Treize ia me ajudar, e Relena teria o que merecia. Porque meu amigo não ia me deixar na mão. Não com uma perspectiva de sair com Wufei.
Só me sobrava a tarefa de convencer o teimoso piloto do Shenlong.
(1) Okay, okay. Esqueçamos por um momento que eles vivem no futuro. É que eu queria que fosse num transporte público que ele ouvisse a música pela primeira vez.
(2) The Calling não é uma banda nova. Eles já tem quase 4 anos de estrada. Mas na época em que lançaram Adrienne, era nova. Só que em vez deu colocar a letra propriamente dita da música, eu pus direto a tradução, pra facilitar. Nitty super fã de The Calling
(3) Esqueçamos novamente que eles vivem no futuro. MP3 player deve ser ultrapassado pra eles. Mas na falta de algo mais "novo"...
N/A: Ueba! Consegui fazer o capítulo ficar maior! feliz da vida Eu queria agradecer a Arashi Kaminari, Karin Kamiya, Anna Malfoy e MaiMai que me deixaram reviews, e especialmente a Sanosuke-chan, que além de comentar, me deu uma ajudona com o próximo capítulo.
Espero mais reviews, heim?
