Hope Gardens
Capítulo 02: Uma espera que chega ao fim
Reiko e seus avós, Kenichiro e Haruna Fujiwara, já estavam há algum tempo na residência dos Hatanaka/Minamino.
A garota enfiara a saia do vestido verde entre as pernas e as cruzara sobre o sofá, enquanto disputava um jogo de videogame com Shuichi Hatanaka...
"Ei,vocês,abaixem o volume dessa coisa agora mesmo!"
A voz imperativa, mas levemente histérica, de Kenichiro foi da ante-sala, onde estava conversando com Kazuya Hatanaka,até 'seus netos' sem surtir efeito algum,pois Reiko já ensinara à Shuichi que o melhor era ignorar,solenemente,os ataques do avô.
O velho senhor levantou-se de súbito, deixando o sobrinho de sua mulher com a boca aberta e uma frase incompleta no ar, para ir ficar de pé bem diante de Reiko, em frente à televisão, com o peito largo estufado e as mãos na cintura.
Shuichi suspirou baixinho, impaciente, mas não disse nada.Porém, sua parceira de jogo encarou o olhar altivo que a fitava com uma altivez maior ainda.
"Sabe, vovô, o senhor não é transparente!".
"Eu sei! Mas vamos ficar todos surdos daqui a pouco se vocês não abaixarem o volume desse negócio!".
"Nem está tão alto assim, ninguém mais está reclamando".
"Por uma questão de educação somente, vamos, abaixem o volume ou desliguem de uma vez!".
"Deixe-os jogar, tio, está tudo bem".
A gentil senhora Shiori Hatanaka surgira à porta que interligava a sala de estar à sala de jantar, carregando uma travessa de arroz.Haruna Fujiwara apareceu em seguida, segurando alguns pratos.
"Os garotos estão se divertindo, Ken, não vamos atrapalhar. Volte à conversar com Kazu-chan."
"Oh, muito obrigada à vocês,queridas..."disse Reiko,sorrindo amavelmente para a 'prima' e para a avó."É isso aí, vovô, o senhor ouviu? A vovó mandou o senhor ralar daqui! Seja um bom marido e obedeça!"
Kenichiro fitou contrariado o semblante sereno e categórico da neta, depois se voltou para o rosto sorridente da esposa, e resolveu abandonar a batalha, mas não sem antes atirar uma última flecha:
"Ao invés de estar perdendo tempo essas porcarias, você deveria estar ajudando o seu primo com os deveres da escola! Ou pelo menos fazendo os seus!".
"Mas eu já fiz tudo!" Declarou Shuichi,num tom que transmitia uma segurança tão convincente que a falsidade daquela afirmação era mais que óbvia...
"Pois sim!" Exclamou Kenichiro Fujiwara,assentindo,com um brilho perspicaz no olhar rigoroso de soslaio que deu ao menino."Fizeram tudo o que queriam, menos o que tem de fazer! Vocês deviam seguir o exemplo do primo mais velho de vocês!".
E deu as costas aos dois, não sem antes de dar um sorrisinho cordial forçado à neta.Reiko repuxou o canto dos lábios e continuou a apanhar feio de Shuichi na tela, pois a última observação que o avô linha dura fizera antes de retornar à ante-sala fez com que ela pensasse nele...em seu primo mais velho...
O torneio do Makai deveria estar à todo vapor...Kurama havia partido excepcionalmente durante o período das aulas, com a desculpa de participar de um curso oferecido foracidade,e comoele sempre estava estudando, foi fácil todos acreditarem na frágil mentira.
Enquanto todos estavam tranqüilos, comentando com entusiasmo o quanto sentiam a falta do Shuichi mais velho e esperavam que ele voltasse logo,as dúvidas de Reiko eram bem mais cruéis e dramáticas,porquê ela sabia a verdade.
'Quando será que vai terminar esse torneio imbecil?Deus, o que terá acontecido com Yusuke,com Hiei...e com o meu primo mais velho?'
A tela colorida do jogo estava muito distante da concentração de Reiko.Seus olhos se mantinham presos à ela apenas por conveniência.
'Só o Yusuke mesmo pra ter uma idéia tão obtusa!Onde já se viu...determinar o governante de um mundo inteiro,ainda mais um mundo como aquele, apostando pra ver quem tem o soco mais forte...!Idiota!E o Kurama?Com toda essa inteligência magnânima, foi entrar nesse circo de brutamontes porquê?'
"Você tá perdendo, continue assim!".
Shuichi berrara tão entusiasticamente que recebera logo uma chamada do avô.Mas a única palavra que Reiko ouviu com clareza, entre o grito animado e o breve sermão, foi 'perdendo'.
'Eles são uns tolos...mas eu não quero perder nenhum deles...eu não quero perder...ora,até parece que alguém perde uma coisa que nunca possuiu!'
Shuichi largou o controle do videogame de repente, se levantou de um salto e saiu correndo em direção à entrada...absorta em seus pensamentos,Reiko apenas colocou o seu sobre o tapete,mas nem se preocupou em desligar a TV.Apoiou o cotovelo na parte mais alta do móvel,e ficou refletindo.
'Por quê esse povo só sabe resolver as coisas na pancadaria?Claro que isso é extremamente útil às vezes, mas isso não é decisão que se tome num ringue!O que esses caras gostam mesmo é de se exibir, isso sim!Será que o problema do Kurama é esse?Será que ele foi obrigado por esse tal Yomi a participar do torneio?Será que é por isso que ele...mas isso não justifica...'
Passos rápidos e furtivos se aproximaram por trás dela.A mão forte, mas de toque delicado apertou seu ombro.Entretanto, ela não se voltou para receber o impacto da surpresa, pois a pontada de aborrecimento lhe tirou a paciência para isso.
"Vovô, eu já fiz todos os meus deveres, o senhor quer ver por acaso?".
"Não precisa, eu sei que você se tornou uma garota responsável... eu acredito em você".
A expressão chateada de Reiko congelou por alguns instantes em suas feições.De imediato, seu rosto se descontraiu e seus olhos se abriram um pouco mais, quando ela se voltou e deu de cara com o sorriso maroto de Kurama.
"Você já voltou!" Exclamou ela, sob risos dos outros parentes.
"Qual o problema, até parece que nunca viu o garoto em toda sua vida!" Disse Kenichiro Fujiwara,contente com o retorno daquele que se tornara em pouco tempo seu neto mais admirado(senão o favorito).
"É que eu achei que nem ia mais ter o privilégio de continuar vendo, vovô..." retrucou Reiko, olhando Kurama de cima a baixo com um ar de indiferença muito natural.Estava mais magro.E os seus olhos estavam diferentes, mais verdes, brilhantes e joviais.Alguma coisa decididamente estava errada...não, pensou ela de chofre,não estava.Aquela serenidade toda era mais uma das máscaras que ele usava para enganar a família, com certeza.Devia ter voltado mais cheio de segredos e complicações do que quando partira.
"Vamos, menina, deixe de esquisitices e dê um abraço no seu primo!" Inquiriu o avô, de um jeito tão simpático e brincalhão que era claro e evidente que ele ainda persistia na idéia de empurrar um jovem para os braços do outro custasse o que custasse.
Kurama aproveitou a deixa e agarrou a 'prima', no sentido de agarrar mesmo, pois a apertara tanto que sentiu os seios dela comprimirem-se contra seu peito, mas não que isso o deixasse sem graça, muito pelo contrário.Ele depositou um beijo suave na face direita dela, e em seguida fitou-a nos olhos.
"Eu senti a sua falta, Rei".
"É mesmo?" Indagou ela, erguendo uma das sobrancelhas enquanto fixava no rosto dele um olhar etéreo e um meio-sorriso veladamente irônico.
"Claro que é mesmo! E ela também sentiu muita falta de você, Shuichi, tanto que se entristeceu completamente até terminar o namoro insano com aquele rapazinho desmiolado, não é, querida?".
"Vovô! O Kirishima não é desmiolado e eu não terminei meu namoro com ele por causa do Shuichi!".
"Terminou, sim!" Garantiu o senhor, fitando Kurama com muita gentileza e carinho."Ela me disse!" E sacudiu a cabeça com veemência diante de todos, quase gritando,como se estivesse num tribunal, exercendo sua função de promotor, diante de um júri.
Kazuya Hatanaka começou a rir baixinho.Realmente o tio era terrível quando queria uma coisa.E não era homem de se importar com detalhes que pudessem lhe atrapalhar, fossem eles de que dimensões fossem...
"O aroma da comida maravilhosa de sua encantadora mãe me abriu o petite, vamos comer!" Declarou Kenichiro, (sem se recordar do fato de que não era dono da casa), passando o braço sobre os ombros de Kurama.
Todos se dirigiram à mesa de jantar.Kazuya sentou-se na cabeceira, com Shiori e a tia à sua direita e esquerda respectivamente.Shuichi ia se sentar entre Reiko e Kurama, mas seu tio o empurrara delicadamente para outra cadeira.
"Ei, não se atreva a dizer que eu estava mentindo, hein! Mas também não vá pensar que virei um vagabundo mentiroso, é que na vida é preciso ousar, você entende, não é? Você sabe que existem as boas e as más mentiras!".
Kazuya levantou os olhos discretamente para onde Reiko e o avô batiam seus cotovelos um contra o outro, e cochichavam entre si furiosamente.
"O que eu sei é que existem uns velhos meio pirados que perdem a noção das coisas e perdem também a credibilidade dos outros! Vovô, se o senhor não parar com isso eu juro que vou mandar lhe interditar!".
"Você não tem idade o suficiente pra isso!" Disse o avô, coçando brevemente o bigode, carregado de seriedade triunfante.
"Mas o Kazuya tem, o senhor duvida de que eu o convenço em dois tempos a lhe internar!".
"Eu dou uma surra em vocês dois!" E sacudiu o punho fechado sob a mesa.
"Mais um agravante para sua ficha,'tendência à agressividade doentia'!".
"Er, Shuichi, como foi o seu curso, filho?" Perguntou Hatanaka,antes que Reiko e Kenichiro começassem a discutir em voz alta.
"Foi muito bom, pai. Acho que foi o melhor aprendizado que já tive em toda a minha longa existência...".
Todos sorriram, menos Reiko, que abandonara a rusga anterior e já estava partindo para outra...
"Você não viveu tanto assim, viveu?".Indagou ela, calmamente.
"Fisicamente talvez não... mas quando se aprende muitas coisas é como se a gente tivesse vivido mais tempo que as outras pessoas".Respondeu o rapaz, após uma suave risada.Kenichiro Fujiwara fingiu que ia passar o guardanapo sobre os lábios e mostrou a língua à neta...
"E os seus colegas de curso? Já voltaram também?".
Desta vez não havia tons irônicos ou implicância.Kurama fitou a serenidade da moça e sentiu ansiedade por trás disso.
"Um deles não, decidiu ficar por lá mesmo, como você já sabe... o outro vai voltar, mas acho que só amanhã ou daqui a uma semana, não sei...".
"Mas o curso já terminou... não terminou?".
"Já".
"E todo mundo passou... certo?".
Kurama encontrou os olhos azuis de Reiko sobre si.Além da ansiedade, havia também muita angústia na aura da amiga.Ele pôs os talheres junto ao prato, e colocou sutilmente sua mão esquerda sobre a mão direita dela...
"Todos passaram e também aprenderam muitas coisas. Ninguém ficou para trás. Não se preocupe".
O restante dos presentes observava com curiosidade a cena.Mas Shiori Hatanaka foi a única que refletiu sobre isso com mais atenção...seu filho e aquela menina,apesar de serem,pelo menos até onde tinha conhecimento, somente 'primos',às vezes conversavam sobre coisas que só eles mesmos conseguiam entender,usando sempre alguma espécie de 'código' que para os outros soava esquisito,mas que entre eles era estranhamente familiar.
"Eu não sabia que vocês freqüentavam o mesmo círculo de amizades!" Disse Kenichiro, desfazendo o clima cúmplice que se formara ao redor dos dois.Shiori notou que ocorrera uma mudança muita rápida de semblante, tanto em seu filho quanto em Reiko.
"Nós temos alguns amigos em comum".Revelou o rapaz, sorrindo placidamente.
"E que amigos..." Completou Reiko, observando com displicência um pedaço de carne espetado em seu garfo.Os dois trocaram um último olhar à parte, de soslaio, e continuaram a comer, sob um discreto sorriso da mãe de Kurama.
Reiko atravessou o jardim por último, logo atrás dos avós.Antes de seguí-los pela porta da cozinha adentro, olhou para trás e para o alto, para a janela de Kurama.A luz estava acesa.
Foi muito bom vê-lo outra vez...muito bom mesmo.Apesar de tudo, vê-lo sorrindo outra vez e conversando normalmente com ela, mesmo que fosse tudo parte de uma farsa, fez com que Reiko ganhasse a noite.
As bobagens que o avô dissera naquela noite a fizeram lembrar da despedida dos dois, naquele mesmo jardim, há cerca de 1 ano e meio atrás.E depois do comportamento estranho dele para consigo.A verdade é que Reiko já não esperava, talvez nem quisesse, mais nada de Kurama.Fosse por que motivo fosse, a atitude dele durante todo aquele tempo entranhou-se nela de uma tal forma que a mágoa ainda persistia, dividindo espaço em seu coração com a alegria por vê-lo de volta, são e salvo.Nunca mais falaria nesse assunto com ele.Seriam amigos, se fosse possível, e somente isso, até porquê, ela duvidava muito de que ele fosse querer alguma coisa pois,comcerteza, se pretendesse arrumar uma namorada, Kurama procuraria uma mulher fria, sensata, séria e madura.
Tal conclusão fez Reiko bufar e revirar os olhos.Desejou que ele morresse do mais cruel e absurdo tédio ao lado de uma pessoa assim, 'para deixar de ser tão mané!'.
Instantes depois, através do basculante aberto, ela pôde ver que a luz do banheiro se acendera também.Ouviu um ruído distante de chuveiro...
'Ah, ele está tomando banho...'Pensou a garota, apoiando-se no batente da porta.'Minha amiga Usagi sempre diz que depois de um banho os homens adoram uma boa massagem...ele deve estar tão cansado...olha só,se eu fosse um pouco mais oferecida poderia ir até lá e oferecer meus dotes de massagista,he he he...'
Ela começou a esfregar as mãos excitadamente, mas a expressão felina e maliciosa escorregou da cara de Reiko no mesmo instante—o avô a estava chamando para entrar em casa aos berros.
"Ai, quem sabe um dia quando ele desmaiar e não houver ninguém por perto eu possa me aproveitar dele...".
Suspirando com resignação, após dar uma gargalhada feliz, Reiko entrou e bateu a porta.
Momentos depois, Kurama terminou seu banho e observava a janela do quarto da garota, enquanto secava seus longos cabelos com a toalha.Reiko se comportara de uma forma muito fria com ele durante o jantar...não era só uma mera implicância.Talvez suas atitudes anteriores não tivessem contribuído para manter a amizade deles muito aquecida.Mas não devia ser nada que uma boa conversa não pudesse resolver.
'Mas agora?'Se perguntava o rapaz, quando uma vontade nem um pouco aconselhável (mas totalmente convidativa) de atravessar o jardim e bater na janela de Reiko para que ela abrisse e o deixasse entrar passou pelo seu senso.
Kurama estava bem certo a respeito do que Reiko poderia estar pensando dele.Mas como ela lidaria com isso agora que ele voltara, era um outro problema.E ele tinha de resolvê-lo já.
Aquilo não era uma luta contra um inimigo letal, nem uma missão que necessitasse de uma estratégia infalível e previamente planejada, então não tinha porquê pensar muito.Seria o quê, um pedido de perdão?O recomeço de uma amizade ou o começo de uma nova etapa?
Pensando mais além, seria uma aventura desafiadora entrar pela janela no quarto da neta do eminente senhor Kenichiro Fujiwara depois das dez da noite...
Exibindo para o próprio reflexo no espelho, enquanto se arrumava, um de seus mais discretos e marotos sorrisos, ele se decidiu.
Tenho previsão de fazer mais dois capítulos para finalizar essa estória.Minha intenção original era que fosse um one-shot, mas resolvi escrever mais!
Karol Himura:Obrigada pelas reviews nas minhas duas fanfics!É ótimo receber um elogio logo no início!Isso me ajudou a vencer minha preguiça de escrever.
Quem quiser ler sobre a despedida deles, leia a fic A secret smile in the sunrise aqui mesmo.
