Disclaimer: Os personagens libidinosos e deliciosos de Saint Seiya são propriedade do Tio Kurumada. Portanto, tudo o que produzo utilizando os personagens originais dele são objetos de mera diversão e não têm fins lucrativos de espécie alguma. Os personagens, nomes e enredos originais dessa fic, mesmo não sendo de grande valia, me pertencem, contudo.
Comentário Pessoal: Eu demoro mais sempre compareço com capítulos enormes, né? Na verdade, eu nem queria que fosse tão grande, mas algumas seqüências de acontecimentos simplesmente não podiam ser quebradas. Então, estejam preparados! Aqui tem mais um gostinho do 'estilo Verlaine' de falar da infância de Mu. Aproveitem!
Incenso e Vela
Capítulo 9
Lembranças
-x-
Casa de Escorpião
"Você está com uma cara de quem dormiu mal."
"Não dormi, melhor dizendo."
"Há três dias me diz a mesma coisa. Até você precisa dormir, Mu."
"Eu sei, Milo, mas não tenho sono. Tiro um cochilo durante o dia. Sabe que já passei muitas noites em claro como parte do treinamento. Não sou de louça, como pensam..."
"Não é isso. Eu também tive a minha resistência testada, passei noites e mais noites acordado. O que me preocupa é você querer e poder dormir e não fazer isso porque está com a cabeça cheia..."
"Um pouco mais desgastante. Mas já disse que não há nada de errado."
"E a armadura do bronco?"
"Milo..."
"A armadura de nosso querido amigo fofo Shaka..."
Mu riu. Só mesmo Milo o fazia rir. Se não o conhecesse bem, julgaria-o um tolo. Mas sabia muitíssimo bem que o humor era só um das facetas da personalidade cruel do escorpiano, que era uma doce criatura – mas não o tempo todo e muito menos com todo mundo...
"Consertarei quando ele sair de Virgem. Ares me chamou ontem para perguntar porque a armadura ainda não está pronta..."
"E o que disse ao Mestre?"
"Que ela ficaria pronta quando Shaka decidisse quem ia dividir com ele o sacrifício do sangue... você sabe, nem mesmo ele pode me dar todo o sangue que preciso... a fenda é tão grande quanto me disseram..."
"Quem ia fazer isso pelo bron... quer dizer, nosso amiguinho?"
"Não sei."
"Quem deu sangue para a armadura de Shion, Mu?"
"Eu. Levei um ano e meio para consertá-la inteiramente, mas só pus sangue meu. Sangue lêmure... sabia que era assim que Shion ia querer."
"Um ano e meio?"
"Ela estava muito danificada."
"Isso não foi arriscado?"
"Viver é arriscado."
Os olhos de Mu perderam-se no horizonte. Ele então começou uma daquelas suas digressões mentais longas sobre o passado, frutos de sua aguda melancolia depois da morte de Shion. Eram esses fragmentos de passado que arbitrariamente dispunham-se diante de seus olhos, trazendo à superfície blocos de um passado que era seu e, também, em parte, patrimônio daquele Santuário inteiro; Milo, que o conhecia bem, sabia que já não precisava mais ficar, tão absorto que Mu estava em suas lembranças, sequer perceberia se ele saísse; e ele sairia, se não estivesse em sua própria casa. Sentou-se com uma revista e ficou olhando para o ariano, que nem parecia mais estar ali, mas em uma outra dimensão perdida... "Daria uma unha para saber no que pensa..."
Mu pensava que não precisaria de sangue se fosse bom como Shion era, capaz de consertar armaduras com a arte da manipulação da pré-matéria, o Mestre tinha um cosmo de 12 sentidos. Por isso, Mu herdara dele as ferramentas de mestre armeiro, mas não as ferramentas lêmures que ele tanto queria que Mu aprendesse a usar... não houve tempo. Ainda se lembrava bem do poder que elas tinham... muito bem...
Flashback >
"Mu, o que é isso que estou vendo?"
"Mestre, eu ia..."
"Apenas responda o que for perguntado, já estou furioso o bastante." – a voz de Shion era um murmúrio, sereno e baixo. Para Mu, no entanto, ele não precisava gritar.
"São suas ferramentas especiais, Mestre."
"Ah, são minhas ferramentas, as que eu estava procurando. Mu, pode me dizer onde ficam as ferramentas especiais do mestre?"
"Na sua alcova, Mestre. Em Star Hill."
"E elas estão l�?"
"Não, Senhor."
"Onde elas estão?"
"Estão comigo, mestre."
"Estão com você. São estas, não são?" – ele apontou para as ferramentas azuladas.
"São sim, senhor."
"Estas são as suas ferramentas de aprendiz, Mu?"
"Não senhor."
"Que ferramentas você devia usar?"
"As minhas, senhor, mas..."
"Atenha-se as perguntas, por favor. Onde estão as suas ferramentas?"
"No fundo do baú, mestre."
"No fundo do baú... diga-me, Mu, o que fez foi correto?"
"Não senhor, mas..."
"Silêncio, já disse! Chame-me os mestres de Star Hill, quero todos aqui."
"Mas, mestre..."
"J�, Mu."
Em pouco tempo o Conselho dos Mestres de Star Hill, pessoas importantes na manutenção das rotinas do Santuário, estava reunido em Áries. Diante deles, o baú com as ferramentas, Mu e Shion.
"Este é meu jovem aprendiz. E estas são as minhas ferramentas especiais, que jamais deixam a minha alcova em Star Hill. Como podem ver, elas não estão em Star Hill. Foram roubadas. Algum dos senhores podia dizer ao menino qual é a punição para um roubo deste porte?"
Houve um breve momento de hesitação dos mestres, ante a criança pequena que mantinha os olhos fitos no chão.
"A morte, senhor." – respondeu, por fim, Arquimedes, um dos homens de confiança de Shion.
"Entende, Mu? A pena para o roubo das ferramentas é a morte." – ele levantou o rosto de Mu para que todos o pudessem ver. – "A forca. Contudo, você é meu pupilo, e como o conheço, posso afirmar que você não é ladrão. Portanto, não posso penalizá-lo com a morte. "
"Mestre, eu juro..."
"Silêncio, menino! Não sabe que quando o mestre fala você deve ficar em silêncio? Bem, você me deixa um problema: em não sendo ladrão, não houve roubo, e não há pena de morte. Mas assim mesmo, houve uma grave infração dos regulamentos. A pena nestes casos é a expulsão sumária dos perímetros do Santuário."
Os olhos de Mu brilhavam de lágrimas. Mas não as deixava rolar, sabia que Shion não o perdoaria se chorasse entre os conselheiros. Shion observou-o, com sua expressão de desprezo enorme, a mesma que ele sustentava para com qualquer um que desrespeitasse as regras.
"Contudo, admito que é extremamente jovem e que jamais tive problemas com você antes. Enquanto penso em sua punição pelo delito, você voltará para Jamiel. E ficará lá pensando sobre o que fez e refletindo sobre você não ter idade nem discernimento para decidir o que é certo e errado." – olhou para os homens a sua frente, entediado. – "O conselho está dispensando por hoje, muito obrigado, senhores."
Quando os homens deixaram a casa, Dohko saiu, indignado, de trás de uma das colunas de Áries.
"Acabou o circo?"
Shion, aborrecido, virou-se para Mu.
"Espere lá fora um momento."
O menino saiu em silêncio.
"Não me desafie na frente dele, Dohko." – Shion deu as costas para o amante e sentou-se novamente na cadeira de grande mestre instalada em Áries.
"O que fez está absolutamente fora dos limites da decência ou da justiça! Você o expôs ao julgamento do Conselho! Como se ele fosse um criminoso qualquer!"
"Você não tem um aprendiz, não sabe as responsabilidades do cargo."
"Não é parte da sua responsabilidade humilhar aquela criança e aterrorizá-la como fez! Sabe que sou radicalmente contra seu excesso de mimos com ele, mas o que fez hoje foi sádico! Se ele fosse um homem, eu acharia errado, mas não discutiria! Mas ele não é! Ele é um menino!"
"Sabe o que estas ferramentas são, não sabe, Dohko? São minhas ferramentas lêmures, elas têm milênios de idade! Elas são termo-ativadas e extremamente perigosas! Podiam arrancar a mão dele em um movimento mínimo! Zeus! Dohko! Imagine! Imagine meu menino descendo as escadas de Star Hill até Áries, com aquela caixa nos braços! Ele sempre usa túnicas compridas demais! Imagine! Ele podia rolar as escadas com as ferramentas! O menor movimento seria o bastante para deixá-las ativas e perigosas até para eu manipulá-las! E se... e se os meninos aprendizes resolvessem tomar a caixa de Mu? Ele colocou em risco a vida dele, a integridade física de todos e a segurança do santuário!"
"Mas Shion!"
"Não! Você não imagina a agonia que senti ao vê-lo com o martelo na mão! Levei doze anos para poder tocar naquele martelo! E eu já era mestre ferreiro desde os 6! Meu mestre tinha dois dedos a menos por causa dele! Meu mestre que tinha 280 anos! Zeus! Eu pensei que não precisasse mais explicar para Mu que as ferramentas lêmures têm vida própria, elas dependem de um cosmo elevado para serem controladas!"
"Com certeza ele continua sem saber... até quando vai tentar educar essa criança dessa maneira? Até ele enlouquecer? Até ele quebrar porque não agüenta mais? Ou até ele odiar você?"
"A disciplina do Santuário é para todos! – Shion secou as lágrimas com as costas das mãos. – Teria sido assim com qualquer um! Não quero que digam que eu o privilegio por ser meu!"
"Duvido que teria sido tão cruel com outro garoto!"
"É porque eu não me importaria tanto se outro garoto morresse!" – ele levantou da cadeira, andando nervosamente de um lado para outro. – "Sabe o que aconteceria se Mu fosse só um pouco, um pouco mais irresponsável? Dohko, aquelas ferramentas constroem cidades! Uma batidinha de leve em uma armadura seria o bastante para rachá-la completamente e esmagar os membros vestidos sob elas!"
"E por que as deixa l�, onde ele possa pegar?"
"A caixa estava protegida por uma Crystal Wall." – Shion balançou displicentemente uma mecha de cabelo que descia sobre seus olhos.
"E como ele conseguiu ultrapassá-la?"
"Você sabe: ele é cavaleiro. De Áries. E tem todos os meus poderes... e pelo menos duas vezes mais intensos do que os meus..."
"Por causa dela? Da mãe?"
"É claro."
Dohko ficou em silêncio tentando recobrar sua calma. Odiava as menções àquela mulher, mãe de Mu.
"Por que você deixou lá se ele sabia como tirar?"
"Simples: porque o amo demais para largá-lo entre os aprendizes comuns, na vila dos aprendizes, que é onde todos os meninos ficam! Na vila nada disso aconteceria! Mas ele vive em Star Hill. E tem que aprender a respeitar os limites de sua condição de aprendiz, ou serei obrigado a mandá-lo de volta para Pamir."
"Você se excedeu e sabe disso. Não vou deixar o menino com você, nem vou permitir que mande ele para Jamiel toda vez que tiver um problema, como se ele fosse uma trouxa de laranjas viajando de lá para c�!"
"Ele é de minha responsabilidade! Eu não admito que você me desafie!"
"Sabe que está errado." – Dohko saiu da casa e encontrou Mu, parado sob o sol escaldante, sem mover um músculo. – "Menino, porque não parou na sombra?"
"O mestre mandou ficar fora. A sombra fica dentro."
"Por Zeus! Venha!" – deu a mão ao menino. – "Você vem comigo hoje."
Dohko carregou o menino para Libra. De mãos dadas com o pequeno, sentiu as mãozinhas geladas entre as suas, suando frio. Entrou em sua própria casa, sentou-se na ampla sala de entrada. Dohko não tinha mais que alguns tapetes e almofadas em Libra: gostava de espaços amplos e vazios. Apanhou uma tigela com pão e a jarra de água e sentou-se de frente para o menino e serviu-o.
"Você não chora, não é menino? Você é duro." – Dohko admitiu, vendo a criança comer em silêncio.
"Fiz uma coisa errada, merecia ser punido." – respondeu de boca cheia e cabeça baixa.
"Claro que sim. Se fosse meu aluno eu o puniria também. O deixaria meditando na neve até você estar roxo e depois o colocaria para dentro e suspenderia suas aulas por duas semanas. Shion se excedeu com você."
"Teria feito com qualquer um."
"Não teria não... mas para que queria as ferramentas afinal?"
"Presente de aniversário para o mestre: queria fazer uma espada de ouro para ele."
"Você é um menino muito bom." – Dohko sorriu. Tinha uma natural implicância com aquela criança que havia lhe roubado uma parte considerável da atenção de seu amante, mas tinha de admitir para si mesmo que ele era realmente tão adorável quanto Shion dizia que era e que tinha puxado do seu mestre tudo aquilo que Dohko mais amava, em especial aquele ar orgulhoso e arrogante: o mundo podia estar desabando sobre ele, mas sustinha sempre seu ar delicado de onipotência. Como Mu, que apavorado como estava, ainda assim comia calmamente, como se nada fora do normal estivesse se passando. "Você se parece com ele..."
"Por isso eu o entendo."
"Estou vendo. Acha mesmo que ele o mandará para Jamiel?"
"Espero que não. Eu não gosto de ficar sozinho. Mas a vila também é muito chata. As mulheres apertam minha bochecha..."
"É porque você é fofo!" – apertou as bochechas do menino, que riu da brincadeira.
Durante a noite Dohko estendeu sua esteira de palha de bambu em um canto para dormir. Para Mu, preparou algo que se parecesse mais com uma cama, uma forração com algumas mantas e até um pequeno travesseiro. Ficou olhando para o menino, até ter certeza de que ele dormia. Sabia que ele sentia falta de Shion... afinal, ele também sentia falta do seu ariano, voluntarioso, autoconfiante e acima de tudo, justo. Assustava-o às vezes o descontrole de Shion. De uns tempos para lá era como se Shion estivesse trocando de personalidade e é claro que ele e o menino – que eram os que mais próximo do Mestre estavam – é que mais sofriam. E o menino mais, pelo agravante de ser só um menino. Estava quase conseguindo dormir, quando um corpo quente e delicado encostou ao seu. A voz adorada murmurou em seus ouvidos. "Você está sempre certo, meu amor...".
"Shion... o que faz aqui?"
"Não sabe?" – ele puxou a mão de Dohko e a trouxe junto de si. Ele estava nu.
"Mudou de idéia?" – Dohko virou-se para ele. Shion era uma peça de prata sob a luz da lua, branco, leitoso, vestal.
"Não devia amá-lo como a um filho. Ele deveria ser só o meu aprendiz e não a razão da minha vida."
"Pensei que a razão da sua vida fosse a proteção de Athena."
"Digamos que é uma divina trindade: Athena, meu menino e um certo talentoso cavaleiro de ouro..."
"Apesar de ser o último citado, ainda assim eu o amo também." – beijou-o e apontou para a caminha onde dormia o pequeno, já mais distante deles. – "Ele é um menino muito bom..."
"Eu sei..." – deitou o braço sobre o tronco nu de Dohko. – "Mas às vezes me arrependo de treiná-lo para ser um cavaleiro..."
"Por que?"
"O destino de um cavaleiro é morrer por Athena. Sacrificamos tudo, nossa juventude, infância, amigos, família... eu queria tanto que Mu tivesse uma vida normal na vila... uma namoradinha, um pai e uma mãe para que o tivesse amamentado, uma casa para cuidar, ser pastor de cabras, morrer velho e feliz, cercado de tataranetos e estórias alegres... queria me sentar com ele nas tardes e ensinar-lhe canções, brincar com ele, estreitá-los nos meus braços e dizer tolices de pai... mas não posso! Tenho de ensiná-lo e bem, porque ele será meu sucessor. Sabe o que é ser meu sucessor... ser perfeito e nunca ainda ser o bastante..." – ele começou a chorar delicadamente – "Ser perfeito e nunca ser o bastante, Dohko... nunca seremos bons o bastante..."
"Não chore, amor... ele será feliz. Eu sou feliz com você. Ele te adora."
"Porque eu sou tudo que ele tem. Se pudesse comparar, talvez não me amasse tanto."
"Isso te angustia, não é?"
"Não queria me impor para ele."
"Mas você se impôs por ele. Arque com as conseqüências."
"Já estou arcando. O sábio Prabhu me advertiu sobre isso. Sempre me disse que meu amor por ele acabaria por nos destruir... ele tinha razão. Eu nunca sei o que fazer..."
"Você é teimoso. Mas agora seu velho mestre não pode mais te ajudar com o menino. Ele é todo seu. É todo sua responsabilidade..." – viu a dor nos olhos do seu querido ariano – "Shion ... ele é uma ótima criança, você está se saindo bem..."
"Será que um dia Mu me entender�? Ou talvez... quem sabe, um dia... ele seja até capaz de me perdoar?"
"Ele já o perdoou." – olhou para cima e reparou que dois olhinhos verdes e atentos os espiavam. – "Não perdoou, Mu?"
"Mu, o que faz acordado?" – perguntou Shion, sem nenhuma vontade de se cobrir. Desde muito cedo ensinou seu pequeno a respeitar nudez e não fazer aquela cara de cristão da Idade Média toda vez que via um órgão sexual desnudo. Afinal, estavam na Grécia. O culto humanista pedia uma educação mais liberal.
"Desculpe, senhor. Ouvi a conversa." – e emendou, muito sério. – "Mas eu não queria."
"Claro que não, você é sempre discreto e respeitador." – Shion sorriu para ele. Quer deitar aqui no meio?
Ele balançou a cabeça feliz. Deitou-se e aninhou-se contra o peito de Shion. Gostava de ouvir o coração do mestre bater junto ao seu e de sentir o corpo dele, enorme, bem atrás do seu, como se ele fosse uma muralha, uma armadura viva, protegendo-o de todo o mal. Nada podia lhe alcançar ali... estava seguro. Entre Dohko e Shion... como uma noz, entre suas duas cascas. Não conseguia imaginar que pudesse existir uma força no mundo capaz de ser mais forte que eles... sentiu a mão do mestre nos seus cabelos, com seu habitual cafuné antes de dormir.
"Mestre..."
"O que?"
"Não me mande para Jamiel, por favor... me castigue aqui. Eu ia ficar muito triste de ficar longe do senhor..."
Shion sentiu uma lágrima descer do seu rosto e cair sobre os cabelos do menino.
"Eu vou junto com você, minha criança. Precisamos fazer nossa visita anual para o Sábio Prabhu e tomar o nosso banho lustral no Ganges, lembra-se? É parte da nossa obrigação."
"Oba, banho no Ganges!"
"Banho no Ganges!" – ele deu uma cutucada em Dohko, que fingia dormir de costas para eles. "Quer tomar banho pelado no Ganges, Libra?"
"Um convite seu, Áries, é sempre irrecusável..." – virou-se e coçou os pés pequenos de Mu, que riu com cócegas.
-X-
Foram ao Ganges naquele ano. E em todos até a morte de Shion. Nunca mais o banho lustral fora o mesmo. Nunca mais a visita ao Sábio Prabhu seria a mesma. Nada, nunca mais seria o mesmo. Nunca mais seria repreendido por Shion pelo seu 'excesso de alegria' no banho do Ganges – porque jamais seria tão alegre como era naquela idade, quando se sentia seguro e feliz, quando o ano era só a espera pela viagem à Índia, para passear de mãos dadas com Shion e Dohko por Bombaim; dançar a Tandava, a dança de Shiva e visitar a vila dos lêmures. O mundo era então pequeno, descomplicado e feliz. Como jamais tornaria a ser.
Flashback>
- X -
"Mu?"
"Shaka, não esperava vê-lo aqui. Você parece bem melhor hoje."
"Estou. Vim chamar você para que conserte a armadura. Já me sinto disposto."
"Tem certeza? Eu posso esperar mais."
"Não. Eu quero que seja logo."
"Estarei em Virgem às seis horas da tarde. Esteja com armadura lá."
"Às seis?"
"É a melhor hora. O crepúsculo tem uma concentração cósmica maior: não é completamente noite, mas também não é totalmente dia. É quando as forças mais obscuras do universo vagam juntas entre as tênues linhas da manhã e das trevas da noite. É um ponto indefinível de forças – é o único horário em que não há bem nem mal absoluto. Está tudo em harmonia, e ao mesmo tempo, em caos."
Shaka sorriu satisfeito em constatar a sabedoria de Mu.
"Então estarei esperando você lá."
"Shaka..."
"O quê?"
"O que me pediu... também estou pronto... ainda quer?"
"Você está mesmo disposto?"
"Sim."
"Então também quero."
- X -
A armadura de ouro de virgem era delicada e luminosa. Seus pedaços espalhados pelo chão da casa de virgem reluziam, mesmo em confronto com a claridade ofuscante do sol. Mu a olhava, com alguns martelos junto de si. Não ia precisar muito deles. Eles só serviriam para reparos na matéria mais aparente da armadura – um reparo que só poderia ser feito quando o corpo cósmico dela estivesse recuperado, e isso exigiria sangue, muito.
"Quer que corte seu punho ou você mesmo o abre?" – perguntou Mu, tentando disfarçar algum nervosismo em sua voz. Tinha tanto medo por Shaka. Mas não havia hesitação no semblante sereno do virginiano.
"Eu abro." – levantou a mão com os dedos alinhados e golpeou seu punho. O sangue saiu imediatamente pela fenda aberta, derramando-se sobre a parte superior da armadura, a parte que seria restaurada.
O sangue jorrou durante angustiantes minutos. Mu observava atentamente todos os mínimos movimentos faciais de Shaka, tentando apreender qualquer sinal de fraqueza do outro. O indiano loiro parecia não sentir fraqueza pelo jejum forçado de dias, estava tranqüilo enquanto seu sangue despejava-se como um rio rubro. Ambos estavam de pé, Shaka mantinha suas pálpebras fechadas voltadas para os olhos de Áries, cuja agonia era evidente. No entanto, subitamente enfraquecido, Shaka teve um vertigem e caiu de joelhos. Mu o aparou imediatamente, passando o braço do outro por sobre seus ombros. Sentou-se e ajudou a acomodar o corpo do virginiano junto de si, aconchegando a cabeça augusta junto ao seu peito.
"Chega, meu querido. Já fez tudo o que podia." – segurou o punho de Shaka, liberando dos seus dedos um linda luz dourada. Ela fechou o punho e estancou o sangue.
"Já é o bastante?" – ele murmurou num fio de voz.
"Não, ainda não. Falta muito, mais da metade..."
"Mas e então?"
"Eu continuo daqui."
Mu abriu seu punho e viu seu sangue juntar-se ao de Shaka sobre a armadura.
"Mu... "
"O que é?"
"Vai precisar de muito sangue seu?"
"Sim."
"Você corre risco?"
"Um pouco. Mas já fiz isso outras vezes."
Sentiu o hálito morno do outro no seu pescoço seguido de um beijo suave, perto da orelha, o suficiente para desmoronar a concentração de Mu. Antes que ele pudesse se recuperar, Shaka sussurrou:
"Você é bom... seu cosmo é quente e delicioso..."
"Meu Zeus," pensou Mu, a cabeça loira aninhada em seu peito, "é de fato uma criança... não tem idéia das coisas que diz e da força que suas palavras têm..."
Ficaram ali durante meia hora, o sangue de Mu fluindo sobre as partes rachadas da armadura. Shaka, que tinha deitado a cabeça contra o peito do ariano sentia a respiração do outro cada vez mais fraca, o bater de seu coração menos intenso.
"Pare, Mu... já chega..."
"Estou bem."
"Não está. Seu coração bate fraco e sua respiração está muito baixa..."
"Falta pouco."
"Pare agora..."
"Calma... sei o que estou fazendo."
Shaka, impaciente, tomou-lhe a mão e retribuiu o gesto de Áries, fechando-lhe o punho também.
"Já está bom." – sentenciou o virginiano.
"Ai, Shaka... eu podia ter posto um pouco mais... mas vamos deixar o sangue aderir bem. Depois eu posso reparar a parte visível."
"Fique aqui, então."
"Shaka..."
"Fale."
"Posso beijar sua testa?"
Ele balançou a cabeça como um 'sim'. Mu aconchegou-o no seu regaço como uma mãe faz com seu bebê, acariciou o rosto macio e bonito do cavaleiro de Virgem e beijou-o terna e demoradamente no ponto do terceiro olho, no centro da testa, feliz ao constatar que a pele do outro se arrepiara de prazer com o carinho.
"Você é lindo como um deus."
"Eu sei." – Shaka admitiu, rindo como uma criança travessa.
"E não é modesto."
"Gostaria que eu fosse mais humilde, Mu?" – perguntou, segurando com os dedos longos a mecha delicada de cabelo lavanda que precipitava-se em seu rosto.
"Não... eu sei lidar com sua língua ferina e com sua empáfia. Fico desorientado de ver você frágil e modesto... "
"Eu gosto de ficar assim..."
"Assim como?"
"Nos seus braços."
"Inconseqüente!", pensou Mu. "Ele não sabe medir o que fala...". Entretanto, admitiu para si mesmo que, ainda que de uma imensa crueldade, a inocência pungente de Shaka o agradava.
"Gosta de estar em meus braços?"
Os olhos cerrados pareciam mover-se sob as pálpebras, uma expressão contrita de tristeza.
"Ninguém nunca me abraçou de verdade. "
"Por que?"
"No templo, por respeito, ninguém me tocava."
"Ah, então não é dos meus braços que gosta... gosta de braços..."
Shaka virou as pálpebras para Mu. Passou os dedos sobre os lábios finos do ariano.
"Não diga isso. Sabe que não é verdade."
"Desculpe, Shaka. Estou sendo tolo." – beijou a mão branca. – "Desculpe."
"Nunca duvide que são só os seus braços. E nenhum outro."
"E por isso vou morrer." Pensou Mu, amargurado.
"Quanto tempo temos que esperar pela armadura, Mu?"
"Uma hora ou duas. Depois já posso manipular melhor o cosmo dela."
Shaka tomou a mão de Mu, trouxe-a próxima de si e a beijou.
"Suas mãos são de porcelana. Nunca devia lutar..."
"Luto por Athena."
"Os deuses é que deviam protegê-lo, não o contrário."
"Fale pouquinho, Shaka... você ainda está fraco."
"Você... e aquele... homem... aquele..."
"Aioria?"
"Eu vi você sair da Acrópole com ele... no dia da luta..."
"Aioria é um bom amigo..."
"Amigo..."
"Não seja impertinente, Shaka..."
"Ele é... seu amante?"
"Não..." – Mu riu suavemente. Ciúmes... em Shaka!... tão reservado e tão inacessível!
"Então o que é? O que fez com ele?"
"Por que quer tanto saber?"
"Não sei..."
"Está curioso, não é? Pois eu digo que posso fazer com você amanhã o que fiz com ele, se você tiver vontade."
O rostinho de Shaka contraiu-se numa expressão indecifrável.
"Nada de 'indecente' que você esteja pensando. Fomos ao cinema e tomamos sorvete. Só isso."
"Só?"
"Não, fizemos mais coisas... mas eu posso só ir ao cinema e tomar o sorvete com você."
"Que gosto tem sorvete?"
"Depende do sabor. O nosso preferido, meu e do Aioria, é o de creme. O velhinho que vende o sorvete, o senhor Karnassis, vende sorvete na porta desse cinema desde antes de nós nascermos. Você vai gostar, e como o sorvete é feito em casa, não tem perigo de piorar seu alergia..."
"Eu já melhorei bastante."
"E vai melhorar mais."
"Mu, posso te perguntar uma coisa?"
"Claro."
"Por que é tão bom comigo? Sei que assusto as pessoas. Nem todos compreendem a vastidão dos meus poderes e muito menos as obrigações que eles me impõem. O poder é um fardo que os que não possuem não compreendem."
"Quer que seja honesto?"
"Espero que seja."
"Porque eu o amo, desesperadamente."
Shaka deu um longo e triste suspiro.
"Eu já imaginava."
"Te aborrece?"
"Seu amor é minha doença – degenerativa, incurável."
"Lutaremos depois de amanhã. Tudo estará resolvido."
"Hmm-hum." – ele abraçou o corpo de Mu mais próximo de si.
Cansado, Shaka adormeceu nos braços do ariano. Mu o acomodou na esteira e preparou-se, meditando por algumas horas para seu trabalho. O sangue havia secado de tal maneira que já não havia vestígio dele. Entretanto, a força do cosmo de ambos já estava incorporada à massa de cosmo da armadura. Modelava com a mão do cosmo a fenda, que com o calor uniu-se. Unida a fenda do cosmo, Mu tomou o martelo, e com o calor das mãos remodelou a fenda aparente no ouro, o martelo ajudou a refazer os detalhes, junto com uma espécie de formão. Detalhes refeitos, Mu ainda manteve seu cosmo ardendo por algum tempo, para que os detalhes ficassem ainda mais vibrantes e os dourados reluzissem mais. Já amanhecia o dia quando ele deu seu trabalho por terminado, exausto. Secou o suor que descia da testa lívida e arrumou suas ferramentas. Percebeu que Shaka o olhava, já acordado, da esteira.
"Não se incomode comigo. Vou para Áries e descansarei um pouco. Estou muito esgotado. A matinê começa às sete. Eu passo para apanhar você às seis e meia. Está bem assim?"
"Está. Tem certeza de que não será muito cansativo?"
"Estou cansado agora, mas até lá já estarei recuperado. Não deixe de comer."
"Vou comer. Mas não muito... quero estar com apetite para o sorvete..."
Mu sorriu satisfeito enquanto saía da casa de Virgem.
"Espere, Mu..." – a voz de Shaka o chamava.
"O que foi agora?"
"Minha armadura agora também terá um pouco de você..."
"E de você também... tem sangue de nós dois."
"Será nossa... é quase um filho."
"Você a cobrirá de honra um dia, eu sei."
"Tem seu sangue nela: ela já está coberta de honra."
Mu conteve sua emoção. Sorriu para Shaka e atirou-lhe um beijo no ar. O virginiano não fez sinal algum de retribuição, mas quando descia as escadas de Virgem, sentiu algo morno, a força de um cosmo poderoso aproximar-se dele esquentar-lhe a nuca, uma brisa perfumada beijar suas faces e brincar com seus cabelos. Suspirou, embevecido de uma felicidade estranha e sem alegria alguma. "Meu doce e querido Shaka... o que eu não faria por você?"
- X –
"Shaka... Shaka! Sou eu! Mu!"
"Você está dois minutos e trinta e cinco segundos atrasado."
"Você estava contando?"
"Eu tenho uma excelente percepção temporal... vi pelo sol."
"Até os segundos?"
"Não, os segundos eu vi no relógio digital do rádio."
"Tem rádio em Virgem?"
"Tem. Velho, mas tem. É um bom relógio."
"Vamos?"
"Já sabe o filme que vamos ver, Mu?"
"Vão reprisar Splash, Uma Sereia em Minha Vida."
"Uma reprise?"
"O cinema é velho. Mas Shaka... você não pode ir assim..."
"Assim?"
"É, com uma túnica! Olha! Ela é transparente... Zeus!... você não usa nada por baixo?"
"Mu! – Shaka estava com as bochechas vermelhas."
"Shaka, ninguém se veste assim na Atenas de hoje! Eles não se vestem assim desde os tempos de Ulisses e Agamemnom! Para eles isso é roupa de estátua, Shaka! Eles são cristãos ortodoxos, para eles você está nu!"
"Mas no santuário todos se vestem assim..."
"O Santuário é o santuário! Aqui o tempo não passa!"
"Mas... você está com a mesma roupa daquele dia! Só tem ela?"
"Para que eu teria mais? Eu moro em Jamiel..." – ficou olhando o corpo de Shaka, disfarçando para não constrangê-lo ainda mais, a túnica branca, de tecido fino, revelava absolutamente todas as formas e volumes do corpo loiro de Shaka.
"As roupas de Milo devem lhe servir."
"Daquele homenzinho efeminado e pedante? Não, obrigado."
"Não seja tolo. Eu peço a ele. Vamos."
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Algum tempo depois.
"É, tenho que admitir que, apesar de intragável, você tem uma certa elegância. Mas esse pulôver preto fica muito melhor em mim..."
"Acho que é impossível que ele fique melhor em você. O loiro do meu cabelo realça o escuro da roupa."
"Pulha."
"Milo, por favor..."
"Ele que começou, Mu... eu nunca engoli essa estória de indiano loiro!"
"Não sou indiano, nasci do Lótus. Sou divino, portanto não tenho nacionalidade."
"Ah! Escreveram isso na sua certidão de nascimento? Mãe: Folha do lótus?"
"Grego ignorante."
"Indiano estúpido."
Mu deu um logo suspiro. Tentou mudar de assunto:
"O jeans escuro também te caiu bem. Vocês tem quase o mesmo manequim."
"Fica apertado aqui embaixo. – Shaka apontou para o cavalo da calça."
"Há-há-há. Muito engraçado... você é cadeirudo, por isso a calça te aperta." – replicou Milo, furioso com a insinuação de que era 'menos dotado' do que Shaka.
"Não está apertada nada. Está muito bem assim. Os sapatos serviram?"
"Cuidado com eles, monge. São sapatos de couro de avestruz brasileira. Custaram uma fortuna."
"Imagino."
"Você está muito elegante, Shaka. Só falta um cachecol." – Mu enrolou a peça de lã fria cinzenta no pescoço de Shaka.
"Meu cachecol russo, Mu! Cinza como Moscou! Cuidado, hein? Custou muito caro!"
"Olha, Milo! Ele não ficou elegante?"
"Elegante demais para o pulgueiro onde vocês vão..."
"Isso não importa, o que importa é que ele não esteja usando uma túnica branca transparente..."
"Eu gostei da túnica..." – comentou Camus, inocentemente, enquanto folheava uma revista.
"CAMUS!" – Milo arregalou os olhos azuis escuros.
" Milo, é uma bela túnica, filho..."
"Sei que você estava reparando na túnica... você só me envergonha e na frente dele."
"Filho..."
"Páaaaaaaaaaaaaaara! Não sou seu filho!"
"Ele é sempre descontrolado assim?" – o loiro apontou para Milo com uma careta.
"Shaka, não complique..."
"Mu, ele precisa de um pouco de passiflora..."
"Ele vai tomar um calmante melhor que passiflora, não é, Camus?"
O francês demorou a entender a piada.
"Ah... é... pode ser."
"Pode ser? É assim que se refere a mim na frente dele? Pode ser? Pois eu te digo, francês dos infernos: NÃO pode ser!"
Milo saiu batendo o pé e Camus atrás dele. Mu ria gostosamente, sua gargalhada de boca aberta, os dentes mimosos, que pareciam dentes de leite enfeitavam-lhe as faces.
"Vamos, Mu?"
"Falta um detalhe..." – ele colocou um par de óculos escuros nele.
"Mu, já está escurecendo, que vergonha eu usar isso!"
"Acredite em mim, as pessoas lá embaixo vão ficar chocadas se repararem que você enxerga de olhos fechados..."
"Ah, por isso..."
" Cuidado... são os Yves Saint Laurent de Camus. Milo me mataria se acontecesse algo com eles. Me dê o braço. Vou fingir que guio você... e vamos precisar tomar um ônibus... nos atrasamos com a coisa das roupas..."
"Ônibus?"
"É, nunca andou em um?"
"Não."
"Ora, para tudo há uma primeira vez.
Chegaram atrasados e entraram correndo. Obviamente, o cinema pulguento da baixa nunca estava cheio. Era um lugar nostálgico, onde a amplitude de idade dos freqüentadores era imensa: ou adolescentes muito novos ( que não estavam interessados em filme algum, mas antes na oportunidade de bolinarem-se, já que não tinham idade para motéis ) ou casais muito velhos, que iam lá matar as saudades do passado. Mu sentou-se ao fundo com Shaka e um saquinho pequeno de pipocas, que ele comia e dava na boca do virginiano durante o filme, como se fosse um dos velhinhos da primeira fila, como um hábito de anos e anos dando de comer para seu querido amor. Segurou o braço de Shaka firme junto ao seu, segurou a mão loira, maior do que sua, e chorou baixinho. "Eu não serei como estes senhores e sua velhas companheiras... eu não vou poder envelhecer ao lado do meu amor... nem segurar sua mão enrugada... para mim não haverá nostalgia. Eu morrerei tão jovem como o meu amor é hoje..."
"Você está chorando, Mu?"
"Tenho pena da Madison." – mentiu.
"Eu tenho mais pena do... do..."
" Tom Hanks."
"É..."
"Sabe o que eu nunca entendi desse filme?"
"O que?"
"Como eles podiam ter relações sexuais se ela era um peixe e ele um homem."
Shaka olhou para Mu, uma expressão de grave seriedade.
"Talvez isso não fizesse nenhuma diferença para eles."
Mu deitou a cabeça no ombro dele.
"É uma possibilidade muito remota, mas... "
"Por que isso é tão importante para você, Mu?"
"É fácil abdicar de algo que não se conhece. É fácil renegar o valor do amor da carne quem nunca o experimentou. E é covarde desprezar o amor entre indivíduos estando confinado e distante de qualquer ser... também já vi treinamentos semi-monásticos. E funcionam – se você for um monge para sempre. Estando no mundo..."
"Estando no mundo é que se testa a capacidade de um homem manter-se espiritual e elevado."
"E todos eles falham, porque a morte e a falha são as duas únicas características pertinentes a todos os homens. Todos vamos morrer e todos falharemos em algo."
Shaka trouxe a mão de Mu aos lábios e a beijou.
"Queria ter sua certeza. Mu..."
"Você não quer. Se quisesse, teria. Mas você vê o mundo como algo a ser repelido. Eu não. Eu quero viver!"
"Eu também quero viver."
"Eu quero tudo! Quero tudo que a vida me oferecer, a dor, o amor, o gozo. Tudo. A vida é curta Shaka. E eu não tenho medo de amanhã."
"É preciso que um homem saiba ser elevado. Ninguém é forte se for corrompido pelas coisas mundanas."
"Não quero ser elevado em excesso. Jamais serei divino, jamais serei perfeito. Se tentar, só me restará a frustração de não conseguir. Quero ser humano, cheio de erros até o último fio de cabelo."
Shaka o observou por algum tempo. Mu era tão lindo! Seu coração doía só de admirá-lo.
"E no entanto, ariano querido, em você não há erro algum. Nem falha. Nem mancha. Você é limpo como os rios do paraíso."
Mu virou-se totalmente para Shaka. Ele parecia místico e iluminado, todo vestido de preto e a pele cor de lírios emergindo da gola do pulôver escocês de Milo, os cabelos loiros espalhados sobre o cachecol cinza, a luz da tela e o movimento do filme refletindo no rosto querido e suave. Ele era todo um poema em movimento: Shaka era um soneto de Shakespeare... eterno, fresco, primaveril... thy eternal summer shall not fade...
"O que você quer, Shaka?"
"Vamos lutar amanhã, não vamos?"
"Às cinco da tarde."
Ficaram em silêncio, encarando-se.
"Por que me olha assim?" – Mu perguntou, por fim.
"Para guardar cada sutileza e cada traço do seu rosto em minha alma."
"Eu também pensava nisso."
"Conseguiu?"
"Nunca conseguirei apreender essa beleza sobrenatural que emana de você."
"Nem eu."
Saíram cedo da matinê. Karnassis preparou o especial de creme para Mu, mas Shaka preferiu experimentar o de chocolate; divino e recluso, jamais experimentara certas coisas. O chocolate e o sorvete eram coisas que não conhecia e Mu surpreendeu-se em ver que ele foi capaz de devorar seis casquinhas de uma única vez. Por causa da inesperada peraltice, faltou dinheiro para o ônibus. Voltaram a pé. Claro, Mu poderia tê-los tele-transportado facilmente, mas não queria que a noite acabasse nunca. Estavam mudos, e no entanto, nunca se comunicaram tão bem, andando por ruas estreitas de mãos dadas.
Dado momento, Mu apontou um banco de praça. Sem palavra, sentaram-se um do lado do outro. Mu deitou a cabeça sobre o ombro do virginiano que, em retorno, segurou-lhe as mãos carinhosamente, e as colocou, junto das dele, sobre seu colo. Lá ficaram, imóveis, até de madrugada. Mu sentia a agonia da morte aproximar-se dele, sem poder repeli-la de vez. Sabia o que estava fazendo, aceitando lutar contra Shaka – aceitara morrer. Jamais ousaria levantar a mão contra ele, não seria uma luta, em absoluto. Seria um holocausto. Mas não se sentia um mártir. Era por amor que o fazia, era para que Shaka pudesse continuar a sorrir e viver que ele discretamente sairia de cena. Era uma maneira nobre de se deixar a vida. Entretanto, ironicamente, quanto mais sentia o perfume de flores do virginiano, o calor macio das mãos sobre as suas, a respiração delicada, o hálito doce em suspiros, mais seu coração se enchia de uma vontade absurda de viver, mais queria lutar contra o destino, mais forte parecia ser. Sentiu uma lágrima cair pela sua testa e deslizar entre os dois pontos. Os olhos de Shaka estavam cerrados, mas os cílios molhados o denunciavam. Mu abraçou-o carinhosamente, as mãos despenteado as mechas longas e loiras entre seus dedos.
"Vai sentir minha falta, Shaka?"
"Já sinto. Já sinto muito a sua falta, Mu..."
As mãos do virginiano o apertaram junto de si. O cheirinho de talco inglês do pulôver de Milo era delicioso.
"Shaka..."
"Eu juro que você não vai sofrer... eu juro."
"Eu sei... você não permitiria isso..."
"Não... vai ser rápido..."
"Eu não tenho medo..."
"Você é corajoso."
"Dez vidas eu tivesse, dez vidas eu lhe daria, de bom grado, meu querido, por um abraço como esse."
Shaka não respondeu, mas continuaram abraçados na mesma posição até os primeiros sinais da manhã surgirem, quando andaram novamente até o santuário. Mu sentia a deliciosa brisa da noite que se despedia ferir-lhe os olhos como farpas. Era o fim. Seu último dia, sua última brisa, seus minutos de angústia antes do sacrifício... Shaka parecia tão calmo... Olhava para o virginiano ardentemente à espera de algo que o redimisse, que dissesse que sofria, ao menos um pouco, com tudo que estava lhes acontecendo, mas ele estava impassível, mudo, expressões neutras. A mágoa envenenou a beleza de Áries: seus olhos perderam o viço, o sorriso apagou-se. Ele apagou-se. Quando chegaram em Áries, Shaka o deixou na porta, beijou sua testa, entre os pontos sem tocá-lo muito, quase como se não quisesse olhá-lo, evitando-o.
"Tenha um sono bom, Mu."
"Sabe que eu não vou dormir." – Mu confessou, quase chorando.
Shaka já estava de costas. Ele continuou andando um pouco mais, mas virou-se bruscamente. Mu viu as lágrimas sob as pálpebras sempre fechadas.
"Eu também não. Nem hoje, nem nunca mais."
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Comentários & Agradecimentos:
Nana: Inegável a participação de Nana e Amyzinha em todos os capítulos de tudo que escrevo. Nana, você sabe que te acho uma gracinha e que para mim não importa quantos reviews eu tenha, uma fic minha nunca está completa sem um review seu, da Amy e da Lola, minhas fiéis companheiras de ficwriting. Te adoro! Beijinhos, Rê.
Ada Lima: Ol�, querida! Rendido o Shaka sempre esteve aos encantos de Mu... admitir para sai ainda não foi dessa vez.
Sinistra Negra: oi! Você não precisa se desculpar, antes tarde do que nunca! Espero que você goste da fic e continue gostando dela até o fim! Beijos!
Lili Psiquê: brasiliense meiga! Sim, continuo! Olha aí mais um capítulo grandão! E esse chio de Muzinho e Shakinha sim! Nada de terceiros!
Kitsune Youko: Oi! Olha, você terá de ler essa fic ignorando a cronologia e boa parte da estória 'oficial'. Eu mudei mesmo um bocado de coisas.inclusive a nacionalidade do Máscara da Morte mesmo... se você estiver interessada, eu falo disso em outras fics, mas nada que te deixe sem entender essa... beijinhos!
Mo de Áries: putz, matar o Mu duas vezes seguidas deve até dar azar! Apesar disso, só o tempo dirá o que pretendo fazer com Muzinho... hehehe. Não, eu não sou perversa! E eu sei que eles são tão lindinhos juntos!
Luly Amamiya: também me deixa passada escrever um Shaka desse jeito, mas se você reparar, o Shaka é uma criança grande. Ele não tem lá uma grande maturidade emocional e reage como uma criança mimada à maioria das coisas ao redor dele. Ele não é mal, nem cruel, nem nada parecido. Ele é imaturo, mas até o final ele já terá – eu espero – aprendido bastante. Ah, sim, e obrigada pelo review!
Celly M: Espero que a senhorita tenha reparado alguma evolução nos meus textos, já que os conhece de longa data! E sim, minucioso ele é, mas é bem 'viagem na maionese' – não tem nada a ver com os originais. Mas eu gosto de pensar que, assim mesmo, está de uma certa forma 'coerente' com o que os personagens são... afinal cronologia também não é o forte do tio Kurumada!
Ia-Chan: É, para você ver, inocentes somes nós! O virgenzinho do Shaka, na hora que o bicho pega, bem que sabe o que fazer... instinto é fogo, nem o nosso mongezinho escapou! Obrigada pelos elogios, querida!
Ufa!
Bélier, muito obrigada pela delicadeza dos seus comentários. Vale muito para mim saber que eu pude escrever algo bom para alguém que, na minha opinião, é a autoridade máxima de MuxShaka no FF . net. Obrigada, obrigada, obrigada! Estou trabalhando duro na sua resposta, porque um email daqueles merece uma resposta a altura!
Verinha, você também está na categoria dos 'quietinhos' que sempre dá um jeitinho de dar um força! OBRIGADA!
Aos meus outros quietinhos, BEIJOS e bom final de semana!
