Disclaimer: Os personagens libidinosos e deliciosos de Saint Seiya são propriedade do Tio Kurumada. Portanto, tudo o que produzo utilizando os personagens originais dele são objetos de mera diversão e não têm fins lucrativos de espécie alguma. Os personagens, nomes e enredos originais dessa fic, mesmo não sendo de grande valia, me pertencem, contudo.
Comentário Pessoal: Então, gente... É o fim! Acaba aqui a nossa Incenso e Vela. Devo a todos vocês, indiscriminadamente comentadores assíduos, comentadores de momento, ocasionais, leitores fantasmas... enfim, todos vocês, um obrigada do tamanho do mundo. Essa fic foi um sucesso, não em termos de reviews – isso é o de menos. Mas pela qualidade do feedback que recebi. Eu adorei fazê—la, foi um laboratório para vários personagens e para muitas "teorias" que inventei. Então, aqui está, o último capítulo. Divirtam—se!
Incenso e Vela
Capítulo 15
Despedida
–x–
Mu acordou sentindo—se miserável. Balançou a cabeça e os fios lavanda caíram sobre seus olhos, a luz que entrava pelas frestas que ventilavam o quarto fustigavam seus orbes (só para não repetir olhos) cansados. Já não havia sinal algum de Mahadevi. Já não havia sinal algum de coisa alguma, exceto da vasta solidão daquele lugar, milhas e mais milhas de distância de qualquer coisa ou vivente: um templo ao deus da solidão.
"Meu Deus da Solidão." – pensou Mu, quando seu corpo, antes da sua mente, ressentiu—se da falta de Shaka o seu lado. Quantos dias dormira com a respiração adocicada e suave do Virginiano em seu pescoço? Dois? Três? Era uma vida, a sua vida inteira, o hálito perfumado e carregado de lírios parecia ser seu cordão umbilical: aquilo que o ligava ao ventre do Amor, da Fortuna, da Vida. Agora ele estava desligado desse cordão, sem gritos, sem lágrimas. Não chorava – seu cordão umbilical cortado não o fazia "nascer", mas sim morrer. Era um parto às avessas.
Sentou—se na cama e olhou para a janela miúda. As montanhas geladas de Jamiel não lhe diziam nada. Ninguém entendia... Tolos! Como eles podiam não ter percebido que era Saga? Ele, Mu, tinha uma desculpa: ele amou Saga, com todas as forças mais puras do seu coração, como o parente mais próximo e mais especial que uma criança poderia ter: ele era o 'irmão mais velho', o adulto. Enquanto Aioria podia estar sempre com Aioros, ele tinha Saga. Saga o levara ao circo, ao cinema, aos parquinhos, à praia. Ele o ensinara a nadar e a comer peixe nos espeto sem queimar os dedos.
Mas... Sim, negligenciara, depois de mais crescido, as inconstâncias de humor e caráter de Saga. Sempre achou – como todos – que isso era resultado da horrível influência de Kanon. Quando ele foi deixado para a morte naquela prisão, Saga não lhe chorou uma lágrima sequer. Em compensação, Mu passara noites insones, chorando e pedindo a Brahma que a morte de Kanon fosse rápida e suave. Nunca havia gostado dele, mas o olhar de medo quando o trancaram lá, a angústia do indefeso quando a maré começou a encher e ele viu seus pés sujos serem cobertos pela primeira golfada d'água fizeram o coração de Mu se enternecer e apiedar por aquela dor horrível. Não havia castigo pior do que aquele, por que simplesmente não o matavam?
Conversou com Shion como se fosse um homenzinho, com as mãozinhas fazendo gestos eloqüentes e explicando ao mestre que a barbárie não era uma coisa boa. E que se corressem ainda poderiam tirar Kanon de lá antes de a maré encher definitivamente e ele ser afogado. Ao que Shion apenas riu, afagou os cabelos de Mu e retrucou, tristemente: "O destino de Kanon está naquelas águas, Mu. Tirá—lo de lá seria cortar a sua vida definitivamente."
Não entendeu bem o que Shion dizia, era um tanto incoerente. Agora, depois de tudo, já podia confiar que as palavras de Shion tinham um peso que palavras de outro humano não teriam, porque ele era um lêmure clarividente. O destino de Kanon, como o dele próprio, já lhe haviam sido descortinados.
"Maldição. Maldição Lêmure." Murmurou Mu.
Levantou-se e andou pelo quarto, sentindo—se sujo, torpe. Desceu para o andar imediatamente abaixo e viu que Mahadevi havia deixado a tina preparada para seu banho. Flores de laranjeira, capim—limão, água das fontes lêmures.
"Tão previdentes... pensam em tudo."
Entrou na água e esfregou—se o mais que pôde com a bucha. Nunca parecia limpo o bastante. Molhou os cabelos, mas eles também não tinham mais o cheiro de Shaka. Sua primeira lágrima do dia rolou. "Meu Shaka, meu doce Shaka... o que será de mim longe de você?"
Quando o banho acabou, vestiu—se com suas modestas vestes de lemuriano, as que sempre usara e que eram motivo de chacota no Santuário. Sentou—se de frente para o seu baú, a herança que seus pais lhe deram. Teve receio de abri—lo. Já o abrira centenas de vezes, mas nunca antes com essa consciência pesada, imperiosa, de um filho que abre um tesouro guardado para si, nunca com a certeza de que cada pertence havia sido posto ali com um propósito que lhe serviria, nunca com a intensa dor de saber que pertenceram aos seu amados pais e que agora era tudo o que tinha para lembrar—se deles.
Abriu—o e examinou os itens dispostos lá dentro.
Já havia retirado, no dia anterior, a veste do Grande Mestre que Shion lhe deixara, a veste que só servira para o seu breve encontro com Saga e com a verdade. Tirou o medalhão negro das suas memórias. Sem nenhuma intencionalidade, o pôs no pescoço. A coroa dourada magnífica, forjada por Hefesto, um presente de Afrodite para sua mãe. Lembrava—se de ter visto sua mãe usando—a... Lembrava—se...
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— Fedra, o que há com Mu?
— Manhoso. Chora.
— Mas por quê?
— A coroa. Gostou dela.
— Quer arrancá—la dos seus cabelos? Não deixe, Fedra. Você o mima demais... – resmungou Shion, vendo o pequeno Mu engasgar—se de tanto chorar e querendo puxar a reluzente coroa dourada e cravejada de diamantes que enfeitava a sua cabeça.
Mu lembrava—se exatamente de como se sentira ao ver a coroa: o Sol, o Deus Sol estava sentado sobre os cabelos de sua mãe...
— Estou tentando tirá—la, mas está presa no penteado. – ela olhou para o menino chorando. – Acalme—se, querido. A Mestra Fedra já, já vai te dar a coroa...
Apesar do voto contrário de Shion, Fedra desvencilhou a coroa dos seus cabelos lavanda. Os enfeites dourados e pequenos pingentes com chuveirinhos de rubis pareciam brotar dos cabelos caudalosos que enroscavam—se em tudo.
Mu agarrou a coroa entre os dedos, admirado com o brilho da jóia. Imediatamente enfiou—a na boca.
— Zeus! Não coma isso, Mu!
O menino voltou—lhe os olhinhos culpados enquanto tirava aos poucos a tiara da coroa de dentro da boca.
— É para usar, vê? – ela ajeitou—a na cabeça do menino. Fez um sinal para que Shion lhe trouxesse o espelho que estava perto da cesta de frutas. Ele trouxe o espelho de marfim e mostrou—o para o menino, para que visse como havia ficado bonito com a coroa que bamboleava, grande demais na cabeça da criança.
Mu agarrou o espelho, fascinado pela sua imagem com o "sol" sobre sua cabeça. Bateu palmas e riu. Fedra olhou para Shion.
— Escuta, cavaleiro... És capaz de manipular o ouro desta coroa?
Ele olhou para a peça com uma expressão de dúvida.
— Que espécie de ouro é esse?
— O melhor. Foi um presente de Febo Apolo para Afrodite. Hefesto fez—lhe braceletes com ele. Depois, quando me presenteou, pediu que ele fundisse os braceletes como uma coroa e enfeitou—a com os diamantes. Acha que consegue reproduzir este efeito de bordado em outra peça?
— Não sei... Talvez. O ouro dos deuses é bem mais rijo que o ouro natural.
— Então, está decidido: deixo a coroa para Mu. Ele gostou tanto, é um presente. Quando for mais velho, poderá ele mesmo transformá—la no que quiser. – ela beijou as bochechas rosadas do bebê em seu colo. – Não é, criança? A coroa do Mu... a coroa do Mu tem diamantes... muitos diamantes... Mu brilha mais que os diamantes... – ela começou a fazer cócegas na barriga do bebê, que ria contorcendo—se no colo da Deusa. – Mu brilha mais que todos os diamantes, Um, o principezinho da Mestra Fedra...
Shion sacudiu os cabelos e riu suavemente.
— Como mimamos esse menino, Fedra!
0o0o0o0o Fim de Flashback o0o0o0o0
"Ah, a coroa da minha mãe." Mu apanhou—a e o brilho dela ainda impressionava os olhos dele, um cavaleiro que forjava armaduras, do mesmo jeito que impressionara o bebê que ele foi. Não era o ouro comum das jóias, era o ouro como o das armaduras, o ouro das armaduras quando havia um cosmos queimando dentro delas até as alturas – quando elas brilhavam mais que mil sóis. Assim era o ouro da coroa com os diamantes que sua mãe lhe deixara...
Colocou—a no chão ao lado do baú. Tirou lá de dentro a ânfora antiga. Nela, inscritos em um grego perdido tão arcaico que ele não conseguia ler. Entendeu, com muita dificuldade, as palavras "magia" e "Hécate". Aqueles deviam ser os pergaminhos com os encantamentos de Hécate que ela deixara para Mu, na esperança de que ele pudesse vir a ser um sacerdote algum dia. Talvez nunca houvesse tempo hábil para desvendar a língua na qual os pergaminhos da mãe estavam escritos, mas eles só faziam efeitos quando pronunciados na língua original. Pôs a jarra ao lado da coroa. Apanhou de dentro do baú lâminas de cobre: eram as lâminas onde se praticava a feitiçaria já tinha lido sobre isso no Santuário. Sim, quando soubesse as palavras dos pergaminhos, poderia usar as lâminas e fazer seus pedidos.
No fundo, achou um frasquinho que nunca tinha notado antes. Estava enrolado em coisas que só ele percebeu que eram fitas de cabelo: as fitas de cabelo de Hécate! Abriu o frasquinho para cheirar o conteúdo que parecia pó de estrelas.
Quando o frasquinho foi aberto, os olhos de Mu foram tomados por uma lufada de pó dourado. Largou o frasco que se espatifou no chão, e coçou os olhos. Quando os abriu novamente estava no jardim onde sua mãe vivera como humana, o jardim do Templo de Athena, atrás do trono do mestre. Do meio das roseiras selvagens ela surgiu, vestida com seu manto dourado, com seu cetro nas mãos: senhora da Terra, do Céu e do Mar.
— Então, enfim, meu filho veio a mim. Já achava que não chegaria a hora nunca. — a voz da deusa parecia fazer as folhas tremerem.
— Ma-mãe?
— Mamãe! Mas que jeito adorável de me chamar! Venha aqui, venha!
Mu andou até a deusa, fascinado pelo brilho que ela tinha. Não parecia realmente com a mulher que conhecia de suas lembranças, que tinha uma forma humana: Hécate estava mais divina que nunca. Ajoelhou—se aos pés dela e tomou a mão da deusa, beijando—a.
— Por que se ajoelha perante mim, Cavaleiro de Áries?
— Por que a senhora é uma Deusa.
— Não me chamou de mamãe?
— Ainda que seja a minha mãe, é uma Deusa.
— Essa tua subserviência me irrita, Mu. Se soubesse que Shion levaria tão a sério meu pedido para torná—lo humilde, eu nunca o teria pronunciado... Anda! Levanta—te. Não convém que meu filho tenha o hábito de andar com a coluna curvada!
Mu levantou—se de imediato.
— Mãe, posso te fazer uma pergunta?
— Já sei o que quer saber e a resposta é sim e não. Sim, de uma certa forma você é irmão de Athena e não, não é. Biologicamente – que é a maneira grossa que os humanos chamam a Natureza das coisas – você é meu filho. Meu e de Shion. Athena não. Ela foi posta em mim como um verme hospedeiro no tronco de uma árvore, que se alimenta da árvore até que esta morra. Entende?
— Mãe, não devia falar assim de Athena e...
— Ora, Mu, não superestime Athena! O mundo existia antes dela e continuará existindo depois. Um mundo some e dá lugar a outro. Assim é a vida. Meu mundo também desapareceu, os deuses que eu adorei estão presos no Tártaros, foram subjugados por Zeus. Eu vi Zeus nascer! E já tinha visto muitos e muitos deuses antes dele tentarem destronar uns aos outros. Meu mundo era o Caos. E agora, os da época de Zeus, chamam o meu mundo de 'desordem'. Mas na época dos Titãs, a desordem era ordem. E será assim também no futuro: os Olímpicos serão destronados por outros deuses. Não te martirizes, porque é da Natureza do mundo e das coisas estarem sempre em mutação. Não está em tuas mãos mudar nada.
— Mas mãe, eu...
— Preocupa—te contigo e com teu homem. Por você e por ele ainda poderás fazer algo... Humanos são tão cômicos! Tão preocupados com o 'universo' distante e nunca enxergam os universos que eles mesmos criam e que vivem ao seu redor. Tira teus olhos das estrelas, Mu. Olha para ti!
— Mãe... você me amou mesmo?
A dúvida tola surgiu nele e, antes que a auto—censura abortasse a pergunta, ela saiu de seus lábios. A deusa Hécate parecia bem mais agressiva do que a jovem e doce Fedra que o aconchegara ao seio...
— Você duvida? – a deusa não o encarou. Antes disso, Mu a viu ser cercada de cachorras negras como o breu da noite, que rodeavam obedientes e abanavam os rabinhos. Eram as Eríneas.
— Eu... Eu...
— Nunca fui doce. Mas eu o amei. E o amo. Você é o filho que escolhi gerar.
— Então... posso... abraçar você?
A deusa respondeu com o abraço que ele pedira. Os braços dela eram a coisa mais suave e mais morna que Mu já provara na vida. Pareciam um útero. Ela cheirava a maresia.
— Menino... Como você pôde duvidar? Fizemos tudo por você...
— Mãe... eu... eu...
— Entendo o que quer, Mu... Mas eu não posso.
— Você não pode?
— Posso... Mas não devo. Mu! Compreenda que não é seguro que vás até aquele lugar...
— Mãe, se a senhora me ama, sabe o que está em meu coração, a senhora sente a dor que eu sinto! Eu preciso de Shaka! Eu quero ver o meu Shaka! Não nos despedimos direito! Viu o que fizeram? Me arrastaram de lá! Pela segunda vez fui expulso da minha casa!
— Sua raiva tem razão de ser. Não te nego o direito de indignar—se! Mas... Filho, nem eu posso arrancar—te do Destino se você o desafia tão diretamente! Saga pode perceber sua entrada lá e matá—lo!
— Mãe... – Mu voltou—lhe os olhos, de um verde mar impressionante, e murmurou sombrio. – Você sabe que eu não me importaria muito, hoje, de morrer para estar com Shaka...
— Oh! – ela aconchegou, protetora, a cabeça do filho junto ao seu seio. – Não diga bobagens. Já que quer tanto... Farei. – ela tomou entre os dedos o medalhão que pendia do pescoço alvo de Mu. – Vejo que usas teu medalhão... Isso facilitará tua entrada. Disfarça teu cosmos com a ajuda dele. Eu tornarei teu corpo invisível para os olhos deles... Deles todos, exceto teu Shaka... Mas, Mu...
— Fale, mãe...
— Shaka será um problema maior do que os guardas do Santuário. Ele não te receberá de braços abertos...
— Por que não? – Mu parecia surpreso.
— Conheces o teu homem. Ele não te cobrirá de beijos, mas de cobranças. Se queres ir, eu o deixarei ir. Mas não posso mudar o jeito que Shaka é.
— Eu quero ir!
— Fecha teus olhos.
– X –
Sentiu que ardia em febre. Podia facilmente curar-se, mas não quis. Desejava a febre, a inconsciência, qualquer desconforto físico que o distraísse o bastante para não sentir a dor em seu coração. Seus lábios repetidamente murmuravam o nome do ariano que o havia abandonado para viver. Rolava na cama, nu, o calor insuportável de Atenas o incomodava – mesmo com a febre que esfriava sua pele obrigando-o a cobrir-se com o lençol, mas suando.
Entre seus delírios febris, uma mão suave deitou-se em seu rosto molhado.
— Amor...
— Mu? Estou delirando?
— Não... sou eu mesmo.
Só aí teve coragem de virar-se. O corpo suave e branco de Mu estava estendido ao seu lado, também nu.
— Mu! O que faz aqui?
— Psss... minha mãe encobriu meu cosmo...
— Sua mãe?
— Longa estória... mas não vamos perder tempo... querido... – ia beijá-lo, mas Shaka recusou sua boca com uma veemência que assustou o ariano.
— Se deitou com aquela mulher?
— Shaka...
— Deitou ou não?
— Fiz o que tinha que fazer...
Os olhos abertos de Shaka estavam transtornados.
— Você... – ele afastou o corpo de Mu com as mãos hesitantes. – sentiu... prazer? Como quando faz comigo? É igual com todos? Não faz diferença, não é? Com qualquer um... é a mesma coisa...
Mu sentou-se na cama, já chateado.
— Shaka, não fui eu que projetei o corpo humano para reagir aos estímulos da mesma maneira. Fisicamente talvez a diferença não tenha sido das mais significativas... mas... sabe que eu... Eu não preciso disso! Eu fiz o que tinha que fazer... pensando em você... e Mahadevi também devia estar pensando em alguém que não eu! Mas isso não importa! Estou cansado, tão cansado de explicar coisas para você e ser sempre vítima dos seus ciúmes idiotas! Minha mãe tem razão: não foi sábio vir aqui.
— Mu, eu...
— Vou embora.
— Espere. Espere, Mu... você perde a paciência comigo muito depressa. E de pensar que me jurou amor eterno faz tão pouco tempo... e mal nos afastamos você já não suporta minhas perguntas... talvez tivesse achado melhor que eu o recebesse calado, saciasse seu desejo e deixasse-o ir. Assim seria mais digno do seu amor, não é?
— O que você acha que eu fiz? Arrisco minha vida vindo aqui para vê-lo e você me recebe com cobranças...
— Fiz uma pergunta. Que você não respondeu.
— Senti prazer com ela. Era isso que queria saber?
— Mais do que comigo?
— Diferente.
— Eu tenho tanto medo de que você goste de alguém mais do que de mim...
Mu deu uma gargalhada que Shaka não pode distinguir se era cruel, sarcástica ou simplesmente desesperada.
— Como se eu pudesse... venderia a minha alma para alguém que me dissesse que poderia me fazer deixar de amá-lo.
Shaka ficou arrepiado. Sentou-se na cama de frente para Mu.
— Repita isso.
— Venderia a minha alma de bom grado para quem pudesse tirar você de mim.
— E se eu dissesse que posso fazer isso? – a voz de Shaka era sombria.
— Eu lhe dou o que quiser.
— Não poderíamos ter um trato assim mesmo.
— Por que não?
— Porque eu pediria por aquilo que você deseja tirar de você: seu amor por mim.
— O que quer com o meu amor, se ele não te serve para nada? Você bem chegou à conclusão de que sentirá as mesmas sensações de prazer com qualquer um. Não precisa de mim para isso, então... para o que mais?
— Demônio... veio aqui para me dizer que te esqueça?
— Você me esqueceria de qualquer maneira.
— Acha isso realmente ou está mantendo essa conversa absurda para me ferir? Porque se você estiver, saiba que já me feriu.
— Eu o feri? Quando?
— Quando disse que queria que te curassem do seu amor por mim. Eu não ia querer que tirassem você de mim nunca.
— São bonitas palavras, Shaka. O tempo as gastará em seus lábios. Daqui a um ano ou dois já estará recuperado. Não mais se abalará quando disserem meu nome. Seu coração não vai estremecer por me ver, nem seu corpo vai reagir a mim mais do que a qualquer outro que te toque...
Os olhos de Shaka estavam úmidos. Repetiu, sua voz mais sombria do que da primeira vez:
— Posso tirar isso de você, se quiser.
Mu estava azedo, sua cabeça, longe. Queria ser cruel com Shaka.
— Então tire.
Shaka ajeitou-se sentado na cama, sentou Mu entre suas pernas abertas, acomodando as costas do ariano contra seu peito, puxando com prazer os cabelos lavanda. Passou as mãos brancas sobre o peito de Mu, até onde batia o coração do ariano. Acariciou-o enquanto beijava sua orelha, pescoço, bochechas. Entregue, o tibetano mordia os lábios, contendo seus gemidos.
— Primeiro, eu poria a mão aqui, em seu coração. E então, eu diria 'Buda, tire daqui tudo que atormenta essa alma.'
Ele curvou ligeiramente o corpo do ariano para a frente, lambendo e beijando suas costas, aparando-o com a mão sobre o seu peito, deliciando-se com os cabelos lavanda que tanto adorava.
— E aí, Buda tiraria de você esse amor que tanto te faz mal. Você não se lembraria mais de mim. Talvez, quando acordasse, sentisse até temor, desconfiança, por estar assim, nu, em meus braços. Os braços de um estranho a quem você não devota sentimento algum. Mas então...
Ele trouxe novamente o ariano o mais próximo de si que podia, buscando a boca de Mu para um beijo lambuzado. Os gemidos do tibetano já não eram mais contidos, como as mãos de Shaka também não.
— Você poderia até sentir um certo prazer. Sei que sou bonito. Você gosta dos meus cabelos... sentiria atração pelo meu corpo jovem e gostaria dos meus beijos. Então, eu seria seu, você se lambuzaria no meu corpo e sentiria prazer... mas então... já o amor não animaria seus lábios ou os meus... não haveria amor no meu toque, nem nas nossas mãos. E depois do gozo você poderia se levantar e sair, sem maiores problemas. Não haveria mágoa. Nem saudades. É isso que você quer? Eu posso tirar esse amor de você. Só preciso que diga: 'Shaka, eu não quero mais amar você.'
— Shaka...
— Diga, Mu, o que acha da minha oferta?
— Poderiam me esquartejar, diluir meus pedaços e nem assim... não tirariam você de mim...
Virou o corpo do ariano, de maneira que estivesse em seus braços como um bebê.
— Não é essa a questão, ariano maldito... – a voz suave de Shaka estava cortada por um tremor furioso. – você disse que queria me esquecer. Você quer?
Mu riu. As lágrimas desceram dos seus olhos verdes.
— Não, por Zeus, não! Se apagassem tudo da minha mente e me deixassem escolher uma única coisa para lembrar, eu não ia querer lembrar do meu nome, nem de quem eu era, eu só ia quer me lembrar de você!
— Então por que me disse aquilo?
— Porque você me atormenta com seus ciúmes indignos! Ciúmes de mim! Eu preciso magoar você, se você não pode me amar, ao menos... reaja a mim... de qualquer maneira... simplesmente, reaja...
— Você não tem ciúmes de mim, Mu?
— Ah, eu sinto, muito. Mas não te atormento. Sei que não é culpa sua, mas minha, porque te amo demais e não tenho assim mesmo o direito de ter posse sobre você... você é livre, Virgem... livre.
— Eu não sou livre! Sou escravo das minhas sensações... Mu... eu... eu já não sou senhor das minhas vontades! Já mal posso controlar meu desejo de me entregar a você...
— Você sabe que não precisa temer. Eu não o tomarei a menos que seja sua vontade e que eu sinta que você não se arrependerá.
— Você é tão bom, Mu...
— Não pare de fazer o que estava fazendo, Shaka... seus carinhos falam melhor do que suas palavras...
— Você gostou? – ele recolocou o ariano na posição em que ele estava antes.
— Sim, meu anjo loiro. – puxou as mãos do outro até seus lábios, beijando-as suavemente.
— Então, ponha a sua mão sob a minha.
Mu obedeceu, vendo Shaka acomodar sua mão loira e fina sobre a dele.
— Agora, Mu, leve sua mão por onde gostaria que eu o tocasse.
Mu trouxe suas mãos e as de Shaka para seu rosto, deitando-as sobre suas bochechas em brasas, úmidas dos beijos molhados do virginiano.
— Bom, Mu, muito bom... pensei que fosse ser mais afoito.
— Ah... eu adoro tanto o calor das suas mãos... nos meus cabelos, no meu rosto... no meu pescoço...
As mãos deslizavam entre os fios lavanda, descendo pelo pescoço, retornando para o rosto. Mu tomou os dedos de Shaka e os pôs na boca, lambendo-os com delícia.
Desceu as mãos, acariciando seu próprio braço, fechando-os, como se quisesse reter o calor do abraço do outro sobre si. Pendeu a cabeça para trás, abandonando-a sobre o ombro de Shaka, oferecendo-lhe o pescoço trêmulo de gemidos surdos para que ele satisfizesse sua sede de beijos.
— Shaka...
— Huh?
— Eu te amo.
— Disse isso para ela também?
— Não faça isso...
As mãos de Shaka forçaram a de Mu a descer, resvalando sobre o ventre esbelto, belo do ariano, as carícias arrancavam suspiros e gemidos contidos de ambos.
— Por quê?
— Porque não te dou o direito de duvidar do meu amor.
— Eu poderia duvidar... duvidaria das suas palavras, duvidaria dos seus gestos, duvidaria até do seu desejo por mim... mas não posso duvidar dele... – trouxe as mãos de volta sobre o coração do ariano. – As batidas dele... dizem 'Shaka'. Eu consigo ouvir nitidamente... você tem um traidor no seu peito, Mu... já estava fadado ao erro, como vê...
— Mas ele bate feliz...
— Eu sei... o meu traidor também escuta feliz. Escuta... escuta...
O barulho abafado de um coração pulsando. O coração de Shaka era sereno, suave.
— Meu Shaka... que som delicioso... se eu pudesse...
Calou-se.
"Se eu pudesse prolongá—lo," foi o que pensou.
— Mu, olhe para mim.
O ariano atendeu prontamente ao chamado do virginiano. Olhos verdes em olhos azuis; finalmente, Shaka estava sorrindo. Era um sorriso molhado de uma calma e morna melancolia – uma ternura incognoscível.
— Mu, quando eu morrer em batalha, não chore por mim...
Mu sorriu, uma lágrima furtiva desceu por um dos seus olhos.
— Você não vai morrer tão cedo, Shaka. Ainda vou te ver velhinho... com esses cabelos enormes cinzentos, os olhos sempre fechados... rabugento... reclamão! Eu vou ter o prazer de segurar essa sua mão enrugada entre meus dedos... calçar meias nos seus pés gelados... ouvir você quando os jovens não mais quiserem.
A mente de Mu viajou entre as imagens propostas desse futuro que saberia que não ia existir... como queria envelhecer ao lado de Shaka, abraçar sua pele enrugada, cuidar dele até o fim. E não haveria tempo para nada disso!
— Mu, meu doce Mu... vamos morrer tão jovens! Nenhuma ruga vai ter ainda profanado a delicadeza da sua pele, sua voz ainda não terá perdido esse timbre tão bonito... você será fresco e belo como uma primavera em flor e será assim que você estará em minhas lembranças, assim... não chore por nada, Mu... temos um ao outro...
— Shaka... talvez...
— Você sabe que não há talvez no futuro de um cavaleiro de Athena.
— Mas você é mais forte do que eu...
— Sabe que, se assim fosse, eu daria a minha vida para protegê—lo.
—Eu não ia querer isso.
— Mas eu não teria como evitar.
— Shaka...
— Mu! Pense, não fique triste! Seremos jovens para sempre, nosso amor não ficará velho... os anos não envergarão a sua figura altiva, seu lindo cabelo lavanda não será atacado pela força bruta do tempo. Meus dedos só terão a memória do cetim da sua pele rosada, viçosa; seu cheiro como o do alecrim e da erva-doce. Sua boca... esses seus lábios tão rosados e tão macios, que delícia será lembrar do frescor deles! Seus olhos não terão perdido o brilho ficando opacos. Não nos degradaremos tendo de ajudar ao outro a andar, nós, cavaleiros, altivos sempre... o ardor da sua juventude quando nos amamos estará sempre em ápice, nunca conheceremos declínio no desejo ou no amor. E pense, meu querido, morreremos juntos! Que doce dádiva! Seremos poupados da dor de vivermos um sem o outro... seremos juntos vivos e juntos depois! Quantos podem ter esse privilégio, Mu?
— Tem razão, tem razão! – Mu devolveu um sorriso às palavras de Shaka; já não havia nele melancolia, mas um sorriso tolo de criança, como se todas as esperanças do mundo tivessem seu nascedouro dentro dele. – Eu tenho você! O que mais me importa? – abraçou o amante, que também o abraçou feliz.
— Ah, meu Mu... eu sabia que você ia entender o desperdício dessas lágrimas! Se somos tão felizes, não devíamos afrontar os deuses com queixas tolas!
— Não, não devemos!
— Ainda estou feliz, Mu. Por tudo.
— Eu também... mas...
— Sei que vamos morrer, mas...
— Mas?
O virginiano o enlaçou com mais carinho que ele jamais sentira.
— Ao menos, encontrei aquilo que eu procurava...
— O que você procurava, Shaka de Virgem?
— O que todos procuram, Mu de Áries: o Amor.
Mu gemeu alguma coisa que Shaka não conseguiu entender. Deu-lhe um tapinha suave nas costas.
— Ariano, pensei que você fosse mais firme...
— Sou firme. – balbuciou nos ombros do jovem loiro. – Mas não me importo de parecer mais suave para você... confesso que... gosto da idéia de você me proteger...
— Em luta você não é assim, não é, Mu?
Mu se desvencilhou dele e o encarou.
— Tomara que nunca tenhamos de lutar da maneira como penso. Mas se for preciso, saiba que sim – posso ser muito menos 'sutil'.
— Eu sei e me orgulho de você por isso... se você fosse realmente fraco... eu não... enfim...
— Vamos continuar de onde paramos... – Mu tomou a mão de Shaka e a beijou ternamente.
— Onde paramos? – Shaka o recebeu com um sorriso maroto.
— Aqui. – Pôs as mãos do virginiano sobre as suas, guiando-as até seu baixo ventre.
– X –
Epílogo
Era um dia cinzento em Atenas. Nesgas de sol caíam aqui e ali, amareladas, entre as nuvens de chumbo. Entediado, Shaka olhava para fora de seu templo. Era tão tedioso aquele lugar sem Mu! Mu...
Já fazia quase um ano desde a noite em que o tivera, em seus braços. As lembranças táteis daquela noite feliz embalavam seus dias longos e monótonos. Sabia que as provações da guerra estavam só começando. Quem sabe quanto tempo ficariam separados?
Olhava pela janela ampla, suspirando. Estava triste. Sentia falta de Mu o tempo todo, mas naquelas dias cinzentos, doía-lhe como um reumatismo a falta do Ariano: doía-lhe na carne, no sangue, nos ossos, na alma. Estava só. Só.
Voltou para o interior da casa, quando sentiu o forte cheiro de lavanda e alecrim. O cheiro de Mu! Entrou correndo pelas colunas, balbuciando confuso a palavra que, por si só, já o estremecia, fazia tremer seus pés: "Mu!".
Sentiu-se morrer por dentro ao constatar que Mu não estava lá. Uma lágrima solitária e sincera desceu pelos seus olhos cerrados. Sobre seu belo e afinalado nariz, uma pequena borboleta pousou. Abriu os olhos para ver melhor a borboleta. Era azul, com matizes de turquesa e contornos pretos.
— Você é mais feliz que eu, pequena...
A borboleta pousou sobre a vitrola velha que Shaka tirara de Áries e trouxera para Virgem, na tentativa de manter-se cada vez mais perto de Mu, nem que fosse pelos objetos deles. Shaka andou até a vitrola, seguindo a borboleta. O cheiro de alecrim e lavanda intensificou-se. Suas mãos tremeram ao ver, sobre a vitrola, um disco que ainda não tinha visto ali. Era um LP de Ravi Shankar, uma grande músico indiano que ele e Mu adoravam. O cheiro vinha do LP.
— Mu! Meu Mu! Você o teletransportou para cá! Para me alegrar... Meu amor... Você cumpre a sua promessa de estar sempre comigo... Eu adoro música... Vou pensar em você... – Shaka trouxe o LP para perto do seu rosto. – Ainda tem o calor das suas mãos doces nele!
– X –
— Obrigada, Mãe.
— Por nada, meu filho.
— Ele ficou feliz com o LP. Eu sinto.
— Sim, deve ter ficado. Sua presença, seu cosmos, estavam nele.
— Ah, como sinto falta dele...
— Filho... Sua história e a de Shaka está apenas começando...
– X –
OBRIGADA MAIS QUE ESPECIAL:
Minha "frigideirinha" ( panelinha é coisa de pobre ), que são minha fonte de inspiração e apoio sempre: Nana, Amy, Ada, Lola, Bélier e Vera. Sem VOCÊS, nada disso teria razão de ser.
Ada, como sempre, me salvou de última hora betando isso! Thanks, Sensei!
A todos que estiverem interessados, vocês serão muito bem vindos ao meu 'cantinho' virtual onde vou deixar os comentários finais da fic e um fanart lindinho para vocês lembrarem da 'Incenso e Vela':
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Bye, Bye!
In Maio 29, 2005
