b Capítulo 10 /b
Durante três dias, Severus sentiu como se seu coração tivesse sido moído até virar pó e a dor tivesse sido prolongada artificialmente. Ele sabia que amava mãe e filha, mas não podia fazer nada a não ser se afastar delas. Seu trabalho de professor teria que ser suficiente para ocupar sua mente, para não deixá-lo pensar que ambas estavam logo ali, junto com ele em Hogwarts. Tão perto e tão distante.
Ele se dedicou ao máximo ao final do ano letivo. Elaborou provas, corrigiu trabalhos, fez revisões para NEWTs e OWLs. Buscou com todas as forças ignorar o assunto que esmagava seu peito.
O reboliço na escola em torno do bebê fazia seus planos ficarem mais complicados. Dumbledore fez o anúncio oficial do nascimento de Sílvia no café da manhã, e os alunos aplaudiram, em comemoração. Muitos deles, bem como os professores, falavam em fazer visitas à enfermaria. Deprimido, Severus deixou seu café pela metade e refugiou-se nas masmorras.
Tinha quase conseguido seu objetivo de alcançar o santuário de seu laboratório quando ouviu passos apressados e um grito:
– Prof. Snape! Por favor, espere!
Ele se virou e fechou a cara ao ver quem o chamava:
– Potter! Já fazendo arruaça de novo?
Harry Potter parou em frente a ele:
– Eu queria lhe falar, senhor, um instante apenas.
– Pois fale logo! Tenho uma aula em quinze minutos.
– Eu só queria me desculpar, professor. Pelas coisas que eu lhe disse. O Prof. Lupin me explicou tudo. Eu não sabia.
Cáustico, Snape o atacou:
– Gostaria de acreditar que o incidente o ensinou a não agir impensadamente, mas otimismo não é meu traço forte. Por outro lado, não pensei que o famoso herói do mundo bruxo pudesse admitir ter cometido um erro. É refrescante.
Harry ignorou a ironia:
– O senhor devia procurá-la. Ainda mais agora.
– Potter, de onde tirou a idéia de que dou permissão a meus alunos para que dêem palpites em minha vida pessoal?
– Se quiser, eu falo com ela. Para dar uma sondada, entende? Vejo se ainda ela está muito brava, depois digo como foi. Que diz?
– Digo que se você não quiser me ver tirar 50 pontos de sua casa, deve parar com isso imediatamente e seguir para sua aula! – rosnou. – E rápido, antes que eu mude de idéia e o transforme numa salamandra de fogo!
Frustrado, Harry obedeceu, temendo a punição. Mas Severus ficou surpreso ao constatar sua visível disposição em ajudar a reunir o casal. Mais do que isso, ele ficou intrigado.
Mais intrigado ainda ele ficou com a batida à porta de seus aposentos ao amanhecer, quase uma hora antes do que ele costumava se levantar. Vestiu-se apressadamente para abrir a porta, e quando o fez, teve um choque:
– Srta. Montgomery?
Ela vestia um conjuntinho azul-petróleo comprido e carregava uma colorida bolsa de bebê pendurada no ombro e um bebê-conforto nas mãos. No rosto, um sorriso aberto:
– Bom-dia. Desculpe o horário. Podemos entrar?
– Claro – deixou que passassem. – Vou acender a lareira.
Miranda ocupou o sofá todo com o bebê e seus objetos, e Severus se sentou na poltrona ao lado. Pela ausência de ruídos, ele imaginou que Sílvia estivesse dormindo. Não ousou olhar para a criaturinha, o coração dolorosamente contraído no peito.
– Hoje nós vamos tomar café no Grande Salão pela primeira vez – anunciou Miranda, animada. – Mas antes achei melhor fazer uma visita.
– Por quê?
– Porque você não apareceu mais, e estranhamente fiquei com a impressão de que tinha resolvido nunca mais nos ver.
Ele desviou o olhar:
– Acredito que prefira desta maneira. Não quero lhe impor minha presença.
– Acho que devíamos conversar sobre isso, Severus. Posso chamá-lo assim?
– Fique à vontade.
– Olhe, eu vou direto ao ponto. Sei que nossa convivência sempre foi difícil, e nós dois temos culpa nisso. Mas ultimamente tenho agido de forma muito errada com você. Eu o magoei muito quando você foi me pedir em casamento, e não sei se você algum dia vai conseguir me perdoar, mas ainda assim peço desculpas. Sei que errei. Falei coisas horríveis para você, coisas que não são verdadeiras, Severus. Em minha defesa, só o que posso dizer é que eu estava assustada, com medo e disposta a lutar para não perder minha filha. Sei que isso não justifica o que fiz, mas é a verdade.
Severus a encarou. Ao contrário da maioria das vezes que a vira, agora Miranda estava calma e racional. Ela continuou:
– Tia Lucy me contou que você desistiu de reclamar Sílvia como herdeira. Posso entender que você não queira registrá-la como sua filha.
– Imaginei que você preferisse desse modo. Quando se casar, seu marido poderá adotá-la sem constrangimentos, e será seu pai legítimo.
– Sílvia já tem um pai legítimo. Gostaria que ela crescesse perto desse pai... se ele a quiser.
Ele piscou, surpreso.
– Você... quer isso?
– Sim, esse é o meu desejo. Sei que não tenho o mínimo direito a falar nisso, mas eu também desejo ser próxima ao pai de Sílvia. Gostaria muito que nós três fôssemos uma família de verdade.
– Entendo – ele baixou a cabeça. – Estaria disposta a fazer o sacrifício de viver ao lado de um homem que despreza por sua filha. Louvável, mas não posso aceitar.
Miranda ergueu-se do sofá, ajoelhou-se na frente de sua poltrona e pegou-lhe a mão:
– Não, isso não é verdade. Primeiro porque eu não o desprezo. Depois porque não seria sacrifício algum. Sei que não mereço que você me escute ou acredite, mas a verdade é que eu quero você, Severus. Eu o quero na minha vida, para sempre. Custei a ver que aquela nossa única noite juntos não foi um erro – ela foi mágica e apaixonada, e especial, mesmo que não tenha sido programada. Se não fosse assim, não teríamos sido abençoados por esse milagre que está aqui no sofá.
Severus olhou para a mulher ajoelhada a seus pés, tentando usar Legilimência. Mas não foi preciso. Havia lágrimas nos olhos azuis, que pareciam derreter de tanta emoção. Por mais incrível que parecesse, Miranda falava a verdade. Ela era sincera no que dizia.
Uma lágrima escapuliu de seu olho e rolou pela pele alva de seu rosto.
– É claro que você pode não me acreditar. Também vou entender se você não me quiser. Eu errei muito, fui orgulhosa, arrogante, inflexível e injusta com você. Desculpe-me, se puder. Perdoe-me.
Era verdade, pensou Severus. Ela o tinha magoado muito. Ele tinha todo o direito de recusá-la e rejeitar sua oferta, nem que fosse pelo simples medo de sofrer mais uma rejeição em seu coração já esmagado.
Nesse caso, eles podiam continuar a alimentar ressentimentos e mágoas pela vida inteira, sem que isso trouxesse bem a ninguém, muito menos a Sílvia. Talvez essa fosse a melhor chance de fazer a coisa certa para todos. Mais uma vez ele viu a oportunidade de ouro aparecer em sua vida.
Um salto de fé.
– O que exatamente está propondo?
– Eu quero você e quero Sílvia, e quero que sejamos uma família. Severus, sei que tem sentimentos por mim, e agora percebo que sempre tive por você. Acho que eu o amo.
Ele a fez erguer-se, pegando-lhe as mãos:
– Então... Se eu lhe pedir em casamento de novo...
– Eu aceitarei na hora.
– Sabe, eu sou a mesma pessoa que lhe pediu antes. É isso mesmo que quer?
– Antes eu era cega e burra. Agora quero tê-lo do meu lado e criar nossos filhos.
– i Nossos /i ?
– Não acho que devamos ficar em um só. Sílvia vai precisar de um irmãozinho – ela lhe beijou as mãos. – E eu quero o quanto antes.
– É um projeto ousado. Precisaremos ter certeza de que seremos bem-sucedidos.
– Isso quer dizer que teremos que fazer várias tentativas – ela sorriu. – Muitas tentativas mesmo.
– Oh, sim, definitivamente.
Severus levou o rosto para junto do dela e aproximou seus lábios. Quando eles estavam para se encostar, um chorinho baixo os interrompeu. Sílvia estava acordada, contorcendo-se toda no bebê-conforto. Os dois se encararam.
– Acho que ela precisa ser trocada – sugeriu a mãe, divertida. – Quer tentar?
Ele deu um passo para trás, olhos arregalados:
– Trocar fraldas?
Miranda percebeu o pavor em seus olhos e riu-se:
– O quê? O grande herói da guerra contra as Trevas com medo de uma simples fraldinha? Nada disso, você vai trocá-la.
– Eu? Mas...
Ela já tinha pegado a bolsa do bebê e tirou Silvia do bebê-conforto.
– Vamos usar a escrivaninha. É melhor afastar esses pergaminhos e cobrir a superfície com esse cobertorzinho.
Percebendo que protestar pouco iria adiantar, Severus fez o que era pedido, protegendo seus preciosos papéis. Sílvia começou a reclamar com mais determinação, e Miranda a desenrolou de seus panos e a colocou no cobertorzinho. A nenê ficou deitadinha de barriga para cima, bracinhos e perninhas se mexendo, o chorinho ininterrupto. Miranda o pôs em frente à filha.
– Eu vou lhe dizer o que fazer, mas só dessa vez, que é para você aprender. Você precisa saber trocar uma fralda, Severus. É moleza para quem faz a Poção Wolfsbane regularmente.
Olhando para a pequena Silva, ele não parecia estar tão certo.
– Primeiro você deixa a fralda limpa à mão, junto com o que vai precisar: toalhinhas umedecidas, talquinho e pomada antiassadura. – Ela abriu a bolsa de bebê para que ele mesmo pegasse. – Eventualmente, você vai precisar até trocar a roupinha, se estiver suja.
– Não admira que seja uma bolsa tão grande.
– Isso mesmo. Agora você retira a fralda suja: abre a roupa – ele começou, desajeitado, e Miranda corrigiu. – É melhor primeiro tirar o sapatinho. Com cuidado.
Severus mexeu no bebê como se manipulasse um caro e delicado ingrediente de poções. Sílvia ainda estava irritada por estar suja, mas era pequena demais para oferecer resistência a seu toque. Ele ficou maravilhado com a interação.
– Agora abra a fralda usada e retire-a com cuidado para não derramar nada.
– Não posso simplesmente usar um feitiço?
– Não faça isso jamais – Miranda disse seriamente, vendo-o se esforçar para tirar os alfinetes. – Feitiços nunca devem ser usados diretamente no corpo de crianças até sete anos. Mas você pode usar um feitiço antivazamento depois que trocar a fralda. Conseguiu tirar as presilhas?
Ele tinha um alfinete de fralda na boca:
– Afo que fim – Miranda riu e retirou-lhe o alfinete. – Obrigado. E agora, o que faço?
– Erga as pernas dela gentilmente e retire a fralda debaixo dela.
Quando ele obedeceu, viu a sujeira e torceu o nariz. Miranda riu:
– Está exagerando. Enquanto ela estiver apenas sendo amamentada, o cheiro não é tão ruim. Mas quando ela passar para comida sólida, a coisa muda.
– Está tentando me dizer que eu vou ter saudade disso?
– Para você ver – ela continuou rindo. – Agora você deve limpá-la, usando os lencinhos umedecidos. Levante as pernas dela de novo.
Ele pensou que fosse achar aquilo nojento. Mas de alguma forma, não parecia tão ruim. Ainda mais que Sílvia tinha parado de chorar.
– Assim está bom?
– Se não tem certeza, passe o lencinho de novo para ver se ficou bem limpinho – ele obedeceu e ficou satisfeito. – Agora é hora da pomada. Passe em todos os lugares onde você limpou com o lencinho. Não se esqueça das dobrinhas.
– Mas assim ela vai ficar toda lambuzada.
– É assim mesmo, Severus. Depois disso, você passa o talco.
Severus fez como lhe era instruído, e viu que suas vestes negras ficaram sujas de pomada antiassadura e talquinho infantil. Ia suspirar de irritação, mas seus olhos pousaram em Sílvia, olhando em volta, os olhinhos de recém-nascido sem enxergar. Seu coração sentiu um toque estranho.
Miranda o devolveu à realidade:
– Agora você deve colocar a fralda corretamente. Primeiro dobre num triângulo como esse – mostrou – e depois faça assim – ele obedeceu. – Levante as pernas dela.
– A pobrezinha não sente dor assim quase dobrada em duas?
– Ela é muito boazinha, mas reclamaria se estivesse sentindo dor, acredite. Consegue abotoar a roupinha?
– Acho que não sou tão incompetente assim.
Apesar de ser totalmente sem jeito, ele conseguiu vestir a filha, que agora estava desperta e ativa – ou tão ativa quanto um bebê de apenas alguns dias podia ser. Severus a pegou no colo para devolvê-la ao bebê-conforto, mas mudou de idéia e ficou olhando-a, embevecido. Miranda se aninhou perto dele, abraçando-lhe a cintura, e os três ficaram juntinhos, em silêncio.
Havia muito que fazer: registrar o nascimento de Sílvia no Ministério, preparar o casamento, comunicar tia Lucy, informar Dumbledore para que ele pudesse anunciar para a escola inteira, pedir o aumento dos aposentos das masmorras para incluir um quarto de bebê, fazer os proclames no i Profeta Diário /i , arranjar padrinhos e madrinhas tanto para o casamento quanto para Sílvia, mudar o testamento... e mais, muito mais. Mas tudo isso podia esperar, pensou Severus, olhando para sua filha com uma sensação inédita em toda a sua vida.
Confiança no futuro. E a família a seu lado.
center b THE END /b /center
