A neblina matinal envolvia o beco numa cegueira medonha, e um bando de melros sobrevoava e grasnava por cima da espessa camada. Apenas os vagos contornos dos tijolos das paredes se distinguiam por entre todo aquele cenário em preto e branco. Ouvia-se um som metálico idêntico ao de correntes a estalarem na carne de um humano, mas com uma batida seca e precisa. E de repente, por entre as névoas, elevou-se um ferro oxidado, pronto para bater na parede à sua frente.
Os olhos pretos de uma criança fitaram a parede esburacada e esmurrada com ódio e repugnância, tornando os olhos de corvo ainda mais brilhantes. Esfregou as mãos uma na outra, e um fio de sangue escorreu e deslizou pelo seu pulso, tal eram as horas que ele passava com aquele pau empunhado, batendo com a maior força numa parede. Aquele exercício era uma espécie de treino para aumentar a precisão do golpe, assim como para aumentar a força de ombros e braços. Eilish nunca desistira desde seis anos de idade, ele tinha de conseguir esburacar aquela parede até conseguir abrir um buraco suficiente grande para que ele entrasse dentro do edifício sem problemas, até agora ele não o tinha conseguido.
Cortou mais um pouco da ligadura que trazia sempre no bolso das calças e enrolou-a em volta das mãos, pegando outra vez no ferro para recomeçar o exercício.
Tudo o que existia naquele local era ódio e tristeza, a névoa deslizando pelo ar, abafando-o e escondendo-o da luz do sol, e o menino frio que passava os seus dias a mutilar-se em troca de um pouco de força ou de habilidade.
Vários sons de passos aproximaram-se do centro daquele beco, exactamente no local onde se encontrava o garoto. Depois, um jovem alto e musculado surgiu das brumas e olhou reprovadamente para Eilish. Tinha feições rudes e largas, com os olhos castanhos encovados e o cabelo castanho despenteado e seco.
- És tu o Roddery? -perguntou, na sua voz forte e timbrada.
Eilish tinha-os ignorado completamente, mas agora, quando o grupo aumentava e emergia das névoas, foi obrigado a lançar o ferro para o chão e a olhá-los friamente.
- Sim. -respondeu simplesmente, franzindo o sobrolho.
O grupo de jovens, uns mais gordos que outros mas quase todos com alguns músculos vísiveis, soltou altas gargalhadas, que ecoaram por aquele corredor estreito e quase que faziam estremecer as paredes.
- Acho que vim aqui perder o meu tempo. -afirmou o que antes tinha indagado pela sua identidade e que parecia ser o líder.- Não luto com pirralhos que têm idade para ser meus netos.
Eilish apertou as mãos, fazendo com que os seus braços tremessem, tamanha era a força.
- Oh! O bebé precisa da mamã para o acalmar! -provocou o mais franzino do grupo, avançando e apertando as bochechas quase inexistentes de Roddery.
Eilish respondeu a esta provocação com um preciso soco no nariz dele, fazendo com que cambaleasse para trás e que tropeçasse numa das latas de lixo. Dois dos seus amigos reuniram-se em volta do ferido inconsciente, pois tinha acidentalmente sido trespassado na nuca por um caco de vidro.
Sorriu torcidamente e estalou os dedos, sob o olhar mesquinho dos que não estavam a assistir o ferido.
- O Mathew é fraco, puto. Até um bebé o punha inconsciente. -disse o líder, avançando para a frente e ajoelhando-se na fronte de Eilish, para que ficasse da sua altura.
Roddery olhou-o com desconfiança, assim como olhava para toda a gente. Levantou a mão para agarrar o pescoço dele, mas o outro foi mais rápido e agarrou-o no pulso com força.
- Calma... -tranquilizou ironicamente, agarrando no outro pulso de Eilish e apertando os dois com ainda mais força.- Tens os pulsos frágeis, se eu os apertasse com mais força partia-os, mas como sou misericordioso não vou fazer isso, és só um miúdo de rua que se diverte a desafiar os mais velhos e se acha o maior. Não percebo porque nos chamaste aqui. Nós só lutamos com gente da nossa idade e tamanho, era injusto lutarmos contra um pirralho sozinho e ganharmos.
- Oh, anda lá Uriel! -protestou um gordo feio, de olhos escuros e cabelo escuro.- Vamo-nos divertir um bocado com ele, o miúdo está tão decidido a lutar contra nós.
Eilish sorriu perante a proposta, tinha-os desafiado de facto no dia anterior através de uma carta deixada no local onde o grupo passava os dias. Bateu as mãos cerradas uma na outra e socou Uriel também no nariz. O líder do grupo uivou e esfregou o nariz ensanguentado, recompondo-se logo de seguida e levantando-se. Eilish chegava-lhe à sua barriga.
- Bem, bem... -ironizou, dando uma gargalhada.- Para um miúdo de seis anos tens muita força. Felizmente tenho mais que tu. -e de seguida deu uma joelhada no estômago de Eilish, deixando-o sem respiração e com os olhos arregalados.
Uriel cruzou os braços ao peito e cerrou os olhos, o resto do grupo juntou-se-lhe e olharam para Eilish, estendido no chão com a mão no estômago.
- Este foi fácil demais, o que é que esperávamos dele? Uma ameaça? -gracejou um dos rapazes, pontapeando não com muita força o estômago de Eilish.
Uriel fez um sinal com a mão e todos os rapazes seguiram atrás dele, avançando pela névoa que já se desvanecia. Eilish olhou vagarosamente para os vultos a afastarem-se, e os seus passos ecoaram nos seus ouvidos com mais intensidade. Levantou-se, com as pernas fracas e trémulas, e limpou os restos de vómito que adornavam a sua boca.
- Ainda não acabou. -balbuciou, empunhando o ferro e batendo com força nas suas mãos, fazendo com que um fio de sangue caísse novamente.
O grupo parou, e todos olharam para trás com o sobrolho erguido. Ninguém teria conseguido, passado segundos de ter recebido um golpe no estômago, aguentar-se em pé e ter força suficiente para fazer sangrar a mão. Uriel voltou atrás e distanciou-se uns metros de Eilish, que mais parecia um demónio do que uma pessoa.
- Dou-te uma oportunidade de fugires, puto. -notava-se que Uriel já começava a perder a paciência com aquele rapaz que o tinha desafiado e que tinha perdido logo no primeiro ataque.- Vou contar até três, e é bom que corras para trás da saia da tua mãe se não queres ficar gravemente ferido, isto é, se tiveres mãe. -o grupo fundiu-se num riso escarninho e irritante, quase que ironico.
Aquela tinha sido a gota de água, Eilish não suportava quando o zombavam de não ter pais. Só se conseguia ver uma sombra preta a mover-se com tal velocidade que era impossível antecipar os seus movimentos, e nos segundos seguintes, todos os membros do outro grupo estavam no chão, alguns inconscientes e outros lamentosos. Eilish colocou o pé em cima da barriga de Uriel e fez tanta força que este foi obrigado a vomitar.
- Então, sou o líder das ruas de Hogsmeade ou não? -perguntou, com um sorriso triunfante.
Uriel olhou-o com repugnância e murmurou:
- Tu não és dos nossos, tu és um assassino, não devias ter nascido.
Eilish pressionou a barriga com mais força e deslizou o pé até ao pescoço, fazendo com que o ele ficasse quase sem respirar.
- Responde à minha pergunta, não pedi a tua opinião.
- Sim, mestre. -balbuciou e fechou os olhos, pois estava dorido e exausto.
Eilish pegou no ferro ensanguentado que usara para bater nalguns dos rapazes e apoiou-o no ombro, partindo de volta à zona movimentada da vila. Deteve-se na saída, acrescentando:
- Aliás, não tenho seis anos, tenho oito.