Os Mistérios de Londres

Sexta Parte: O último amanhecer

Capítulo 24: Resistência


Lily rapidamente livrou-se da roupa que usava, enfiando-se dentro da banheira cheia de agia quente. Deixou o corpo relaxar por alguns instantes antes de mergulhar, prendendo a respiração até quase lhe faltar o fôlego para, em seguida, voltar à tona.

Enxugando o rosto com as mãos, ela observou a parede à sua frente. Pouco depois seu olhar percorreu o chão, parando sobre a roupa ali jogada. O uniforme negro da SS.

Ela suspirou. Quanto tempo ainda aquele pesadelo iria durar? Quanto tempo até que a descobrissem, que percebessem seus documentos falsos; que sua postura altiva escondia um enorme desprezo por aquilo que eles chamavam de raça superior?

Lily observou as mãos começarem a enrugar. Mais um suspiro. Não suportava mais aquela mentira. Talvez não tivesse sido uma idéia tão boa penetrar nos sustentáculos do governo nazista. Maldita SS. Maldito Klaus Wenticht.

Finalmente deixou a banheira, enrolando-se em uma toalha felpuda antes de se deixar cair na cama de um dos vários hotéis que tinham sido desapropriados para abrigar os oficiais. Fechou os olhos para logo reabri-los. As faces esquálidas que vira no campo de concentração naquela tarde iriam assombrá-la por muitos anos, tinha certeza disso. Gostaria de poder esquecer...

Infelizmente era impossível.

Puxou o travesseiro para si. Ser secretária de um tenente da SS era extremamente penoso. Especialmente quando ele parecia gostar do que fazia. Ter que assinar os pedidos de extradição de judeus que chegavam todos os dias, visitar os campos sem poder fazer nada por aquelas pobres pessoas e ainda agüentar a arrogância daqueles bastardos arianos... Era demais para ela.

Virou-se de bruços, abraçando o travesseiro, apertando-o contra o peito. Como Harry estaria? E James, como recebera o filho? Quase dois anos sem saber notícias do filho... Como gostaria de reencontrá-lo... Mas antes tinha que terminar aquilo que fora fazer ali. Encontrar o pai.

Sabia que não estava tão longe de descobrir o que acontecera. Suas investigações tinham-na levado a Wenticht; ele fora a última pessoa a se encontrar com Sir Evans. Somente ele poderia revelar o paradeiro de seu pai. Só precisava agora descobrir como fazê-lo falar.

O sol nasceu sem que ela tivesse conseguido dormir. Mais uma noite insone... Lily levantou-se, voltando ao banheiro, dessa vez para uma ducha fria. Wenticht queria que ela fosse recebê-lo da pequena viagem que tivera de fazer. A ele e a mais um "convidado". Mais um dos vermes que se achavam o ápice da evolução humana.

Pensou em como seria esse "convidado". O tenente provavelmente passara a viagem se vangloriando sobre tê-la como amante e seu amigo olharia para ela com repugnante desejo, achando que ela também ficaria bem em sua cama.

Sentiu vontade de chorar. O simples pensamento de Wenticht ou qualquer outro lhe tocando lhe dava nojo.

Voltou a vestir o uniforme negro, sentindo-se estranhamente suja ao ajeitar a faixa com a suástica em seu braço. Rapidamente deixou o hotel, brincando com as chaves do jipe do tenente. Teria mais meia hora antes de encarar a ele e à ilustre visita.

Dirigiu em silêncio até a base. De longe, assistiu o avião pousar. Seus lábios curvaram-se em um sorriso ao imaginar aquela sucata perder o controle e despedaçar-se contra o chão. Infelizmente, Klaus era um excelente piloto.

Apresentou as credenciais a um oficial na entrada do campo. Dois passageiros já desembarcavam. Ela logo reconheceu os cabelos dourados de Klaus. O outro estava de costas para ela, mexendo em alguma coisa na cabine. O tenente aproximou-se dela, levando-a para perto do outro homem.

'- Herr Krentz, quero apresentá-la a um grande homem e provavelmente nosso mais novo colaborador... Sir Potter.

Lily estacou enquanto James virava-se para encará-la.

'- James Potter, essa é minha secretária, senhorita Eve Krentz.

O moreno tentou não demonstrar a surpresa que sentia ao ver diante de si a última pessoa que ele esperava encontrar logo que pisasse em território alemão. Aparentemente, ele estava com muita sorte...

Lily, por sua vez, manteve a respiração suspensa. Não era possível, depois de tantos anos, ele não podia...

'- Vocês já se conhecem? – Klaus perguntou ao notar a estranha situação que se formara diante dos dois.

Lily assentiu com a cabeça, tentando recobrar a frieza.

'- Sir Potter trabalhou com minha família por algum tempo.

O alemão sorriu.

'- Ora... Que interessante... O mundo é pequeno, não é mesmo?

'- Muito pequeno, senhor Wenticht. – James respondeu sem desviar os olhos de Lily.

O tenente sorriu maliciosamente.

'- Bem, já que parecem ser amigos de longa data, acredito que não se importará em ficar responsável por nosso convidado, não é mesmo, senhorita Krentz? Tenho certeza que tornará a estadia dele o mais agradável possível. Infelizmente terei que viajar de novo a Berlim, mas até o final da semana estarei de volta.

'- Eu... – Lily começou, disposta a afastar o moreno.

'- Será uma honra. – James respondeu por ela, sorrindo.

A ruiva mordeu os lábios, sentindo-se tentada a gritar com ele, mas conteve-se. Pelo menos até encontrar seu pai, tinha que prosseguir com aquele teatro.

'- Vamos então comer alguma coisa na base. Estou morrendo de fome. Depois eu embarco de novo e Herr Krentz começará a mostrar a Sir Potter nossas instalações.

Lily assentiu e os três seguiram para o pequeno prédio do campo. Wenticht e James conversaram o tempo todo sobre algumas medidas de segurança que eram adotadas naquela base. Ela limitou-se a observá-los em silêncio.

Deus certamente gostava de boas ironias. E adorava brincar com ela. Essa era a única explicação que lhe ocorria no momento.

Quase uma hora depois o tenente despediu-se, desejando a eles um bom dia. Um outro oficial dirigiu o jipe enquanto Lily sentava-se desconfortavelmente ao lado de James. Eles não trocaram nem uma única palavra até chegarem ao hotel e pararem diante do quarto que fora reservado a ele.

'- Entre na frente. – ele murmurou calmamente quando ela abriu a porta – Acho que temos muito que conversar.

Os olhos verdes o miraram com certa raiva, mas ela obedeceu. Entretanto, assim que James fechou a porta atrás de si, sentiu a mão dela vibrar contra seu rosto.

'- Conheci muita gente desprezível desde que cheguei a esse lugar, mas você é pior do que todos eles juntos! – ela falou, controlando-se para não gritar, embora sua fúria já começasse a se sobrepor à razão.

'- Lily, eu...

'- Não me chame assim. Você não tem o direito...

Ele segurou o braço dela no ar antes que ela pudesse estapeá-lo novamente.

'- Não é o que parece, eu juro. Não estou do lado dos nazistas, eu...

'- E o que estava fazendo com Wenticht? Porque você é um convidado especial deles?

'- Foi Moody, o chefe da Scotland Yard que decidiu me fazer de agente duplo. Riddle tinha laços com os fascistas e os nazistas e era esperado que eu, como seu sucessor, também acreditasse na ideologia deles. Mas eu juro, Lily, eu não estou com eles. Se eu estivesse, teria te denunciado assim que nos encontramos.

Ela respirou fundo. Ele tinha razão. James sabia o porquê dela estar ali. Se estivesse com os nazistas, ela teria sido presa antes que pudesse dizer "mentira".

'- Mandaram você espionar a base?

James meneou a cabeça.

'- Já temos muita gente fazendo isso. Moody não queria que eu viesse, achava que era me arriscar demais. Se eles desconfiarem de mim, estou morto.

'- Então o que está fazendo aqui?

'- Eu fiz uma promessa ao meu filho, Lily. – James respondeu, aproximando-se – Prometi que encontraria a mãe dele custasse o que custasse.

Ela deu um passo para trás antes que ele pudesse se aproximar o suficiente para pegá-la com a guarda abaixada. O homem suspirou. Ela não deixaria que ele se reaproximasse. Deixara isso bem claro antes de ir para a América. O único elo que havia agora entre eles era o filho.

Mas porque ele continuava a sentir o insano desejo de tomar aqueles lábios mais uma vez, provar o gosto de morangos que sentira no primeiro beijo que tinham trocado, enlaçar a cintura delicada, apertá-la contra o peito a fim de protegê-la de todos?

'- Como está Harry? – ela perguntou, encarando-o novamente.

'- Eu o mandei para um internato suíço. Ele estará mais seguro lá.

Lily assentiu e James voltou a caminhar, mas desviou dela para sentar-se na cama. A ruiva o observou com certa curiosidade. Ele quase não mudara. Apenas uma certa aura de tristeza parecia diferenciá-lo do James que conhecera há mais de dez anos.

'- Lily, você virá comigo? – ele perguntou após alguns minutos de silêncio.

'- Eu lhe disse na carta, James. Só deixarei esse lugar quando encontrar meu pai.

James suspirou.

'- Acredito então que devo me preparar para uma longa estadia, não?

'- Do que está falando?

'- Eu só volto pra casa com você. Como eu disse, prometi ao meu filho.

Lily abaixou a cabeça e eles ficaram novamente em silêncio. Não havia mais nada a se falar.

'- Aproveite as férias então. – ela murmurou, voltando-se para a porta. Antes de sair, ela o encarou uma última vez – E bem vindo ao Inferno.


James observou o céu escuro sobre eles enquanto o jipe começava a diminuir a velocidade. Ele suspirou à lembrança de tudo o que vira durante aquela tarde.

As coisas estavam piores do que ele supora de início. Os nazistas eram decididamente mais loucis do que qualquer imaginação poderia prever. Visitar um campo de concentração era como passear no inferno. Lily tinha razão ao lhe dizer isso nas boas vindas.

Falando nela, ele virou-se para o banco do motorista, onde Lily agora desligava o carro. A semana estava quase no fim; Wenticht voltaria no dia seguinte. E ela não permitira nenhuma espécie de aproximação. Fechara-se totalmente a ele.

Suspirando, ele desembarcou, observando os muros que tinha diante de si. Lily parou ao lado dele.

'- A administração nazista está toda concentrada dentro do gueto. Algumas rebeliões fizeram com que eles se mudassem pra cá. Acham que estando no meio dos prisioneiros, podem controlá-los. - ela guardou as chaves no bolso - Esse lugar é um pouco melhor do que os campos, as pessoas aqui têm uma certa liberdade. Ou melhor, aqueles que não são judeus são tratados um pouco melhor.

'- Há muitos judeus aqui?

Lily meneou a cabeça.

'- Wenticht está extraditando todos eles para os campos. Não suporta conviver nesse lugar, por isso eu nunca pude investigar o gueto, embora todas as pistas que tenho de meu pai me levem até esse lugar.

'- Então, hoje você tem uma oportunidade de procurá-lo aqui, não é?

'- Receio que esse uniforme me impeça de fazer algum progresso. - ela observou os outros oficiais que patrulhavam o gueto - James, você acha que poderia... Que poderia se misturar e tentar...

Ele sorriu. Se ela estava lhe pedindo um favor, já era um grande avanço na relação deles. Afinal, Lily jamais admitiria precisar de alguém a não ser em um caso extremo. E mesmo assim, só se confiasse na pessoa. Então, ela ainda confiava nele...

'- Me espere no prédio da administração. - ele respondeu, tirando o sobretudo e entregando a ela.

Logo James deixou Lily e observou as ruas do gueto. Havia música aquela noite. Alguns soldados caminhavam de lá pra c� armas em punho, desprezo nos olhos. Numa pequena praça, alguns ciganos tocavam uma antiga canção enquanto duas mulheres dançavam.

O homem sentiu-se logo hipnotizado pelos movimentos quase lascivos das duas ciganas. As longas saias se enfurnavam com o vento enquanto o colo delas arfava com o esforço da dança.

James não pode se impedir de sorrir. Mesmo naquele lugar, eles ainda lutavam para manter suas tradições vivas. De certa maneira, aquela música e aquela dança eram um grito de revolta contra as atrocidades às quais o povo cigano estava submetido.

Por trás das lentes dos óculos, seus olhos brilharam, percorrendo a praça, observando com atenção os rostos cansados que o rodeavam. Percebeu que havia certa hostilidade em alguns deles; embora não envergasse o uniforme negro da SS, suas roupas e seu rosto sadio demonstravam claramente que não pertencia àquele lugar.

Antes que pudesse despertar alguma confusão, enfiou as mãos enluvadas nos bolsos e voltou a caminhar por entre as vielas sujas e mal-cuidadas do gueto. Abaixou a cabeça, encontrando o calçamento de pedra, incapaz de encarar aquelas pessoas. Sentiu vergonha do papel que estava representando.

Quando deu por si, percebeu que estava em outra parte do gueto. Não havia ali a mesma alegria dos ciganos; as faces pareciam muito mais cansadas; os corpos, muito mais fracos. James parou, observando um grupo que estava mais à frente, reunido diante de uma fogueira.

Eram crianças. Pouco mais de quinze, sentadas no chão, ouvindo atentamente um senhor que estava de costas para ele. James sentiu uma fisgada no estômago enquanto se aproximava.

O senhor escrevia na areia que alguém jogara no chãocom um galho. James estreitou os olhos. As palavras estavam escritas em uma língua que ele não conhecia. Em silêncio, ele postou-se nas sombras, ouvindo com atenção a lição que era passada quase em sussurros para aqueles jovens.

'- Iehe shelama raba min shemaia vechayim tovim alenu veal col Israel veimru.

James suspirou, deixando as sombras.

'- Sir Arthur Evans?

O senhor levantou-se, a face pálida, claramente assustado. Os dois se encararam por alguns instantes até que o pai de Lily virou-se para as crianças, despedindo-as com um aceno.

'- Quem é você? - ele perguntou um tanto ríspido. James logo percebeu que havia medo nos olhos do homem.

'- Imaginei que fosse me reconhecer, visto que sou pai do seu neto.

Sir Evans estreitou os olhos antes de soltar um longo suspiro.

'- O que está fazendo aqui, James Potter? Não é um prisioneiro, percebe-se logo. Mas não quero crer que esteja com os nazistas.

'- E eu não estou. Na verdade, eu estava procurando o senhor. Há uma pessoa que quer muito vê-lo. Pode vir comigo?

Ele abaixou a cabeça.

'- Devo confiar em você, Sir Potter? - mais um suspiro - Para onde quer que eu o siga?

James abriu passagem para ele, guiando-o para o prédio maior que se erguia dentro do gueto. O velho ainda hesitou por alguns instantes antes de passar pela porta que o outro homem abrira para ele. Mas por fim os dois estavam em um saguão vazio, exceto por um vulto sentado junto às janelas.

Lily não notou a aproximação dos dois até que eles parassem diante dela. Arthur a observou com cuidado, os olhos brilhantes de lágrimas.

'- Filha?

A ruiva voltou-se para eles, e logo seus lábios abriram-se em um tímido sorriso. Ela levantou-se, parando de frente para o pai. Uma lágrima escorreu pelo rosto dela.

'- Papai, o senhor... Graças a Deus! - ela o abraçou apertado, começando a soluçar.

James observou o reencontro com um sorriso. Talvez agora Lily se tornasse um pouco menos avessa a uma reaproximação dele. Finalmente a ruiva soltou o pai, que agora olhava para as roupas que ela vestia.

'- Porque está com esse uniforme, Lily? - ele perguntou curioso.

'- Foi a única maneira que achei para tentar encontrá-lo. Arranjei alguns documentos falsos e... Bem, isso não importa agora. O senhor está bem?

Ele sorriu tristemente, passando a mão pelo rosto dela, limpando as lágrimas que ainda caíam.

'- Você correu muitos riscos para tentar me encontrar, pequena. Eu sabia que você era forte, mas nunca imaginei que chegaria a esses extremos. Me orgulho de você, apesar de temer por sua vida agora que está aqui.

'- Sir Evans... Porque o prenderam aqui? - James perguntou após alguns instantes de silêncio.

'- Receio que essa seja uma história muito complicada. E que esse não seja o lugar mais seguro para contá-la.

'- Vamos para o escritório de Wenticht. - Lily respondeu, guiando-os pelo hall.

James e Lily sentaram-se, mas o velho senhor permaneceu em pé, observando o céu que se descortinava pela janela.

'- Toda a minha vida foi calcada em uma mentira. Eu não sou quem vocês acreditam que eu seja, o nome que minhas filhas carregam não é o nome do pai delas. Então acredito que deva começar essa história me apresentando. - ele observou as faces desconcertadas de James e Lily - Meu nome é Yossef Evansberg, filho de judeus que, por covardia, fugiu de seu passado, converteu-se e depois de muitos anos, foi reconhecido e preso por aqueles que ele temera.


Uau, que surpresa, não? Muitas emoções nesse capítulo... E no próximo vocês terão muito mais. Antes que eu me esqueça, a benção que o pai da Lily ensina às crianças, traduzida, fica assim: "Que haja uma paz abundante emanada do céu e vida boa para nós e para todo o povo de Israel". Para quem tiver curiosidade de conhecer o lugar onde estou garimpando esse tipo de informação, faça uma busca sobre "net judaica". Eu não vou colocar o endereço porque o ff. vai desaparecer com ele... Fazer o quê, não?

Ah, quero pedir mil perdões por não ter respondido seus reviews no capítulo anterior, mas o teclado desconfigurou e Carol estava repetindo do meu lado "só falta a gente, o pai tá esperando"... É que a gente ia viajar e só estavam esperando por mim para sair... Que situação, não?

Eu também não posso demorar muito hoje porque tenho que ir escrever o próximo capítulo de Doze Anos (deixei para última hora...). Mas agradecimentos a Nimrodel Telcontar, Belle e Babbi Potter, Dynha Black, Marcellinha Madden, Mirtes, Sarah-Lupin-Black, Juliana, Juliana Montez, t0n, Jé Black, Flávia, Mari-Buffy, Bia Black, Marmaduke Scarlet, Lily Dragon, Sarita, Mechanical Bride, Thaisinha, Natalia Potter e todos que continuam me acompanhando e que ainda não se cansaram de mim.

Acho que quarta ou quinta eu posto o PENÚLTIMO capítulo de MdL. Assim, beijinhos!

Silverghost.