Ressaca
Devagar, ele foi acordando.
Sua mente recusava-se a clarear, e ele teria facilmente voltado a dormir se não fosse a dor no ombro direito. Ainda sem abrir os olhos, tentava imaginar que dor era aquela, familiar e desconhecida ao mesmo tempo.
"Talvez se eu me mover passe o incômodo." Sua mente vagava ainda entre o sono e a vigília, e o corpo ainda não obedecia aos comandos do cérebro. "Inferno!"
Ele concentrou-se em abrir os olhos, tarefa quase impossível e que despertou uma monstruosa dor de cabeça. Gemeu baixinho.
"Merda, Severus! Assim alguém pode ouvir."
Ele não conseguia se lembrar de quem não deveria ouvi-lo, mas sabia que era importante que fosse discreto, muito discreto.
"Severus? Sim. Esse é o meu nome. Pelo menos ainda lembro meu próprio nome."
O ridículo da situação o fazia ter vontade de rir, mas o estômago escolheu esse momento para dar seu primeiro, e intenso, sinal de problemas.
Ele respirou fundo e tomou consciência de que estava com o rosto enterrado em uma cabeleira, e o cheiro que vinha dali era muito bom.
Ele se sentia incrivelmente possessivo em relação ao dono daqueles cabelos e daquele cheiro. Uma felicidade espalhava-se por sua mente confusa, despertando uma vaga lembrança de ter feito algo que queria há muito tempo.
"Sim! É ele que está nos meus braços." Por isso a dor. A cabeça dele estava apoiada no ombro, provavelmente há muito tempo. Severus já ia voltar a dormir, em paz com o universo, que lhe parecia em excelente ordem mesmo com o ombro doendo, quando a súbita memória de quem ele amava, e da razão porque esse amor não poderia estar em seus braços de maneira nenhuma, o atingiu com a força de um imperdoável.
Snape abriu os olhos, a luz enviando flechas de dor diretamente na sua cabeça, o estômago acalmando sua revolta no calafrio da compreensão de que fizera algo que não deveria ter feito, e a boca se tornando ainda mais seca do que já estava.
Ele olhou para o cabelo negro e indomável que era tudo que ele podia ver do garoto em seus braços. Ele reconheceria aquele cabelo em qualquer lugar. Seu coração disparou, e ele respirou fundo tentando encontrar alguma calma para lidar com a situação.
Por um breve instante, Severus namorou a idéia de puxar Harry mais para perto e acordá-lo com beijos. Seria fácil. Ele tinha o braço esquerdo passado por sobre o corpo do garoto, e suas pernas estavam frouxamente entrelaçadas. Se não fosse tão grave ter Harry ali, seria maravilhoso.
Ainda com medo de mover-se e acordar o garoto, que, pela respiração profunda e leve ressonar, estava no melhor dos sonos, Severus tentou olhar em volta.
Deu graças à Magia por estar usando suas calças, aparentemente abotoadas; afinal já era bastante embaraçoso que estivesse usando só as suas calças.
E Harry estava de pijamas!
Buscou na mente sua última memória e lembrou-se da festa de Lucius.
Severus não gostava das festas do grupinho íntimo dos comensais. Era muito arriscado. Não podia furtar-se a beber junto com eles e, se ficasse bêbado, ele poderia pôr muita coisa em risco. Coisas que ele considerava muito importantes: sua vida, segredos da Ordem e a segurança do garoto que estava onde, por mais que Severus o quisesse ali, não deveria estar de jeito nenhum.
"Estou divagando. O que diabos deu errado ontem? Presumindo que tenha sido ontem."
A Poção Sobrius! Ele a tomara, tinha certeza. Ele sempre tomava a poção, de sua própria criação, e por isso mesmo totalmente desconhecida dos outros bruxos, antes de ir para uma festinha dos Comensais.
A poção lhe permitia beber mais do que qualquer um e manter-se totalmente sóbrio. Os únicos sintomas eram uma incrível dificuldade para articular qualquer palavra e o fato de seus olhos parecerem turvos e meio fechados. Mas sua mente e seus sentidos permaneciam afiados. O andar trôpego que fazia Grabbe e Goyle se divertirem tanto, bem como os gestos e caretas típicos de um bêbado, ele simulava. Afinal sempre fora excelente em simular e dissimular.
Snape era conhecido entre os comensais como um verdadeiro esponja – um espoja sexualmente impotente ainda por cima. Duas ilusões cuidadosamente criadas e mantidas.
Então o que saíra errado? Com esforço e com dor de cabeça, lembrou-se de ter chegado na festa e cumprimentado Lucius. O outro, já meio bêbado, estava refestelado em um sofá com uma jovem trouxa e lhe acariciava o corpo de forma lasciva. Severus lembrou-se de que ficara na dúvida se a garota era uma prostituta ou uma vítima sob Imperius. Lucius apreciava ambas.
Depois disso o que acontecera?
Claro! Lucius o fizera sentar-se com ele e com a jovem prostituta – descobrira mais tarde que se tratava de uma profissional.
—Toque-a, Snape! – Lucius levara a mão de Snape nos seios da moça. – Ela não é deliciosa?
Depois veio a risada nojenta de Lucius diante do mal disfarçado incômodo de Severus. A suposta impotência de Severus divertia Lucius, apesar de ele lamentar a perda de Severus em certas atividades. E parte do árduo trabalho de espião era divertir Malfoy e fazê-lo falar.
—Quer que eu lhe traga um garoto, Severus? Ou quem sabe você quer um homem grande e forte para pôr você de joelhos? Contratei de tudo, e os melhores. Vamos festejar! – A risada de Malfoy indicava o quão bêbado ele já estava. Desde que fora libertado de Azkaban pelo Lord das Trevas, Lucius andava bebendo muito. Severus só podia especular qual preço o Lord o fizera pagar pela fuga que o transformara tanto assim.
Severus forçou um sorriso subserviente que ele sabia que agradava Malfoy.
—Não, mas obrigado, Lucius. Acho que vou preferir uma bebida.
—Beba isso. – Malfoy enfiou-lhe nas mãos uma garrafa de vinho quase intocada. – Mostre-nos o tamanho da sua sede, Severus.
De um fôlego, o espião bebera boa parte da garrafa, escondendo no fundo da mente o medo de que ela contivesse algum veneno que não pudesse ser bloqueado pelos antídotos que tomara antes de vir. Com Malfoy, nunca se sabia.
Lucius o abraçara, imprensando a jovem trouxa entre eles, e lambera uma gota de vinho nos lábios de Severus.
—Você já foi tão bom nas artes eróticas, Snape. É uma pena que não pratique mais. Eu e você mostraríamos a essa coisinha o que são dois homens de verdade, e depois eu relembraria a você como gosto de tratá-lo.
A memória do caso dos dois no passado não afetava mais Snape.
—Eu ainda me lembro, Lucius. – Ele tocara o rosto arrogante do outro bruxo simulando um ar de tristeza. – Mas infelizmente meu único amante agora é o vinho.
—Pois o traia! Traia-o com o viril Uísque de Fogo. – Malfoy empurrara uma garrafa fechada em suas mãos. – Esse é especial!
Sabendo que fazia parte do espetáculo, e confiando totalmente na sua poção, Severus abrira a garrafa e derramara uma dose mais que generosa na boca. O líquido dourado descera queimando sua garganta, mas ele não demonstrara desconforto. Malfoy aplaudira e voltara a dedicar-se a garota em seus braços.
Snape levantara-se e sentira o mundo girar. Daí para frente suas lembranças estavam confusas. Ele não conseguia seguir o fio da meada.
"Que droga! A poção nunca falhou antes."
Então duas memórias o atingiram ao mesmo tempo.
A primeira era de antes da festa. Ele estava no seu lugar à mesa dos professores, era hora do jantar e ele estava com a poção na mão, pronto para diluí-la na água e tomá-la ainda antes de comer. Então Harry entrara, e aquela estúpida garota acenara toda oferecida para ele.
No calor da raiva que o atacava toda vez que via alguém se insinuando para Harry, ele guardara a poção, esquecendo de tomá-la.
A outra memória era dele acabando de beber o resto das garrafas de vinho e de uísque que Lucius lhe dera e descobrindo-se embriagado.
Lembrou-se, então, nitidamente do pensamento que lhe ocorrera: "Culpa do Potter! Maldito! Ele não vai escapar impune!"
Daí para frente ele não tinha mais nenhuma memória até o instante que acordara com o garoto em seus braços.
Enquanto forçava a mente para lembrar-se de algo, ele ouviu um pequeno gemido e sentiu Harry mover-se, ainda adormecido. Subitamente o garoto sentou-se, como se tivesse acordado com um susto, e virou-se para ele, encarando Severus com olhos verdes incrivelmente arregalados.
"Salazar! Tem um chupão no pescoço do Harry!"
Em algum lugar do inconsciente, Severus sentiu de novo o gosto da pele do garoto e ouviu o gemido que ele deixara escapulir quando Severus o marcara.
Continua
