Amnésia

Harry despertou de súbito.

A memória dos fatos da noite anterior o atingiu com uma clareza absurda no instante em que ele acordou. Nunca em sua vida levantara tão rápido quanto nesse dia. Tão rápido que só quando se sentou na cama e olhou para ao rosto de Snape, muito mais pálido que o usual, é que se deu conta de que estivera realmente dormindo abraçado com o Professor-de-Poções-que-Odiava-o-Filho-de-James-Potter.

Apesar da confusão mental em que se encontrava, Harry percebeu que Snape também estava com uma expressão assustada no rosto, como se vê-lo ali fosse a última coisa que ele esperava.

Harry não sabia o que fazer, e estava se sentindo um idiota, ali parado olhando para Snape, que parecia ainda mais perdido do que ele.

Foi o bruxo mais velho que quebrou o silêncio:

—Onde... onde nós estamos, Potter? – A voz dele estava rouca e baixa, e ele parecia ter dificuldades para concatenar os pensamentos.

—Eu não sei. Você me trouxe para cá no meio da noite. – O uso do seu sobrenome deixou Harry tenso.

—E você não viu onde estávamos indo, Potter? – Snape parecia estar tentando, ainda sem sucesso, dar o habitual tom venenoso à voz.

"Ele não se lembra! Ele realmente não se lembra! Então o que ele disse não deve ser verdade. E por que seria? Ele me odeia, eu sempre soube disso"

Harry lutou para esconder a tristeza atrás da petulância do tom com que respondeu ao professor:

—Fica meio difícil de se ver onde a gente está sendo levado, quando se está amarrado e amordaçado. Não se lembra? Foi assim que você me trouxe. - Harry levantou da cama e foi até a lareira, onde se apoiou, a alegria que sentira na véspera sendo substituída por uma raiva surda por ter-se deixado sonhar. – Me arrastou até a lareira do Salão Comunal da Grifinória e jogou Pó de Flu nela. Eu não ouvi o nome do lugar porque você teve a brilhante idéia de tapar meus ouvidos na hora. Portanto eu NÃO SEI onde estamos, e gostaria muito se me dissesse como sair daqui.

Harry viu, sem nenhuma piedade, Snape estremecer quando ele levantou a voz. O garoto não conseguia tirar os olhos da marca no peito de Snape. Ele perguntava-se como o professor reagiria ao lembrar-se da mordida que Harry lhe dera

—Garoto, eu não faria nada tão estúpido nem em um milhão de anos.

Harry apontou as cordas e a mordaça jogadas no chão do quarto.

Apesar de parecer impossível, Snape ficou ainda mais pálido, e levou a mão à boca. Harry apontou o outro lado do quarto:

—Ali tem um banheiro.

Snape respirou fundo e, aparentemente contendo a ânsia de vômito, levantou-se lentamente.

"O desgraçado não perde a pose nem seminu e de ressaca."

Ainda segurando na cabeceira da cama, Snape olhou em volta, parecendo procurar alguma coisa.

—Minhas roupas, Potter?

Subitamente Harry sentiu-se ficar vermelho. Muito vermelho.

Contendo-se, o garoto andou até o pé da cama, pegou a capa do outro bruxo que estava jogada no chão e entregou a ele. Com alguma hesitação, entregou também a veste, embolada.

Com a voz ainda rouca, e tentando mostrar alguma dignidade com aquele amontoado de roupas na mão, Snape comunicou ao garoto:

—Vou cuidar da minha higiene, Potter. E depois, enquanto você cuida da sua, eu tento descobrir onde estamos e uma forma segura de me comunicar com o Professor Dumbledore para voltarmos a Hogwarts, onde vou arcar com as conseqüências das insanidades que aparentemente cometi ontem à noite. Você sabe onde estão nossas varinhas?

—A minha deve estar no dormitório de onde você me seqüestrou. – Harry não conseguia evitar, precisava provocar Snape. – A sua está ali.

Enquanto via Severus Snape recolher a varinha e ir até o banheiro, Harry sentia a amargura crescer na alma.

"Insanidades! Droga! Foram só insanidades."

Tentando não se render à angústia que ameaçava tragá-lo, ele caminhou até o espelho para ajeitar o pijama e conseguir alguma dignidade. No pescoço a marca dos beijos de Severus.

"Severus não. Snape. Eu tenho de pensar nele como Snape."

Mas a voz rouca do bruxo mais velho ainda ressoava no seu ouvido dizendo tudo o que ele queria ouvir desde que se descobrira apaixonado por ele, o gosto de Severus misturado com álcool ainda estava na sua boca, e seu corpo todo estava sensível por causa dos carinhos nem sempre gentis do outro homem. O cheiro dele estava em sua pele, e não havia nada que Harry pudesse fazer quanto a isso.

Antes ele sabia que Severus nunca ia querer nada com ele; agora ele tivera o gosto do que poderia ser e perdera. Era injusto. Doía como um Cruciatus.

Harry ainda estava tentando dar um jeito no cabelo quando Snape saiu do banheiro.

Ele vestira a capa sobre as vestes e parecia mais preocupado do que antes.

"Ele viu a mordida. Ele viu os botões da veste arrancados. Ele vai tripudiar de mim agora."

—Potter, o que realmente aconteceu aqui?

—Como assim?

—Não se faça de sonso. O que eu fiz que você precisou me morder para se defender?

—Nada.

—Potter!

—Está tudo bem. Não aconteceu nada demais. Eu não quero falar nisso.

—O que eu fiz de tão horrível que você não consegue nem falar? Potter, eu preciso saber.

—NADA! Droga! Não aconteceu nada horrível!

—Então por que precisou me morder para se defender?

—Eu não precisei, eu só... por favor, eu não quero falar nisso. – Harry olhava para todos os lados menos para Severus.

—Harry...

Ele sentiu a presença de Severus bem ao seu lado e se surpreendeu ao ouvir a tristeza e o cansaço na voz do Mestre de Poções:

—Harry, eu ataquei você?

—Não! – Harry levantou o rosto, intrigado com o comentário. – Você só... só me disse umas coisas, e me abraçou. Não fez nada de ruim.

—Então por que eu tenho a marca dos seus dentes no meu peito? Acho que sou responsável também por essa marca no seu pescoço.

Harry fez que sim com a cabeça, ainda encarando o rosto de Severus.

—Eu sei a punição para o que eu fiz, Potter. Forçar alguém é crime, é nojento. Vou falar com Dumbledore assim que sairmos daqui.

—VOCÊ NÃO ME FORÇOU! DROGA! Quer que eu me humilhe? Está bem, eu me humilho. Eu confesso. Eu acreditei no que você me disse ontem. Eu acreditei que você gostava de mim. Eu acreditei porque era o que eu queria ouvir, porque eu sou um idiota. Eu adorei cada beijo, cada toque. E foram muitos, se você não se lembra. Eu adorei quando você marcou meu pescoço sussurrando que eu era seu para sempre. Foi por isso que eu mordi. Eu queria marcar você também. Marcar você para mim. Para sempre. – Aos berros, Harry não permitiu que Snape o interrompesse. – Você estava muito bêbado, e só por isso não fizemos mais nada. Eu achei que o álcool tivesse liberado seus sentimentos. Você não me forçou. De certa forma fui eu quem se aproveitou de seu estado. Se Dumbledore tiver de punir alguém, esse alguém sou eu.

Harry entrou o banheiro e bateu a porta. Ele não ia chorar. Não na frente de Severus. Não ia acrescentar mais essa humilhação à sua coleção.

—Harry! – A voz de Snape soava preocupada do lado de fora. – Abre.

—Me deixa. Me dá um tempo!

Novas batidas na porta, dessa vez com mais força.

—Potter, não me faz arrombar essa porcaria.

—VÁ À MERDA!

continua