O corpo desceu rolando o escorregador, sendo seguido por um rapaz. Logo que tocou o chão e conseguiu pôr-se de pé, levou um chute certeiro no tórax o fazendo perder o equilíbrio e recuar um passo, chocado com a força do golpe.

-Isso foi engraçado!- Riu o garoto que havia lhe batido, pondo-se em posição de ataque. –Faz de novo?- Terminou e o homem avançou sobre ele, apenas para ser fortemente empurrado sobre as mesas que estavam naquele parquinho.

-Eu vou te matar!- Grunhiu o sujeito e o garoto novamente riu, pronto para atacar mais uma vez quando algo o fez parar e subitamente a sua visão ficou turva, assim como um certo amolecimento abateu o seu corpo o impedindo de ficar em guarda para o golpe que veio a seguir. Quando conseguiu se recompor novamente, já era tarde. O homem avançou com tudo para cima dele, o derrubando no chão e fazendo a sua arma voar para longe, começando a sufocá-lo. O garoto ainda tentou tirar o sujeito de cima de si mas, estranhamente, parecia que todas as suas forças tinham se esvaído. E quando percebeu que seus pulmões exigiam ar e o mundo a sua volta estava começando a ficar escuro, repentinamente o peso do atacante foi tirado de cima de si.

Inspirando várias vezes e tossindo um pouco, ele piscou, dentro da pouca luz que tinha no parque àquela hora da noite, para poder ver o que tinha acontecido com o sujeito que quase o estava matando estrangulado, quando percebeu que esse estava lutando com um outro homem. E parecia que o seu salvador desconhecido era bem forte para conseguir lutar em pé de igualdade com o seu atacante.

Assim que percebeu que já tinha fôlego para voltar para a briga, o rapaz levantou-se, um pouco cambaleante, e começou a procurar a sua arma. Porém, notou um pouco tarde, que não precisaria mais dela. Com uma girada de corpo, seu salvador conseguiu acertar o homem, com um chute, no rosto, o fazendo ficar desnorteado, para logo depois cravar algo em seu coração o fazendo virar pó, literalmente.

O rapaz assistiu com um certo fascínio o sujeito virar pó, quando percebeu que seu salvador estava vindo em sua direção.

-Não deveria andar sozinha a essa hora da noite, menina.- Disse em uma voz grossa e profunda, que teria feito todos os pêlos de seu corpo se arrepiarem se não fosse por um porém: ele o confundiu com uma mulher.

-Agradeço a sua preocupação e a sua ajuda…- Começou, sacudindo a poeira de suas roupas negras, ainda não erguendo os olhos para mirar o seu salvador.-… mas eu sei me cuidar muito bem, pode ter certeza.- Terminou, erguendo a cabeça e quase caindo sentado de choque. O homem a sua frente era de uma beleza quase elementar, com revoltos cabelos castanhos e profundos olhos azuis, junto com a pele pálida iluminada pela luz fraca dos postes.

Ao ver a pessoa a sua frente erguer a cabeça para mirá-lo, o salvador deu um pequeno ofego de susto. Não era uma menina, era um rapaz. Com os cabelos mais longos que ele já vira em um homem e os olhos mais belos que encontrara em um ser vivo. Violetas, como o céu do entardecer.

-Bem, não parecia para mim que você estava se cuidando.- Retrucou o sujeito dos cabelos curtos, ainda inebriado com a beleza daqueles olhos.

-Foi apenas um… acidente de percurso. Mas, mesmo assim, valeu pela ajuda.- Rebateu com um meio sorriso, virando-se sobre os pés e saindo as pressas daquele parquinho, antes que se perdesse mais no azul profundo daqueles olhos.

* * * * *

A porta do velho mausoléu abriu-se com um suave rangido, permitindo que a figura entrasse dentro do local, sendo recepcionada pela fraca luz que vinha do fogo quase extinto da lareira.

-Você demorou.- Veio a voz de um dos poucos sofás que tinha no local, junto com as mínimas mobílias que o acompanhava. –Não conseguiu encontrar um lugar aberto há essa hora?

-Encontrei.- O recém chegado declarou, caminhando até a cadeira vaga e sentando-se nela, colocando a sua encomenda em uma mesinha ao lado.

-Então o que te deteve por tanto tempo?- O rapaz no sofá inclinou-se, deixando os seus olhos negros serem iluminados pelo fogo, delineando suas feições asiáticas.

-Encontrei um contratempo no parque. Um jovem estava sendo atacado.- O homem de olhos negros deu um sorriso de lado.

-E o grande samaritano teve que cumprir a sua boa ação do dia, não teve?- Brincou, recostando-se novamente no sofá.

-É isso que eu faço nos últimos vinte e cinco anos, não é?

-O jovem atacado está bem?

-Sim. Está perfeito… -O homem murmurou. –Simplesmente perfeito.

-O que você disse?

-Nada.

-Hum… -Alguns minutos de agradável silêncio se passaram, até que o rapaz de olhos negros resolveu quebrá-lo. –Sinceramente, Heero, com todo o dinheiro que você acumulou nesses mais de dois séculos… -Começou, olhando com um certo desdém a sua volta.-… não poderia ter arrumado um lugarzinho melhor?- Heero deu uma curta risada diante do mau humor do amigo. Ele detestava lugares fechados. Ainda mais se esses lugares fechados ficassem no meio de um cemitério.

-Para alguém como eu, eu acho esse lugar perfeito. Eu falei que se você quisesse poderia alugar um quarto na cidade, mas quando foi que você me ouviu Chang?

-Errado, caro amigo, você que nunca me ouviu, isso sim. Exceto durante os chamados das missões, mas isso é outra história.

-Mas eu te ouço, não ouço?

-Sei… Quando é que vamos começar essa busca? Acha que encontraremos aqui a outra parte da profecia? Aquela que levará a cura?

-Você que me diz, afinal, você que viu tudo.

-Eles só me disseram para ser seu guia, mas não me deram tantos detalhes assim. Porém eu acho que estamos no caminho certo. Quero dizer…- Wufei levantou-se do sofá e começou a andar de um lado para o outro na frente da lareira, resmungando uma coisa ou outra e com ares pensativos.-… Isso daqui é a Boca do Inferno. Quer lugar melhor para o despertar do demônio Apocalíptico do que aqui?

-Ah, América…- Heero suspirou.-… Terra das oportunidades. Terra das encrencas. Terra complicada essa, isso sim.

* * * * *

A porta da biblioteca abriu-se bruscamente e bateu na parede, voltando em seguida. Nesse meio tempo, um homem em trajes formais e carregando uma pilha de livros, sendo seguido por um rapaz de longa trança e que falava e gesticulava incessantemente, entraram no recinto.

-Você não está entendendo Treize!- Duo fez um gesto largo enquanto Treize depositava os livros que carregava em cima da mesa principal da pequena biblioteca.

-Bem, fica um pouco difícil compreender algo quando você está falando mil palavras por segundo.- Retrucou calmamente, virando-se para finalmente encarar o rapaz.

-Certo!- Duo respirou fundo, frustrado e irritado ao mesmo tempo. –Eu não sei o que está acontecendo comigo! Faz idéia do que quase aconteceu ontem? Um vampiro me derrubou!

-Bem, Duo, vamos convir que alguns são mais fortes do que os outros e que você nem sempre é superior a eles. Na verdade, creio que seus poderes estão em um certo pé de igualdade. Mas com treinamento adequado, você consiga superá-los…

-Você não entendeu! No momento da luta eu me senti mal e fraco de repente, e assim aquele vampiro me derrubou. Se não fosse aquele estranho aparecer…

-Espera, espera, espera…- Treize o interrompeu, com a sua calma de sempre e o seu sotaque britânico, o americano tagarela. –Estranho? Que estranho?

-Bem, o vampiro estava quase me sufocando e então esse estranho apareceu e meu salvou, lutando com o demônio.

-E?

-Bem, ele venceu.

-Está me dizendo que um completo estranho conseguiu derrubar um vampiro? Um humano comum?

-Eu não vejo o que há de errado nisso. Se vocês conseguem, por que ele não?- Disse o rapaz trançado, apontando para Treize.

-Verdade.- Rebateu o homem, voltando para os seus livros.

-Mas e quanto ao meu problema?- Duo recomeçou. Ficar fraco de repente dentro de uma batalha, correndo o risco de quase ser sufocado por um vampiro não era os seus planos para a véspera de seu aniversário.

-Parece que uma virose está chegando. Você sabe que nem um caçador está imune a essas pequenas criaturas.- Atestou, caminhando pela biblioteca e guardando alguns livros em algumas estantes.

-Virose?- Duo o seguiu, com os olhos largos diante da possibilidade de estar doente. –Eu não posso estar doente! De jeito nenhum! Meu tio Maxwell me deu folga no trabalho do orfanato para poder comemorar meu aniversário com os meus amigos. E eu sei, mesmo que eles estejam com a boca fechada, que eles estão preparando uma festa surpresa. Eu não posso ficar doente! E quanto à patrulha?

-Bem, parece que você vai ter que tirar um repouso forçado, se quiser estar bem para a sua festa de aniversário.

-Ah! Muito obrigado!- Duo lançou as mãos para o ar, exasperado, quando a sineta tocou. –Bem, eu tenho que ir. –Disse, recolhendo a sua mochila e começando a sair do recinto, quando a voz do seu sentinela o fez parar.

-Não se esqueça que temos treino depois da aula hoje!- O rapaz congelou no lugar, soltando um gemido. –Conhecer as propriedades dos cristais é muito importante para poder…

-Eu sei, eu sei. A gente se vê Treize.- Retrucou e saiu, quase correndo, do lugar, antes que Treize arrumasse outra idéia maluca como treinamento. Depois de quase dois anos trabalhando com o sujeito, ele ainda não conseguia entender como ele via utilidade em certas coisas que, na sua visão, não passavam de perda de tempo.

* * * * *

-E então, como foi a patrulha ontem?- Uma voz animada chegou aos ouvidos de Duo e o rapaz sorriu, virando-se para encarar o loiro que se aproximava dele. Quatre era o seu amigo desde que ele chegou na cidade para morar com o seu tio, Padre Maxwell. E, diferente de alguns dentro daquela escola, era o primeiro multimilionário que ele via que não era arrogante e fresco. Na verdade, o loirinho, de origem árabe, era bastante simples e amigável e foi o primeiro a aproximar-se dele dentro da escola. Afinal, com apenas poucas semanas de chegado, ele já tinha ganhado uma fama nada promissora sendo taxado de violento, rebelde e um pouco insano. Mas o que eles esperavam de um adolescente que de dia tentava resolver equações matemáticas e de noite cravava estacas no peito de vampiros?

-O que você acha?- Retrucou, puxando um pouco o colarinho de sua camisa para mostrar ao amigo as marcas, quase sumidas, das mãos fortes do vampiro em seu pescoço.

-Ah! Por Alá, Duo, como ele conseguiu fazer isso a você? Vampiros nunca te derrubaram assim.- O loirinho murmurou para o amigo, enquanto paravam em frente aos seus armários para recolherem seu material.

-Eu me senti fraco no meio da batalha. –Duo começou, abrindo o seu armário. –E então ele conseguiu me derrubar.

-Minha…

-Mas não esquenta, Quatre, foi só um descuido. –Tratou de tranqüilizar o amigo antes que esse começasse a culpar-se por uma coisa que ele não tinha culpa. Não esperaria menos do dono do Coração do Universo. Pois sim, Duo não era apenas o único com dons dentro daquele lugar. Quatre também tinham os seus, era um garoto com um dom empático. E parecia que, de uns tempos para cá, ele estava começando a praticar e a desenvolver novos dons.

-É… Mas eu poderia estar lá... eu poderia ter… -Duo o interrompeu antes que ele começasse a pedir desculpas.

-E o que você teria feito? Lançaria lápis nele?- Brincou, lembrando-se do novo dom que o árabe estava desenvolvendo: magia. Mas parecia que ele não era tão poderoso assim, ainda. –Ou bateria nele?- Riu, olhando o loiro de cima abaixo. Com aquela altura, aquele rostinho de anjo e aquele físico, ele não faria muito. Não que Duo fosse alto e forte. Ele era apenas um pouco maior do que Quatre e era esguio como o mesmo. Não era a toa que às vezes era confundido com uma mulher, ainda mais com o tamanho do cabelo que tinha. Mas isso lhe dava agilidade, além de enganar os inimigos. Eles nunca viam força em alguém com o seu porte físico. Eram uns tolos.

-Qual é o problema? –Uma nova voz uniu-se a dupla, uma voz conhecida por ambos, embora o seu dono não fosse de falar muito.

-Duo quase foi morto por um vampiro!- Quatre falou com um tom alarmado, em um sussurro mínimo, e Duo e Trowa rolaram os olhos. O jovem loiro se preocupava, e às vezes exagerava, demais.

-Ele só me derrubou, Q! Pára o drama, por Deus!

-Mas… Duo…- Quando Quatre vinha com essa tirada, com certeza já se poderia esperar um sermão, como o de uma mãe extremamente preocupada, para cima dele. Trowa percebendo o que o loiro estava prestes a fazer, olhou para os lados para certificar-se se havia mais alguém além deles no corredor. Quando percebeu que estavam sozinhos, pôs seu plano em prática. Antes mesmo de o loiro abrir a boca para dizer a primeira palavra, o moreno de olhos verdes o calou com um beijo sedento, o deixando desnorteado.

-Obrigado Tro.- Duo agradeceu, recolhendo as suas coisas e partindo para a sua aula, pois já estava atrasado, deixando o casal de pombinhos para trás.

* * * * *

Heero mirava as paredes cinzentas do mausoléu com uma certa intensidade e distância. Na sua cabeça cenas e mais cenas da batalha da noite anterior passavam. Não a parte em que ele derrubou aquele vampiro e o eliminou, mas sim a parte final, a parte onde ele viu-se preso no par de orbes azul violeta mais lindos que ele já vira em toda a sua existência. E foi assim, com um olhar distante e com uma expressão pensativa, que Wufei Chang o encontrou.

-Vai abrir um buraco na parede se continuar a encará-la assim.- Falou em um tom sério, entrando cuidadosamente no mausoléu para evitar que os raios solares penetrassem no lugar.

-Como?- Heero saiu de seu transe e encarou o amigo que acabava de chegar.

-Nada. Mas parecia que você estava bem longe daqui. Algum problema?

-Estava apenas pensando.

-Posso saber no quê?- Heero hesitou um pouco e Wufei entendeu tudo. –Reformulando a minha pergunta. Posso saber em quem? Sinceramente, Yuy, você já atolou tanto as minhas pobres orelhas sobre esse garoto misterioso, esse anjo de olhos violetas como você chama, que eu diria que você está sofrendo do mais antigo male terrestre.

-O quê?- Heero indagou, parecendo que tinha saído de outro transe no qual tinha entrado enquanto Wufei falava.

-Isso é ridículo! Você, com todos os seus anos de existência, ainda cai na armadilha do amor? Amor à primeira vista acima de tudo.

-Não seja idiota!- O homem retrucou, levantando-se da cadeira e caminhando para o canto oposto da sala, para que Wufei não percebesse o seu embaraço. –Ele é apenas um garoto que me chamou a atenção.

-Um garoto que, devemos lembrar, você só viu por uns minutos e que provavelmente não verá de novo.

-Sunnydale é uma cidade pequena, eu posso esbarrar com ele por aí.

-Se ele for uma criatura diurna, eu duvido muito.

-Tem alguma informação para mim, Chang?- Heero o cortou, antes que o amigo começasse a fazer piadinhas diante do seu fascínio pelo garoto desconhecido.

-Mesmo aqui sendo a Boca do Inferno, na biblioteca pública não há muita coisa para se achar, não é?

-Claro que não. Precisaremos ir procurar os seres noturnos para conseguir alguma informação.

-Não creio que seja uma boa idéia. Sua fama entre eles é tão boa quanto entre os humanos de sua época. Você é conhecido como um traidor da espécie.

-Eu sei. Mas preciso me arriscar se quero deixar de pertencer a essa espécie.

-Bem, há um outro meio.- Heero virou-se para o amigo de supetão, o mirando com seus frios e intensos olhos azuis.

-E esse seria?

-Durante a minha pesquisa eu descobri uma coisa interessante. Há um pouco mais de um ano a taxa de mortalidade nessa cidade era bem grande. Jovens encontrados mortos, com o sangue drenado de seus corpos e com marcas de mordidas no pescoço. Ou então estraçalhados, dilacerados… Mortes bem violentas. E, de repente, tudo isso diminui. Como se algo tivesse chegado de repente na cidade e eliminado metade de sua população demoníaca.

-Algo? Não seria melhor dizer… alguém?

-Está pensando o mesmo que eu Yuy?

-Uma caçadora?

-Correção: Um caçador.