-Vamos embora - Duo alertou, não gostando do clima que estava naquele porão devido ao buraco das trevas e os dois cadáveres que lá se encontravam. -Vamos avisar ao Treize sobre isso. - falou, segurando Hilde pelo pulso, que ainda olhava aturdida para o que estava na sua frente, e a tirando de lá. Subiram vagarosamente de volta e escola, cada um perdido em seus pensamentos. Uma coisa era ter uma idéia virtual da existência da Boca do Inferno, outra era ter a prova concreta de que ela não era apenas dados dentro de um livro antigo do Conselho. Estava lá, exposta para quem quisesse ver e espalhando a sua energia maligna para todos os cantos. Alcançaram o corredor da escola, caminhando a passos lentos até a biblioteca, onde encontraram os outros lá, reunidos, apenas esperando o retorno deles dois.

-E então? - Treize perguntou, mas pela expressão que os dois caçadores estavam fazendo, ele já tinha uma vaga resposta para o que queria.

-Encontramos o buraco. Parece mais um tampão com uns símbolos estranhos. Não passaria de uma tampa de esgoto bem enfeitada se não fossem os dois corpos dos pedreiros que estavam ao redor da tampa.

-Há corpos lá embaixo? - perguntou Zechs a Duo e esse apenas assentiu com a cabeça. -Interessante. Talvez tenha sido eles que tenham aberto a Boca do Inferno, começado esse ciclo de destruição.

-Como? - Sally perguntou curiosa, não entendendo como duas pessoas aparentemente inocentes pudessem ser a responsáveis por esse caos todo.

-Não digo que eles fizeram intencionalmente, talvez quando estavam fazendo a obra encontraram a entrada do portal acidentalmente e esse os influenciou, os tornando marionetes para os seus planos de ser aberto e trazer os demônios do submundo a Terra. - falou o loiro, recolhendo um livro que estava sobre a mesa. -Andamos pesquisando enquanto vocês estavam fazendo a busca. A Boca do Inferno foi selada a mil anos antes de Cristo por um mago. Ele precisou usar seu próprio sangue e vida para poder fechar a Boca do Inferno. Com a vinda desse demônio, a influência mística está mais alta em seres humanos comum. Deve ter aproveitado que esses dois operários estavam lá e usou a vida deles para poder aumentar o seu poder, até o dia do eclipse. Não é a toa que aqueles vampiros atacaram vocês ontem à noite. É um aviso da vinda do Apocalipse.

-E eu pensando que o único apocalipse que viria era as provas de final de semestre. - murmurou Duo em um tom sombrio. -O que faremos para parar esse sujeito? Quero dizer, não creio que alguns socos e uma estaca serão o suficiente. E eu não quero Quatre dando a sua vida para fechar a Boca do Inferno. - murmurou, olhando firmemente para o jovem árabe que tinha aberto a boca para protestar contra essa ordem. Sabia o que o amigo loiro estava pensando. Se fosse preciso Quatre daria a sua vida para poder ajudar, mas ele não permitiria que mais ninguém que ele amava morresse. Já tinha bastado a sua família ter morrido só porque ele era o escolhido.

-Não creio que ninguém vai precisar morrer. Destruir o demônio será o bastante para enfraquecer a Boca do Inferno a tal ponto, que um feitiço de selamento possa ser feito com facilidade. Mas a questão é realmente essa, Duo, não há como destruir o demônio. - Treize estava com os ombros rijos à medida que falava, demonstrando o quanto estava tenso.

-Eu não gostei disso, eu realmente não gostei disso. - murmurou Hilde, estalando os dedos com apreensão. Quanto mais dia se passava, pior a situação ficava. -Como vamos impedir o fim do mundo se não há meio de impedir isso?

-Não há como destruir o demônio com uma arma mortal. - falou Noin em um tom tão calmo que surpreendeu quem não a conhecia intensamente, como Hilde e Zechs. -Mas com um feitiço de invocação, poderemos ter uma arma imortal. - Noin caminhou, parando em frente a Duo. -Precisamos da deathscythe, Duo. - pediu, estendendo uma mão para ele. Duo foi até o armário que ficava a um canto da biblioteca e o abriu, tirando a sua estimada foice de dentro dele e a entregando a sentinela.

O sinal da aula tocou e cada um olhou para o outro, com se perguntando o que fazer. As coisas não eram tão simples como antigamente, e a perspectiva de que daqui a uma semana tudo poderia continuar como estava ou não existir mais, era uma idéia assustadora.

-Melhor vocês irem. – Treize falou, notando a hesitação dos jovens. Sem saída, Duo, Trowa, Quatre e Relena saíram da biblioteca a caminho da aula. No entanto, na metade do percurso, Duo parou o amigo mago, fazendo os outros pararem também. Com um aceno de cabeça o jovem de trança indicou que era para os outros irem na frente, que logo eles dois o acompanhariam.

-Quatre. – disse o americano em um sussurro. –Você viu aquilo que eu pedi? – o tom dele era preocupado e ao mesmo tempo esperançoso. O loiro deu um pequeno sorriso para o amigo.

-Vi sim. Melhor avisar ao pessoal do orfanato para começar a arrumar as caixas. Amanhã pela tarde o caminhão e o ônibus estarão passando por lá para levar seus moradores para o novo orfanato da Fundação Winner, em Los Angeles. – respondeu e Duo abriu um grande sorriso, soltando um suspiro de alívio. Desde que soube do possível fim do mundo, ele tinha recorrido a Quatre para poder arrumar um modo de tirar a sua família da cidade. O problema era que remover vinte cinco crianças para uma nova moradia não era fácil. Ainda mais quando não se tinha verba suficiente para isso. E por mais que não gostasse de apelar para a influência que o amigo loiro tinha, dessa vez ele teve que pisar em seu orgulho para um bem maior. A parte de serviços sociais da Fundação Winner, criada pela avó de Quatre, veio a calhar nesse momento.

-Quatre… - começou, com a voz entalada na garganta. Nunca pensou que alguém faria tanto por ele um dia. O jovem árabe apenas sorriu, sabendo o que o amigo queria dizer.

-Não há de quê. – e ambos foram para as suas classes.


Os olhos verdes observavam com interesse os carros que passavam pelas ruas, muitos carregando várias coisas, outros acompanhando pequenos caminhões de mudança. Era um fato. Apesar das pessoas não saberem direito o que estava acontecendo com a cidade, elas sentiam que o perigo estava próximo. Sunnydale estava começando a se tornar uma cidade fantasma. Até mesmo os demônios estavam fugindo dela. Ficavam para trás apenas as criaturas da noite que gostavam, na boa e velha gíria, de ver o "circo pegar fogo". E por falar em circo. Seus olhos se voltaram para a enorme tenda colorida que ficava em um grande campo aberto no final da avenida principal. Esse campo havia sido cedido pelo prefeito há tempos atrás quando o circo havia chegado na cidade. Entrou na área da tenda e percebeu uma estranha correria a sua volta.

-O que está acontecendo? – perguntou com a sua habitual voz monocórdia. O jovem que havia parado para lhe responder parecia aliviado em vê-lo.

-Trowa! Que bom que você voltou. Os animais estão agitados. Um dos tigres quase arrancou o braço do veterinário. Não sabemos o que fazer. – falou o rapaz e Trowa arqueou uma sobrancelha, indo para a sessão onde ficavam os animais. Aproximou-se da jaula do tigre e esse rosnou ferozmente para ele. Com a postura firme, se abaixou em frente às grades e olhou firmemente nos olhos do animal. Depois de alguns minutos com um olhando nos olhos do outro, o tigre finalmente se acalmou e Trowa deu um pequeno sorriso, estendendo uma mão para acariciar atrás da orelha da fera.

-Você também sente, não sente meu amigo? – murmurou para o animal, que parecia compreendê-lo perfeitamente.

-Trowa? – a voz suave de Catherine soou atrás do rapaz, que olhou por cima do ombro para ver a irmã parada atrás dele.

-Algum problema? – perguntou o moreno, notando que a jovem de cabelos ruivos parecia hesitar em alguma coisa.

-Estamos partindo, irmão. – disse por fim e o acrobata se levantou, olhando intensamente nos olhos da mulher que além de ter sido uma irmã, foi como uma mãe para ele. Cuidando dele por todo esse tempo. –As pessoas da cidade estão indo embora, posso sentir algo estranho no ar. Os animais também estão sentindo. Você já deve ter ficado sabendo que ele quase arrancou o braço do veterinário. – falou, indicando com a cabeça o tigre atrás do rapaz. –Não dá para ficar mais tempo aqui. Então… - hesitou mais ainda, sabendo que iria doer perguntar aquilo. Percebia o perigo que estava surgindo na cidade. Sunnydale era estranha e ela sabia disso, desde o dia em que colocou os pés aqui. Mas a trupe precisava parar por um tempo pois, além de Trowa, havia outros jovens no circo que precisavam manter seus estudos ininterruptos por um tempo. Mas ela sentia que era hora de baixar a lona e irem embora, como os outros.

-Se você quer saber se eu vou ficar ou vou partir… - parou, virando-se para a jaula e segurando as grades com força. -… eu vou ficar, Catherine. – a ruiva sentiu o coração apertar. Claro que ele iria ficar, não deixaria seus amigos para trás. Catherine não era idiota. Não era lenta no raciocínio. Se fosse, não estaria na direção do circo por tanto tempo. Além do fato que já vira, uma vez quando estava voltando para casa à noite, os hábitos noturnos que seu irmão e os amigos dele tinham. Ficou apavorada quando viu, pensou em confrontar Trowa sobre isso, baixar a lona e partir da cidade imediatamente, para poder garantir a segurança do rapaz. Mas depois percebeu que não tinha esse direito sobre a vida do garoto. Ele era maduro e auto suficiente para poder se cuidar sozinho. E agora que o perigo estava ficando maior, com certeza ele não deixaria nem os amigos, e muito menos o namorado, para trás em uma situação difícil como essa.

-Eu já imaginava isso. Vai ficar para ajudar, não é mesmo? – Trowa não se abalou diante da revelação. Desconfiava que Catherine já soubesse a verdade, pois era uma mulher bem inteligente. E agradecia por ela ter dado espaço a ele, esperando pacientemente que ele lhe dissesse tudo. Mas a verdade agora era muito mais chocante do que a de algum tempo atrás, e a aceitação poderia ser mais dolorosa.

-Vou.

-Eu também ficaria Trowa… - falou com o coração apertado por deixar o único membro da sua família para trás. Certo de que o circo todo era uma família, mas Trowa era o seu irmão de sangue, seu irmão caçula.

-Mas você tem a missão de levar o circo e a nossa família em segurança para fora da cidade. – a mulher se aproximou dele, o abraçando por trás, sempre se surpreendendo em como ele tinha crescido e amadurecido em todos os anos em que esteve nessa cidade. Não estava mais olhando para aquele garotinho quê, quando caía da corda bamba nunca chorava, apenas se levantava determinado e tentava de novo, até conseguir. Certo que a teimosia e determinação ainda estavam lá, assim como a lealdade e o amor que tinha pelos amigos. Pensando desse modo seu coração se aquietava um pouco. Tinha certeza de que ele ficaria bem.

-Apenas se cuide irmão. Estamos indo para Glendale. Espero te encontrar lá.

-E você vai. – disse, virando-se e dando um pequeno sorriso para ela. Catherine sorriu de volta e deu um beijo na testa dele, um beijo de despedida. Mas que não dizia adeus, mas sim um até logo.


Mal Duo abriu a porta do orfanato e foi derrubado no chão por quatro bolas de energia que eram as quatro crianças. Rostinhos sorridentes viraram-se para ele, entusiasmadas por terem conseguido derrubar o irmão mais velho. Duo sorriu de volta diante da alegria delas.

-Não deixe que ele pegue a gente, Duo! – Julia gritou, dando uma gostosa gargalhada. Duo ainda se lembrava de quando e menina foi trazida ao orfanato. Tinha apenas três anos na época, os pais tinham morrido em um acidente e ela foi à única sobrevivente. Todos cuidaram dela, tentando afastar o trauma que foi ter visto os pais morrerem, e em pouco tempo a criança retraída se tornou uma bola de energia difícil de ser contida.

-Ele quem? – perguntou com uma sobrancelha arqueada, conseguindo se livrar das crianças e se levantar. Rapidamente os pequenos se esconderam atrás das pernas de Duo, quando alguém coberto por um dos cobertores do orfanato apareceu na sala, fazendo grunhidos e outros sons estranhos.

-O monstro do armário! – David gritou atrás das pernas de Duo, se encolhendo mais e buscando a proteção do jovem. Porém, entre os gritos de terror que as crianças estavam dando também haviam risadas abafadas.

-Não temam crianças! Duo irá terminar com esse monstro para vocês! – e caminhou até a pessoa coberta, a derrubando com a agilidade que todo caçador tinha. Logo os grunhidos que o suposto monstro estava dando se tornaram grandes risadas.

-Okay, eu me rendo! Eu me rendo. Pára Duo! – Louis falou entre uma gargalhada e outra, enquanto o jovem de trança o atacava com cócegas. Finalmente ele parou e o garoto mais novo pôde respirar um pouco.

-Ah! Duo venceu o monstro! Duo é o nosso herói! – gritaram as crianças, deliciadas, e a expressão sorridente de Duo esmoreceu um pouco. Herói… quem sabe. Se ele conseguisse vencer o monstro de verdade que estava vindo e manter o mundo intacto para essas mesmas crianças crescerem, ele seria um herói. Um herói anônimo. Mas isso não importava, desde que as pessoas que ele amava estivessem bem, ele estaria bem. Louis viu a expressão na face do amigo e o seu sorriso também enfraqueceu um pouco.

-Duo? O que foi? – sussurrou. Sentia que havia grandes problemas vindo. Duo andava agitado há dias. Com certeza alguma coisa relacionada à missão do caçador.

-Junte os garotos mais velhos, peguem caixas e outras coisas que puderem encontrar no sótão e comecem a arrumas itens e pertences. Estamos nos mudando. – falou em um tom baixo para as crianças pequenas não ouvirem. –Onde estão meu tio e Irmã Helen?

-Na sala de jantar resolvendo algumas contas.

-Eu vou falar com eles. – disse e se levantou, ajudando Louis a se levantar também. –Monstro do armário derrotado! – Duo falou com um tom entusiasmado para as crianças que ainda os observava. –Agora o super Duo tem que sair em novas missões para poder salvar os fracos oprimidos. – disse sorridente, fazendo poses esquisitas e sumindo rapidamente por uma das portas que tinha na sala. Caminhou por um curto corredor até onde ficava a sala de jantar onde todos se reuniam durante as refeições. Como Louis havia dito, Padre Maxwell e Irmã Helen estavam lá, debruçados em contas. Não que o orfanato fosse pobre, graças à ajuda da Fundação Winner que sempre organizava eventos para manter o orfanato funcionando, e a Igreja também ajudava, mas mesmo assim eles tinham que economizar um pouco pois crianças geravam um grande gasto. Mas mesmo assim dava para abrigar todos com um certo conforto.

-Duo! Você já voltou! – Helen abriu um sorriso para o menino. –Está com fome, querido? As meninas fizeram uns biscoitos para o lanche. Se você quiser algum antes de o lanche ser servido…

-Tio, Irmã… - o rapaz puxou uma cadeira e sentou-se perto dos dois adultos, que o olharam estranhamente devido à seriedade no tom de voz dele. –Já falei com Quatre e ele me disse que está tudo arrumado. A Fundação Winner conseguiu uma casa em Los Angeles, onde poderemos fazer a nova sede do orfanato St. James.

-Como, do que você está falando meu filho? – perguntou Padre Maxwell. Como ele não estava sabendo dessa súbita mudança? A Igreja não o tinha avisado de que o orfanato iria ser re-alocado para Los Angeles.

-Não foi uma decisão da Igreja, tio. – falou o rapaz vendo a expressão do Padre. –Foi uma decisão minha.

-Duo. – Irmã Helen disse em um tom de repreensão. –Não pode tomar essas decisões. O orfanato é uma instituição e como tal leva tempo e burocracia para organizar uma mudança dessas.

-Tempo é o que não temos, Irmã. Vocês não são tolos, perceberam que as pessoas estão indo embora da cidade. O pai de Quatre falou com o prefeito, está tentando convencê-lo de evacuar a cidade sem dar muitos detalhes sobre o motivo disso, mas as pessoas já pressentem o perigo. A sra. Winner nos ajudou muito arrumando tudo para a mudança do orfanato. Amanhã à tarde o caminhão e o ônibus de mudança estarão aqui para poder levá-los para o seu novo lar…

-E você vai ficar, óbvio. – não era uma pergunta, era uma afirmação.

-Sim, Irmã, eu fico. A profecia que Heero trouxe irá se realizar em uma semana. Não posso deixar isso acontecer. É o meu dever, minha missão. Eu sou o escolhido. –Irmã Helen e Padre Maxwell trocaram olhares, no fundo já sabiam que um dia isso iria acontecer, que um mal maior iria aparecer e Duo teria que derrotá-lo. Essa era a implicação toda de existir um caçador homem. E não foram poucas as vezes que eles tiveram sentimentos egoístas e desejaram que fosse outro, e não esse menino, que fosse o escolhido.

-Helen, você acompanha as crianças até o novo orfanato. – a mulher arregalou um pouco os olhos e iria perguntar o porquê disso, quando viu a expressão no rosto do Padre e rapidamente fechou a boca.

-Sim senhor. – falou resignada.

-Não! – Duo disse firme. –O senhor irá com elas.

-Eu irei ficar. Ficar para ajudar. Jurei no túmulo do meu irmão que iria cuidar de você, e não vou desfazer a minha promessa.

-Com todo o respeito, Padre, mas que ajuda o senhor pode oferecer? Não terá forças para poder lutar contra os demônios que sairão da boca do inferno.

-Por que não? Se os outros lutam, eu não posso? Passei metade da minha vida servido a Deus, meu filho, rezando por um mundo melhor, rezando para que a cada noite que você saísse em patrulha voltasse em segurança. Apenas rezando, sem poder fazer nada. Agora eu farei alguma coisa, o senhor gostando ou não disso. E não se atreva a levantar a voz para mim jovenzinho. Eu ainda sou seu tio, seu guardião, e o você me deve respeito. – falou em um tom firme e que encerrava a discussão. Duo apenas soltou um suspiro, com um sorriso no canto da boca. Seu tio poderia ser Padre, mas ainda sim tinha o temperamento e a teimosia dos Maxwell.

-Vou avisar as crianças sobre a mudança e ajudá-las a arrumarem as coisas. – disse Helen, levantando-se da mesa e saindo da sala. Duo e o tio ainda ficaram um bom tempo olhando um para o outro, mergulhados no silêncio, até que o jovem caçador fez a pergunta que sempre fazia quando chegava em casa:

-O que tem para comer? To roxo de fome. – disse e o Padre riu, afagando a franja castanha afetuosamente. E que Deus os protegessem daqui para frente.


Poderia jurar que estavam quase dentro de um filme de faroeste, com o feno rolando e o vento assobiando por entre as portas e janelas. O Colégio Sunnydale estava quase vazio, poucos eram os alunos que ainda persistiam em ficar, e poucos eram os professores que ainda estavam na cidade. Em três dias Sunnydale tinha ficado com apenas um terço da sua população original, e parecia que a cada dia o número de pessoas estava diminuindo. Talvez eles realmente tivessem levado a sério o anúncio do prefeito. Graças a Deus Sr. Winner tinha uma excelente diplomacia e convenceu o governante a evacuar a cidade, sob a falsa desculpa de que ela estava propensa a um desastre natural nos próximos dias.

-Nunca pensei que diria isso… mas onde estão os professores? Eu vim aqui para estudar. – disse Duo, enquanto esvaziava o seu armário e olhava a sua volta.

-Soube que muitos já foram embora da cidade, assim que o prefeito deu o alerta. As pessoas que ficaram ainda estão ajeitando as coisas para partir. – Relena parou na frente do trio de jovens, acompanhada por Hilde e Sally.

-E você, o que ainda está fazendo aqui? – perguntou Trowa, erguendo uma sobrancelha. A jovem deu um sorriso de volta para ele.

-Não sei, me chamem de maluca, mas despachei os meus pais e resolvi ficar. – um livro caiu da mão de Duo, fazendo um barulho enorme no corredor quase vazio e atraindo a atenção momentânea dos poucos que estavam lá. –Resolvi ajudar. – disse, dando de ombros e o jovem caçador arregalou os olhos.

-Ajudar? Como? Quero dizer, não me leve a mal, princesa, mas você não consegue nem empunhar uma arma. – falou o rapaz, recolhendo o seu livro do chão e o enfiando dentro da bolsa.

-Ela está melhorando. Estou ensinando uns truques a ela. – disse Hilde com um sorriso, passando um braço sobre os ombros de Relena. Duo deu um sorriso extremamente malicioso para a amiga e arqueou as sobrancelhas, de maneira divertida.

-Sei… - respondeu, dando as costas para as duas e terminando de esvaziar o armário. Fechou a porta e ficou olhando para ela com intensidade, pensando nas coisas que tinham acontecido nos últimos dois dias. Agora era somente ele, o seu tio e Sally no orfanato. Trowa também havia ido para lá um tempo depois, assim como Quatre. O lugar pertencia à Igreja, era seguro e mantinha os demônios afastados, ao menos os vampiros e alguns outros demônios. Heero não podia visitá-lo lá, mas sempre havia outros lugares para os encontros. E mesmo que eles cinco estivessem na casa, ainda sim ela parecia vazia sem as crianças, mais vazia que a cidade inteira. –Você ficou sozinha em casa, Relena? – perguntou a jovem, que corou um pouco e abaixou a cabeça, achando seus sapatos perfeitamente polidos à coisa mais interessante do mundo.

-Ela está morando comigo e Noin. – Hilde respondeu. –Lá na pensão.

-Talvez fosse bom vocês também irem para o orfanato. É mais seguro. Soube que alguns demônios saíram da cidade, mas com aqueles vampiros saindo da Boca do Inferno, nenhum lugar e seguro.

-Duo tem razão. – falou Quatre.

-E Heero? Ele também vai para lá? – perguntou Relena, curiosa e um pouco temerosa, e Hilde riu ao seu lado.

-Ela ainda está um pouco surpresa por saber que Yuy é um vampiro.

-Ele não pode pisar nos domínios do orfanato… Mas eu pensei que estivesse atraída por ele. – Duo franziu as sobrancelhas e a jovem deu um sorriso escarninho.

-Olha, se fosse em outra situação eu até que tentaria tirá-lo de você, Maxwell. Mas mortos-vivos não fazem o meu estilo. – jogou os cabelos claros por cima do ombro. -Sem contar que você me quebraria ao meio, com certeza, por tocar no seu precioso defunto.

-Hei! Não chame o Hee de defunto! – resmungou. –Só eu posso chamá-lo assim. – disse com um sorriso malicioso.

-Fetiche por acaso? Pensei que você só o chamava de… Ai Hee… mais… por favor… - e Relena começou a fazer barulhos de gemidos e murmúrios que arrancaram risadas de quem estava em volta. A conhecendo melhor, a garota não parecia ser tão chata quanto aparentava. Claro que ela ainda tinha o nariz empinado e era um pouco arrogante, mas agora entendiam porque algumas pessoas resolviam ser amigas dela. Ela sabia ser madura quando queria. Deveria ser o resultado de ser a filha de um diplomata. Tinha várias faces escondidas e para cada situação mostrava uma das suas máscaras.

-Também… - Duo deu um passo à frente, inclinando-se para sussurrar algo e ela. -… mas logo você deve entrar nesse time. Soube que Hilde sabe fazer maravilhas com a língua. – e afastou-se ao mesmo tempo em que a loira gritou:

-MAXWELL! – e começou a perseguí-lo corredor a baixo, gritando insultos para ele.

-Bom saber que certas coisas ainda não mudam nessa escola, apesar de tudo. – os adolescentes que ficaram pararam de rir quando ouviram a voz melodiosa atrás deles.

-Lady Une. – Quatre cumprimentou a diretora, que sorriu afetuosamente para os seus alunos. –Do que fala? – perguntou, percebendo nas entrelinhas que a mulher sabia mais do que deixava transparecer. Afinal, era sempre ela que arrumava histórias mirabolantes para a imprensa local, cada vez que algo de estranho acontecia naquele colégio. Com certeza ela sabia mais do que ninguém o que estava acontecendo naquela cidade.

-Eu sei, senhor Winner, se é isso o que você quer saber. O senhor Khrushrenada me deixou, recentemente, a par de tudo. Era algo que eu esperava que acontecesse, mas que não podia evitar, infelizmente. Essa missão não é mais minha, mas sim de vocês. – murmurou mais para si do que para os outros. –Mas estarei aqui para ajudar, no que for preciso. – não entenderam quase nada do que ela tinha dito, até que Sally soltou uma exclamação surpresa, apontando para mulher com os olhos claros largos em choque.

-Ah! Foi você que parou a revolta dos vampiros, que aconteceu em Sunnydale no final dos anos oitenta! – a jovem apontou para a diretora, que apenas deu um pequeno sorriso para ela. –Mas nos registros do Conselho consta que você está morta.

-Em coma, por uns cinco anos, seria a palavra mais correta. Quando acordei, a cidade estava em ordem de novo, havia uma nova caçadora, e eu resolvi seguir com a minha vida. Mas não pude me afastar muito daqui sabendo o que se esconde aqui embaixo. No fim, voltei para cá para ver se conseguia ficar de olho na Boca do Inferno, mas parece que algo escapou a minha vigilância, como Treize me disse há alguns dias atrás.

-Você foi uma caçadora? Demais! – Hilde deu um sorriso. –Ainda tem seus poderes?

-Isso é algo do qual a gente nasce e morre com ele, srta. Schbeiker. Apenas não estou mais na idade de ficar caçando demônios por aí.

-Com certeza a senhora ajudou a evacuar a cidade, depois do que andou acontecendo pelos corredores da escola. – Trowa falou em seu tom calmo de voz.

-Um aluno entrando em combustão espontânea não é algo fácil de se ocultar. Digo que a minha opinião como pedagoga ajudou a influenciar a decisão do prefeito. Mas mesmo que Sunnydale esteja se tornando uma cidade fantasma, ainda sim restaram alguns professores, e as aulas continuam em seu ritmo normal até segunda ordem. Por isso senhores Barton e Winner, a sineta já tocou, melhor irem para as suas classes. – ordenou, dando as costas para eles e voltando para a diretoria. Os outros deram de ombros, olhando-se entre si, ainda surpresos por essa revelação. Lady Une uma ex-caçadora. Se bem que caçadores era o que eles mais precisavam no momento, porque o relógio estava correndo e a cada hora se aproximava o dia do fim do mundo.