Disclaimer: Os personagens de Saint Seiya não me pertencem, minha utilização deles não tem fins lucrativos de espécie alguma, bem como a citação de nomes de locações e estabelecimentos reais.

Nota da autora: Mais um! E o penúltimo! Ah, ainda muito feliz com a recepção! Obrigada a todos que colaboraram, comentaram e participaram dessa fic!


Capítulo III

Reviravoltas

Era por volta de onze horas quando chegou à Hímeros. Sentou-se na mesma mesa, pediu o mesmo drinque e esperou por Miro. O loiro desceu as escadas, pálido como um fantasma, a longa franja loira pendia sobre o lado ferido do rosto, disfarçando as marcas. Não se deu ao trabalho de trocar palavras com Camus, apenas segurou-lhe o pulso e o arrastou até seu quarto. Quando entraram, Miro passou a chave na porta.

– Foi você, não foi? – inquiriu-lhe, os olhos claros cheios de lágrimas.

– Eu o quê, Miro?

– Você matou ele!

– Ele quem?

– Não se faça de idiota! Você matou o Zimmerman! O senador! Olhe! – atirou o jornal na cara de Camus. Leu alguns pedaços da notícia: O senador Ralph Engleton Zimmerman foi encontrado morto nos fundos da casa noturna Tula's, na segunda avenida, degolado.

– Ora, Miro...

– Foi você! Você! – Miro soluçava como na noite anterior, seu belo rosto desfigurado pelas lágrimas. – Meu Deus, Camus! Você o matou! Por minha causa!

Camus irritou-se repentinamente. E lembrou-se que tinha ido lá aquela noite para matá-lo também.

– Está bem, Miro. Fui eu. Eu o matei, está bem? Ele mereceu. Agora não vai mais bater em ninguém. Quer que eu vá embora? – as mãos deslizaram pela sua calça de couro. Sob ela, a pistola que levara para matar Miro.

Miro, para sua enorme surpresa, atirou-se em seus braços. Sentiu suas forças sumirem quando o hálito morno do loiro, misturado às lágrimas dele, arrepiaram seu pescoço.

– Ah, Camus! Por quê? Por que fez isso? Esse homem é poderoso, poderoso demais! O que vai acontecer com você? E comigo?

Ele estava preocupado com ele. Diabos! Por que, Miro? Por que... por que você tem que ser tão perfeito?

Desistiu de lutar, acariciando as costas tensas do loiro.

– Ninguém vai investigar, Miro. Essa gente não pode se envolver em escândalos. Ele foi achado atrás de uma boate. A mulher dele é filha de um pastor luterano. Eles vão querer sigilo.

– Mas Camus...

– Não se preocupe, hein? – enxugou o rosto loiro com as mangas da sua camisa. – Está tudo bem, tudo bem... ninguém mais vai te machucar.

Só aí Camus notou a imensa ironia do que estava dizendo.

– Camus, você fez isso... fez isso por mim?

Afastou os cachos loiros do rosto molhado de lágrimas.

– Fiz por mim. Não ia me sentir bem sabendo que o desgraçado que te machucou andava por aí impune.

– Camus... – Miro o abraçou ternamente. – Eu te amo.

Camus sentiu uma moleza tão forte em suas pernas que achou que fosse cair. Teria caído, se não fosse por Miro tê-lo segurado. O jovem loiro levou-o até a cama e lá ficaram. Fizeram amor até o amanhecer, deixando desolados os fregueses habituais que esperaram em vão para ter Miro.

A manhã chegou e Camus despediu-se secamente de Miro. O loiro tentou conversar, ou mantê-lo um pouco mais: ofereceu-se para que tomassem café juntos, mas Camus recusou. Perguntou se viria de noite, mas ele não lhe deu certeza. Sentia-se miserável: não devia ter dito ao cliente que o amava. Mesmo que o cliente fosse Camus, a quem ele de fato amava. Achou que tinha feito uma tolice, mas antes que Camus deixasse o quarto, ia tirar a prova dos noves.

– Camus, você ficou diferente depois que eu disse que te amava. Era uma confissão, não uma cobrança, entende?

O ruivo parou na porta. Olhou para Miro, sentado sobre a cama e coberto com lençóis ainda.

– Se der eu volto mais tarde, Miro.

Bateu a porta atrás de si, mas antes de alcançar as escadas, ouviu os soluços de Miro que chorava no quarto.

— # —

Assim que entrou no precário quarto de hotel que ocupava, Camus abandonou seu corpo no sofá e chorou, chorou por longas horas. Estava perdido! Perdido!

Assinara sua sentença de morte. O código dos assassinos profissionais era muito rígido. Um homem sem honra não podia trabalhar. Não entregar o trabalho já era uma infração grave, mas ocultar o alvo era inadmissível. Seria caçado até a morte.

Já estava certo – como nunca estivera certo de nada na vida antes – de que amava Miro desesperadamente. Não o abandonaria jamais. Sabia também o que isso queria dizer: ele e o rapaz seriam caçados. O homem que queria o serviço pagaria outro profissional para fazê-lo e, se este profissional tivesse honra, parte da sua obrigação era de entregar, além da vítima combinada, o assassino fujão.

Ele mesmo, Camus, já o fizera várias vezes. Quase sempre os assassinos liberavam suas vítimas por arranjos financeiros: faziam acordos e lucravam duas vezes. Algumas vezes, por amor, assassinos fugiam com suas presumidas vítimas. Ele nunca pensara duas vezes antes de encomendar esses traidores da profissão ao inferno. E agora, ele mesmo estava naquela situação. Não temia por si – o que era a morte para alguém que ganhava seu pão com ela? Tinha medo por Miro. Se morresse, o que seria dele? O homem que o queria morto havia pago muito bem por isso. Não ia desistir.

Proteger Miro significava tirá-lo de circulação o mais rápido possível. O mandante sabia tudo sobre ele: onde vivia, quem eram seus amigos, seus hábitos. Era preciso desmontar a vida de Miro e reconstruí-la, e Camus nem tinha certeza de que o rapaz desejaria tantas mudanças.

Precisava tentar. Por bem. Ou mesmo por mal. Porque ainda que fosse à força, salvaria a vida de Miro. Claro, isso implicaria uma mudança radical na sua vida também. Seattle definitivamente teria que ficar para trás. Um assassino que desrespeitava os decanos da sua profissão tinha de ser eliminado e ele sabia que muitos além dele levavam essa regra muito a sério.

Assustou-se quando olhou para o relógio de ouro que repousava sobre a cama e verificou que já eram dez da noite. Passara mais de doze horas meditando e chorando. E agora tinha de agir. Rápido. Tinha menos de setenta e duas horas antes que seu cliente se desse conta de que o serviço não seria feito. E precisava estar com Miro a salvo antes disso. Vestiu-se rápido e foi para a Hímeros.

— # —

Miro desceu as escadas lívido. Deu um beijo na boca do homem que se despedia dele e deixava algumas notas de dólares por dentro da calça justa do garoto de programa que, a julgar pela aparência descansada do cliente, havia lhe dado boas horas de prazer.

Camus – a quem nunca tinha ocorrido a idéia de ter ciúmes dos clientes de Miro – sentiu o sangue fugir do seu rosto ao ver a cena. Esperou que Miro viesse falar com ele. O loiro o evitou discretamente, mas dessa vez Camus não estava disposto a brincadeiras. Levantou-se, puxou Miro pelo braço e o carregou até o quarto ao qual já estava tão acostumado.

– O que estava fazendo, Miro? Me ignorando? – perguntou, só então reparando sob a luz mais forte do quarto o quanto os olhos do jovem loiro estavam inchados. "A criança deve ter chorado mais do que eu..." pensou Camus, enternecido pela idéia.

– Pensei que você não viesse mais.

– Por que pensou isso?

– Pelo jeito que você me tratou de manhã.

– Miro, escute. Você trabalhava na rua antes de vir para cá, não trabalhava?

O loiro ficou desconcertado pela pergunta tão distante do tópico que esperava discutir.

– Eu já disse que sim.

– E você se lembra, alguma vez, de ter tido problemas com algum cliente? Alguém que você tenha desagradado demais, ou que você tenha... Não sei... Roubado... Não estou julgando, entendeu? Mas alguém, alguém que tenha razões para... Veja bem... Ter raiva de você? Alguém que pudesse querer se vingar?

Miro virou as costas para Camus, ajeitando os perfumes da sua penteadeira nervosamente. Não sabia o porquê do interrogatório repentino de Camus, mas sabia algo que aprendeu na rua: não se diz tanta coisa assim para alguém em que não se tem plena confiança. Aliás: não se diz coisas assim para ninguém: só para Deus.

– Miro, eu preciso saber disso!

O garoto de programa continuou silencioso, arrumando seus vidros de perfume, potes de creme e caixas de maquiagem.

– Por que quer saber? – perguntou por fim, sem conseguir disfarçar completamente a tensão em sua voz.

– Porque querem te matar, Miro.

Ele virou-se abruptamente, com os frascos entre os braços.

– Como pode saber de uma coisa dessas? – perguntou tentando forçar uma certa ironia, mas soava apenas desesperado. Já não conseguia mentir na presença de Camus e isso o assustava.

Camus era um homem muito, muito discreto, mas também não era nada, nada sutil.

– Porque me pagaram para matar você. E pagaram bem.

Terrificado, Miro deixou os vidros caírem no chão e apoiou-se na penteadeira para não cair. Camus continuou sentado na cama, impassível.

– Vamos pular a parte do espetáculo, sim, Miro? Se eu quisesse mesmo matá-lo eu o teria estrangulado com sua calça jeans na primeira noite, não é isso?

– O que quer de mim? – balbuciou, sentando-se no chão, próximo de Camus.

– No momento, eu quero salvar sua vida. Mas eu preciso saber quem teria motivos para querer você morto. O mandante me pagou três vezes mais do que eu normalmente cobraria por um crime assim. Ou seja: você tem problemas, Miro.

– Eu... Eu... Eu não fiz nada... Nada de errado... Não que eu me lembre. Ninguém nunca... Eu não sei... – ele começou a chorar. – Quem ia se dar ao trabalho de me matar?

– Alguém da família?

– Não! Eu... Sou grego. Vim para cá com meus pais e depois... Depois eles voltaram e eu fiquei. Mas... Meus pais não têm o menor interesse em mim.

– Faça um esforço. Saber o mandante é meio caminho andado.

– Eu não sei! – berrou o loiro, enfiando a cabeça dourada entre os joelhos dobrados. – Eu não sei! Eu juro que nunca fiz nada!

– Está bem. Mas uma coisa, filho, é certa: vai ter que sair daqui.

– O que quer dizer?

– O mandante sabe onde você mora, conhece sua rotina, seus amigos, seus horários de trabalho. Ele vai te encomendar para outro e passar essas informações para o próximo assassino. Você tem que sair de circulação para eles não te acharem.

– Mas... Para onde eu vou? Não conheço ninguém! Não tenho amigos fora daqui! Não tenho dinheiro!

Camus deu um muxoxo impaciente. Como Miro podia supor que ele não o socorreria?

– Eu cuido disso. Amanhã esteja com todas as suas coisas arrumadas e me encontre no Café, no Lux. Pegue uma mochila pequena, não ponha muita coisa. Uma muda de roupa ou duas, seus documentos, um vidro de perfume que você não tenha quebrado hoje... Ninguém pode desconfiar de que você está saindo daqui para valer, entendeu? Eles têm que achar que você está só indo tomar um café e nada mais. Quando derem por sua falta, será tarde.

– Mas e... E as minhas coisas?

– Miro! Eu estou tentando evitar que te matem e você está preocupado com suas coisas! Ora, fique com elas aqui então e boa sorte! – levantou-se como quem ia sair do quarto, mas Miro agarrou-se às pernas dele.

Lembrou-se de sua mãe, moribunda, agarrada nele, pedindo, suplicando que ele se ajoelhasse aos pés da Virgem Maria. Ele não quis. Mas teria de bom grado se ajoelhado por Miro. Miro... Santo. Nenhum deus salvou sua alma, mas Miro o fez. Estava salvo. Por ele. O rosto banhado em lágrimas daquele garoto de programa o redimira de todos os seus pecados.

– Camus... fique...

– Miro, eu...

– Fique! Eu... eu sei que você vai ficar chateado, mas eu já não me importo... eu não me importo! Eu amo você! Amo você! Tenho nojo dos outros homens, eu não quero ter que me deitar com mais ninguém. Fique comigo essa noite. A noite toda... Por favor...

– Se levante, Miro.

O loiro se levantou devagar e parou diante de Camus. Os olhos úmidos, o rosto marcado, os cabelos revoltos. Camus ajeitou com toques suaves os cachos loiros, secou os olhos de Miro com as pontas dos dedos, beijou a ponta do nariz do grego, fazendo-o sorrir docemente.

– Eu prometo, Miro: enquanto eu viver, ninguém nunca mais vai te fazer mal.

O loiro mansamente o guiou até a cama.

Amaram-se até a exaustão, sem pressa, calma e ternamente. Dormiram abraçados.

— # —

– Estou indo, Miro.

– Espere! Saia pelos fundos.

– Fundos?

– Tem uma saída secreta no banheiro. Você sabe: mais de uma vez uma mulher entrou aqui de Bíblia na mão procurando o marido! Saga mandou colocar uma passagem dessa em todas as suítes da Hímeros.

Camus observava, com enlevo, Miro engajado em fechar as suas calças, recolocar seu cinto e ajeitar-lhe a camisa. As mãos longas roçavam no seu umbigo.

– Já está bem, Miro.

– Espera, Camus, deixa eu ajeitar a sua roupa... Para você não sair amassado daqui.

O garoto de programa terminou o trabalho e levou Camus até a saída secreta. Ele já estava saindo quando Miro o trouxe, sob protestos, de volta para o quarto.

– Quero te dar uma coisa, Camus. Mas você não pode rir. É sério.

– Oh, filho! Não tenho tempo pra isso, anda logo com a tal coisa...

– Toma. – colocou nas mãos do ruivo uma imagem de uma santa. – É a Virgem. Ela vai te proteger, Camus. Não vai deixar nada de mal acontecer com você.

– Miro... – olhou para o papel ligeiramente contrariado. – Não sou católico...

– Mas eu sou! E sou devoto da Virgem Maria. Leva com você. Eu vou rezar para ela hoje e acender uma vela por nós dois. A Virgem é mãe, Camus. Ela não vai desamparar a gente. Não vai...

Viu a devoção sincera nos olhos daquele menino loiro. Colocou a imagem da santa dentro do bolso do casaco. Beijou-lhe a boca macia e saiu.

Agora, mais do que nunca, precisava salvar Miro. Nada importava: mataria, roubaria, estupraria – faria tudo por Miro. Tudo.

— # —

Eram cinco horas da tarde quando Camus recebeu Miro, com uma mochilinha encardida nas costas. Ele estava extremamente simples, camiseta preta, cabelos loiros soltos, jeans despojado e as Havaianas azuis. Não devia mesmo ter carregado muitos dos seus pertences. Tinha uma aparência terrível, de quem estava cansado, mal dormido e muito indisposto.

– Miro, você se atrasou.

– Eu sei, me desculpe. Para onde vamos?

– Você vai ficar em um hotel. O King's Inn. É suficientemente distante da Hímeros. E é provisório...

Uma música começou a vir de dentro do café, mas não era o habitual jazz de fim de tarde que a Lux esmerava-se em tocar sempre. Miro começou a cantarolar baixo: "O homem amarelo do samba do morro, do hip hop do Santa Marta, agarraram o loiro na descida da ladeira, malandro da baixada em terra estrangeira..." ( 1 )

– Sabe português, Miro?

– Um pouco. Aldebaran me ensinou. "Homem Amarelo" quer dizer loiro. – ele riu tolamente. – Eu!

– Eu sei.

– Você também fala português, Camus?

– Falo.

Esperou Miro terminar de comer seu brownie de amendoim e beber seu café. Dirigiu com ele até o King's Inn, na Quinta Avenida.

– Você vai ficar aqui. Vamos ter que sair do país. Vou providenciar um passaporte falso para nós. Vai ser melhor, eu não sei que tipo de pessoa está atrás de você, talvez tenha acesso a esse tipo de informação. Vou também abrir uma conta em seu nome e pôr algum dinheiro lá, para nós, no país para onde formos.

– E para onde nós vamos? – perguntou Miro displicentemente, arrumando seus vidros de perfume e as três mudas de roupa que trouxera consigo.

– Ainda não sei. Mas tenho que decidir logo.

– Vou ficar aqui trancado até você decidir? – não era uma pergunta de cobrança, mas Camus ficou pensativo. Olhou para os cachos dourados de Miro. Se fosse um qualquer, ele os cortaria imediatamente e os tingiria de uma cor escura. Seria bem mais fácil disfarçá-lo assim. Mas não. Os cabelos de Miro eram santos como ele. Os cabelos loiros eram como o manto da Virgem – intocáveis. Teria destruído mil mantos de Virgem sem remorsos, picotado o Santo Sudário, mas não se perdoaria se uma única mecha loira daquela se perdesse.

– Vai sim, Miro. É mais seguro. Eu trago comida para você. Tem vídeo cassete, eu busco uns filmes. É por pouco tempo, amanhã eu já deixo tudo resolvido. Depois de amanhã, se tudo der certo, já vamos poder ir embora.

Intrigado, Miro perguntou-lhe, o que não era de fato uma pergunta, mas uma interjeição, como se ele não acreditasse no que sua boca pronunciava:

– E você vai comigo, Camus?

– Miro, mesmo que eu não quisesse, agora teria que ir. Se eu não entreguei a sua cabeça, a minha cabeça vai ter que substituir a sua. Eu também já não posso mais ficar aqui.

O garoto de programa ajoelhou-se de frente para Camus, que permanecia sentado na cama de solteiro pequena do hotel-pousada. Colocou-se entre as pernas do homem ruivo, seu salvador. Beijou-lhe o queixo bem barbeado, molhando a pele firme e bonita com sua língua.

– Camus, eu te amo. Eu sinto muito por tudo.

– Pelo quê? – perguntou Camus, fascinado pelo brilho apaixonado dos olhos azuis claros do seu salvador.

– Pela sua vida. Você está correndo risco por minha causa. Eu... Eu não sei o que faria se... Se alguma coisa acontecesse com você, Camus... Eu não ia me perdoar nunca...

– Miro... Minha vida é você.

— # —

Camus quase não conseguiu sair do quartinho de hotel. O corpo de Miro exercia um poder de grilhões sobre seu espírito. Não podia deixá-lo mais. Só conseguiu desvencilhar-se da sedução do loiro porque, quanto mais rápido tivesse posse dos papéis de que precisava para a viagem, mas rápido ele e Miro estariam seguros para sempre.

Vinha caminhando pela rua quando ouviu a melodia que vinha de uma janela. "Eu não vou gostar de você porque sua cara é bonita. O amor é mais que isso. O amor talvez seja uma música que eu gostei... e botei numa fita. Eu não vou gostar de você porque você acredita. O amor é mais que isso. O amor talvez seja uma coisa que até nem sei se precisa ser dita..." ( 2 )

Era segunda vez no dia que ouvia uma música brasileira. Camus não era religioso e nem místico. Mas achou a coincidência interessante demais para ser ignorada. Nunca imaginaria que Miro pudesse falar português. E ele também falava. O Brasil era uma opção viável para escaparem. Lá seus euros valeriam muito. Ele falava a língua, o clima era bom. Achá-los em um país daquele tamanho era como procurar agulha no palheiro. E ele viveria em paz com Miro. Em paz. Gostou da idéia.

Foi até a 'Alaska Sightseeing Co.', uma agência de viagens na 2410, Terceira Avenida. Encomendou duas passagens para a uma cidadela perdida no mapa. Aracati, Ceará. Avião de Washington até Brasília. De Brasília até Aracati. De lá, algumas horas de ônibus até a praia do Pontal de Maceió.

Os preparativos que Camus esperava serem rápidos acabaram demorando mais. Ele conseguiu comprar uma casa em uma praia de Aracati, por intermédio de um agente. Claro, isso lhe tomou tempo: Camus tinha muitos contatos e não foi difícil arrumar quem lhe fizesse a gentileza; ainda assim, contudo, mesmo os mais rápidos procedimentos burocráticos pareciam uma eternidade para ele. Providenciou os passaportes falsos para ele e Miro, a conta conjunta aberta no Banco do Brasil de Aracati com uma polpuda fortuna para ambos se manterem. As passagens de ônibus reservadas, os vôos domésticos todos programados no Brasil. Tudo certo.

Miro já estava entediado e triste de ficar trancado em hotéis. Camus, preocupado, o levava de um hotel para outro, com medo de que o achassem. Pagara a algumas pessoas para investigar quem eram os mandantes da morte de Miro. Hoje, contudo, carregava um pedaço enorme de torta e uma garrafa de vinho. Tinha boas notícias para Miro. Iam viajar no dia seguinte. Estava perto do hotel quando seu celular tocou.

– Alô? – Camus não conheceu o número.

– Então você pensou que ia me trair e ficar tudo bem?

Arrepiou-se. Conheceu a voz imediatamente. Era o mandante.

– Você...

– Você pensou que era esperto, não é? Você é um homem morto, Camus! Você e Miro. Miro está morto, seu desgraçado! Você pode tentar fugir com ele, mas eu vou achar vocês dois! Vou encontrar vocês dois! Antes que você perceba já vou estar com a cabeça de Miro em uma bandeja... e a sua logo depois da dele!

Camus bateu o telefone. Suas mãos tremiam.

O maldito ia achar Miro... Não podia! Iam fugir no dia seguinte. Mas como ia dormir? Não conseguia ficar em paz pensando que o mandante podia estar falando com ele no celular e o observando em alguma rua próxima. Subestimou o poder do homem que o encomendara a morte de seu Miro. Ele estava por aí. E Miro sozinho no hotel!

Correu desabaladamente pela rua até as escadas do prédio, subiu os degraus de três em três. Bateu na porta, apavorado.

Miro abriu-lhe a porta com um rostinho entediado.

– Você demorou, amor. Estava com saudades. – beijou-o na testa e o puxou para dentro. Camus, desconcertado, largou a garrafa no chão e a caixa com os pedaços de torta também. Aliviado e trêmulo, como alguém que acabara de escapar da morte, ajoelhou-se aos pés de Miro e chorou de gratidão por nada ter acontecido a ele.

– O que foi, amor? – Miro sentou-se do lado de Camus no chão, acolheu em seu peito o rosto ruivo, mas antes que pudesse perguntar novamente, o outro calou-o com um beijo sôfrego, desesperado.

– Miro... Você é a coisa mais importante do mundo para mim! Eu... Eu te...

Miro deitou os dedos sobre os lábios de Camus.

– Eu sei, meu amor... eu sinto.

Beijaram-se longamente, mas Miro interrompeu o beijo quando sentiu as lágrimas quentes de Camus rolarem entre as suas bochechas coladas.

– Por que você está chorando, amor?

– Porque você é tudo o que eu tenho, Miro...

– Camus...

– Vamos embora amanhã.

– Para onde?

– Para o Brasil. Uma cidadezinha pequena, Miro. Aracati. Vamos morar na praia, hein? De frente par ao mar... o mar da cor dos seus olhos... azul. Azul! Um azul mais azul do que o céu...

– Camus! Que ótimo... Sol! Eu adoro sol!

– É uma vila pequena, Miro... Não vamos ter os luxos de uma cidade grande... Mas depois, se você quiser, nós...

– Não! Eu vou adorar! Eu adoro cidades pequenas, eu não faço questão de nada que me lembre Seattle!

– Então... nós iremos amanhã, Miro. Você me espera no ponto do táxi lá embaixo. Eu te apanho em um carro diferente, para não me seguirem. É perigoso a gente andar junto.

– Camus... Camus! Estou tão ansioso!

– Eu sei... Eu também. E... – Camus olhou para a porta do banheiro, de onde uma tênue luz alaranjada vazava, bruxuleando nos móveis grosseiros. – Que luz é essa, Miro?

– É a vela... Eu acendi uma vela para a Virgem Maria, Camus... Para ela proteger nós dois. Eu rezei um terço todo! Eu tenho certeza de que tudo vai dar certo.

Camus achava impossível que Miro pudesse fasciná-lo mais do que já fascinava, mas era impressionante como estava errado! Miro era cada vez mais e mais perfeito. A criança rezara um terço inteiro e acendera uma vela! Uma vela por eles...

– Miro, como você é bom! Você é bom demais!

– Ah! O que foi que você trouxe aí?

Camus secou as lágrimas, enquanto Miro ajudava-o a levantar-se.

– Vinho tinto e torta... de nozes.

– E eu adoro nozes! Mas acho que vamos ficar com a torta para a sobremesa... Eu mandei vir um jantar para nós.

– Jantar?

– É. Eu lembrei que você me disse um dia que a sua comia preferida era... hum... – Miro fez cara de bobo, como estivesse tentando se lembrar – Frango assado com batatas coradas?

– Isso, Miro... – riu Camus, divertindo-se com as expressões adoráveis do seu amante.

– Então, mandei vir. Vamos comer? Estava roxo de fome, só estava esperando você chegar.

Camus sentou-se na cadeira pequena, e fez sinal para que Miro se sentasse no seu colo, ao que o garoto de programa mais que imediatamente obedeceu, aninhando-se no regaço confortável.

– Miro, estive fazendo as contas de quantas horas vamos levar para chegar no Brasil e na nossa casa. Vamos chegar lá na quarta feira. E a primeira coisa que eu vou fazer é frango assado com batatas coradas. Está decidido! Será nossa primeira refeição na nossa casa. Vai ser a primeira refeição da nossa vida. O Miro de boate fica para trás e o Camus matador de rua também. Nossa vida vai começar de verdade lá.

No dia seguinte, arrumaram as coisas no apartamento juntos. Camus estava imprestável para o trabalho: tropeçava em tudo, derrubava as coisas, trombava em Miro de cinco em cinco minutos. O loiro impacientou-se com o ar abobalhado de Camus e o sentou sobre a cama enquanto ele mesmo arrumava as pouquíssimas coisas que pretendiam levar daquela cidade. Depois, despachou-o com beijos para que buscasse o carro e os reais que ele trocara na casa de câmbio para as despesas imediatas no Brasil.

Uma hora após a saída de Camus, Miro andou até o ponto de táxi com a mochila surrada nas costas. Sentou-se no banquinho pequeno e comprou chicletes. Estava ansioso demais. Segurava firmemente o celular.

Camus já voltava para buscar Miro. Trocara seu vistoso Volvo preto por um Chrysler discreto. No banco de trás, uma mala pequena. Estava tenso demais para pensar na delícia de sua vida com Miro – tinha medo do jovem loiro à vista de todos em um lugar tão exposto. Cada rosto que se apresentava para ele era como uma ameaça terrível à integridade física de Miro e, portanto, era um alvo em potencial. Vinha com um misto de angústia e alívio buscar o garoto de programa: sua missão estava quase no final.

Estava quase chegando à rua certa quando seu celular tocou. Estremeceu. Poderia ser Miro. Mas tinha certeza de que não era. Atendeu.

– Olá, Camus! Sentiu saudades?

– Maldito!

– Olha para trás!

Camus virou melhor o retrovisor do carro. Um Honda Civic estava ameaçadoramente perto e o homem ao volante do carro japonês segurava um celular. Quando percebeu que estava sendo visto, acenou.

– Você está morto! Você e Miro!

– Seu...

Camus virou o carro o mais rápido que pode. Não ia poder seguir com Miro. Tinha que afastar o perseguidor de onde o garoto de programa estava e dar ao pobre loiro a chance de fugir.

Fechou o celular e o pôs no bolso enquanto tentava fugir da perseguição do outro carro. Andaram metade da cidade. Onde havia menos tráfego, o carro japonês e seu motorista tomavam liberdades: avançavam agressivamente contra o carro que Camus dirigia. Instintivamente, Camus sabia que não ia escapar. Distraiu-se por um momento pensando em como Miro chegaria ao Brasil sozinho. Foi o bastante para que o outro carro fechasse o seu. Apanhou a pistola que guardara embaixo do banco, mas não teve tempo de usá-la. O mandante saiu do seu Honda e abriu a porta do seu carro. Disparou quatro tiros: dois no abdômen, um no peito e outro nas costas, quando Camus, em um instinto, virou-se para proteger o rosto. Ainda ouviu a voz do outro, como um zumbido que vinha de longe:

– Agora eu vou pegar o Miro. Mas não se preocupe! Nele só vou dar um tiro: na cabeça!

Entrou tranqüilamente no carro dele e saiu.

— # —

– Camus... Camus... Onde está você? – Miro olhava nervosamente para o relógio. O ruivo estava atrasado. Começou a ficar com medo e como o medo era péssimo conselheiro, ele se lembrou do choro compulsivo do outro na noite anterior, do nervoso de Camus que não conseguia se concentrar. Mas ainda não entendia o que devia fazer dos dados. Não podia acreditar que Camus fosse abandoná-lo: não podia fingir tão bem! Ninguém podia fingir tão bem o amor... Talvez... Mas não Camus...

"Não o meu Camus..." – pensava nervosamente, mordendo a medalhinha dourada da Virgem Maria. "Virgenzinha, mãe, proteja meu Camus... proteja nós dois..." o celular em seu bolso começou a tocar.

– Camus?

– Mi-Miro...

– Onde você está! Onde? – Miro estava quase gritando.

– Miro... fa-fale baixo... ele... ele... está atrás de você... tem que sair daí... tem...

– O que aconteceu com você? Por que a sua voz está fraca?

– Miro... ele... me pegou... mas o maldi... ele... não vai pegar você...

– Camus! Amor... Eu não vou sem você! Não vou! Não vou!

– Você tem que ir... Miro... você tem que ir...

– Não! E você? Onde você está? Deixa eu ir aí... eu te pego... a gente vai junto...

– Miro... eu... Não adianta mais... eu... eu estou morrendo. Você temque ir agora... rápido...

– Não! Não!

– Miro, vai... se ele te... pegar...

Miro ouviu uma tosse fraca. A voz de Camus cada vez mais falhada.

– Camus... eu... eu não quero ir sem você! Me diz... me diz onde você está... – a voz de Miro era um lamento desesperado.

– Miro... eu te amo.

Camus reuniu suas forças e fechou o celular. Puxou de dentro de sua roupa empapada de sangue a imagem da Virgem que Miro havia lhe dado. Olhou para ela, estava borrifada de pingos vermelhos. "Virgem Maria, se você existe, salve meu Miro."

— # —

Obrigada à Ada e Nana Pizani que betam esta fic com muito carinho.

Aos que comentaram, meus agradecimentos e observações, curiosidades, fotos relacionadas à fic, estarão aqui, neste endereço:

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Obrigada.


( 1 ) "O Homem Amarelo", O Rappa.

( 2 ) "Mais que Isso", Ana Carolina.