O mesmo som do grasnar das gaivotas e o das ondas batendo ferozmente contra as rochas escarpadas era o mesmo de todas as manhãs. Por vezes ouvia-se um leve miar vindo da cozinha do casarão ou então um uivo nas noites de lua cheia. Eion ainda não tinha descoberto quem era o lobisomem que passava por aquelas paragens, mas proíbia vivamente a todos os habitantes do casarão Bole de sair nas noites de lua cheia.
Niamh abriu lentamente os olhos e olhou para as traves de madeira que seguravam o telhado da casa, já estavam ali desde que ela nasceu e nunca sofreram nenhuma alteração ou restauração. Os lençóis roçavam-lhe na cara, ela adorava dormir com a cabeça tapada com os cobertores, sentia-se de alguma maneira mais protegida. As cortinas em veludo do seu quarto abriram-se de par em par, entrando uma golfada de luz no quarto e fazendo com que se visse o pó pairar sobre os móveis. Os olhos de Niamh começaram a doer e ela fechou-os.
- Vamos menina Bole... -encorajou Gertrude, uma das empregadas no casarão que ia acordar Niamh todas as manhãs de forma rude.- Já a acordei cinco minutos mais tarde porque tive dó de si, estava a dormir tão bem.
Niamh resmungou qualquer coisa e virou-se de costas para a luz, como habitualmente ela fazia todas as manhãs em que não lhe apetecia sair da cama. Sobretudo aquela, na noite anterior ela não tinha conseguido dormir com a ansiedade do primeiro dia de aulas do quinto ano.
- Menina! -exclamou Gertrude, pondo as mãos na cintura em sinal de desaprovamento. De seguida aproximou-se da cama de casal de Niamh e puxou todos os lençóis para trás, fazendo com que a ruiva acordasse com o frio. O lençol que envolvia o colchão era listrado com riscas amarelas claras e brancas, combinando com os desenhos em branco e amarelo do edredon. O quarto era todo ele em tons creme e bêges com o chão em soalho.
- Só mais cinco minutos... -resmungou Niamh, abraçando-se à almofada que já começava a ficar com a forma da sua cabeça.
Gertrude pegou no copo de vidro vazio e com pequenas gotículas de água no fundo e nas bordas que estava poisado na mesa de cabeceira. Antes de ir dormir, Niamh pedia a Aurora que lhe desse um copo com água para não ter de descer as escadas ruidosas durante a noite.
- O seu pai vai ficar chateado consigo, a menina Bole sabe bem que ele não gosta de esperar e que hoje tem um julgamento à mesma hora que o comboio parte, têm de ser deixados mais cedos na estação! -alertou a empregada, abrindo as janelas com a mão que tinha disponível, fazendo com que o cheiro a maresia desse uma nova frescura ao quarto.
Niamh gostava deste cheiro, fazia-lhe lembrar os velhos tempos quando corria pela praia e nadava nas água turbulentas. Aquela era a última manhã em que sentiria aquele odor fresco e revigorante, depois estaria um ano sem o poder cheirar novamente. A ruiva abriu lentamente os olhos e esfregou-os com os nós dos dedos. Depois sentou-se na cama, com os braços ao lado do corpo, mirando a cómoda em pinho com puxadores envoltos numa leve película de ouro.
- Não te preocupes Gertrude, hoje não vou tomar banho antes de ir para Hogwarts, tomo-o lá. -disse Niamh, coçando o cimo da sua cabeça enquanto andava desajeitadamente até à empregada.
- Mas, menina!... -exclamou Gertrude, pegando numa madeixa despenteada e encaracolada do cabelo de Niamh.- O seu cabelo está uma lástima! Veja, até fica pendurado no ar!
Niamh deu uma leve palmada na mão de Gertrude, e a empregada largou a madeixa de cabelo, fazendo uma careta para a menina Bole.
- Para essas ocasiões existem os feitiços...-e quando Gertrude abriu a boca para discordar de alguma coisa, Niamh continuou.- Sim, eu sei que eu não posso fazer feitiços fora de Hogwarts até ter os dezoito anos, mas tu podes.
Gertrude bufou e ergueu o sobrolho, de seguida pegou numa linda fita escarlate que estava poisada na mesa do toucador e entregou-a a Niamh.
- Tome, ate os seus cabelos enquanto vou deixar o copo lá embaixo e avisar o senhor Bole de que você já está acordada, e trate de se vestir também. E vista-se rápido, não sou coxa a andar!
Niamh esboçou um sorriso e atou os seus volumosos cabelos atrás, fazendo um coque mal-feito. O ruivo dos seus cabelos fazia o contraste perfeito com o azul celeste da sua camisa de noite. Gertrude fez uma pequena vénia e esgueirou-se pela porta do quarto, fazendo com que o som dos seus sapatos de salto-alto fizessem eco por todo o compartimento.
Niamh escolheu como roupa uma camisa branca clássica, uma saia de ganga pelo joelho desbotada na parte da frente e os sapatos do uniforme que estavam completamente novos e envernizados. Na verdade, ela não gostava de andar de saias, as suas pernas eram muito magras e pálidas e ninguém iria olhar para elas ou, se olhassem, era para murmurar com o acompanhante que aquelas pernas eram tão magras e deselegantes que até metia impressão olhar. Depois, Niamh verificou se estava tudo o que queria no velho malão de couro usado e gasto da cor verde escuro. Este estava aberto sobre o cadeirão que se encontrava mesmo ao lado da mesa de cabeceira.
"Algumas peças de roupa, os livros, os pergaminhos, as penas, as duas embalagens de tinta, as penas de fénix, o suor de sapo, o vómito de peixe, as luvas de dragão e o sobretudo de Inverno; sim, acho que está tudo aqui." pensou Niamh enquanto remexia de novo nas coisas da mala. Antes de fechar o malão com as grandes fivelas, Niamh hesitou e vasculhou o quarto com os olhos, vendo se havia alguma coisa que faltava ali. O compartimento estava quase vazio, à excepção dos móveis que ela não podia levar para Hogwarts, apenas um pequeno resto de roupa e os cobertores de Inverno estavam guardados no armário. Mas realmente havia uma coisa que ela se tinha de pôr na bagagem, Niamh esquecera-se completamente de ir buscar no dia anterior a foto da mãe à caixa. Iria buscá-la com Damian antes de seguir para Hogwarts, agora tinha de se preparar para sair de casa.
A porta recebeu três batidas secas. Niamh clareou a voz e disse um melodioso "Entre.
- Gertrude quase provocou o caus do vosso pequeno-almoço! -praguejava Aurora, uma pequena senhora de meia-idade gorda e baixíssima com os cabelos castanhos apanhados atrás com uma fita rendada.- Felizmente que ainda me lembrava do feitiço para cancelar aquele! Aquela inesperiente...Onde já se viu entrar pela cozinha dentro com o encantamento activo! -a cozinheira conduziu Niamh até ao banco de veludo do toucador para que a pudesse pentear mais facilmente.- Qualquer pessoa que tenha sanidade mental sabe que nunca se deve entrar numa cozinha onde o encantamento esteja activo! Aquela desmiolada...E imagina tu, para pentear os teus cabelos! Sinceramente pequena...Se eu fosse ao patrão já a tinha despedido há muito tempo!
Niamh ria baixinho do que Aurora dizia, não era habitual vê-la tão perturbada, normalmente ela era muito paciente e compreensiva. A ruiva olhou para o espelho e mirou as abundantes sardas que lhe passavam sob os olhos, percorrendo a cana do nariz. Ela não se achava nada atraente, preferia ser como Keira Monday, com uns longos cabelos loiros e lisos e os olhos azuis, não daquele cinzento escuro que não tinham profundidade nenhuma e que era abominavelmente feios. Aurora pegou na escova e tentou domar os volumosos e ensarilhados cabelos de Niamh.
- Os teus cabelos são díficeis de domar, pequena. -confessou, enquanto pegava numa madeixa de cabelo pela raiz e depois fazia uma força enorme com a escova para desembaraçar os nós.- Sais à tua querida mãezinha, ela também tinha o cabelo igual ao teu. Tantas vezes que me pediu para o pentear...Quando toco no teu cabelo e fecho os olhos por vezes penso que é a pequena Selena que está aqui à minha frente.
- Au! -queixou-se Niamh não só para Aurora fazer o serviço mais delicadamente mas também para acabar aquela conversa sobre a mãe dela por ali. Niamh sabia bem que Selena era igual a ela, exceptuando os olhos cinzentos que saíram ao pai. Por isso Eion não a queria ver muitas vezes, sabia muito bem que todas as noites ele dormia com uma fotografia dela debaixo da almofada sem Morgaine saber disso. E Niamh tinha a certeza de que se Selena voltasse a viver, Eion pediria o divórcio a Morgaine de bom grado.
Aurora desistiu de tentar penteá-la manualmente e tirou a varinha de dentro do bolso do avental branco bordado com linha azul. Depois exclamou o feitiço para alisar e o cabelo de Niamh tornou-se liso e escorrido e brilhava à luz do sol que entrava pelas janelas.
- Não sei como é que os Muggles conseguem pentear os cabelos sem a ajuda de magia! -quando Niamh ia abrir a boca para retorquir alguma coisa, Aurora continuou.- Calma, pequena. Daqui a uns minutos ele já volta a ficar encaracolado como tu queres.
Niamh sorriu satisfeita para o espelho, enquanto Aurora lhe punha a gola da camisa direita e lhe penteava uma última vez os cabelos que passavam as costas. Ela não gostava de ter o cabelo liso, se o pusesse assim para sempre de certo que iria se esquecer da cara da mãe. Claro que a Eion ia lhe agradar a ideia de não ter uma pessoa tão parecida com Selena em casa, mas Niamh gostava dos seus cabelos naturais, encaracolados, fortes e secos. Quando chegava a altura de cortar as pontas do cabelo, ela queria que o cabelo ficasse do comprimento do da mãe e só naquele comprimento, se o cortassem mais que isso ela iria fazer reboliço e ficaria no quarto fechada até o cabelo voltar a crescer. De repente, o cabelo liso e quase colado à cabeça formou um grande tufo de caracóis que lhe caíam pelos ombros, mas desta vez estava mais penteado.
- Estás a ver Niamh! O teu cabelo é grosso demais para ser liso, passado uns minutos ele volta a encaracolar-se. -disse Aurora, pegando na fita escarlate que Niamh sempre usava e apanhando-lhe o cabelo atrás.
- O que é o pequeno-almoço Aurora? -indagou Niamh. Depois pegou no frasco rosa de perfume francês e espalhou pelo pescoço e pulsos.
- O de sempre, leite e pão com manteiga. -respondeu Aurora, afastando-se da cadeira onde Niamh estava sentada para que ela pudesse empurrá-la para trás.
Niamh levantou-se e fez uma pequena vénia a Aurora. Eion obrigava as pessoas daquela casa a fazer vénias sempre que se despediam de alguém ou queria agradecer por alguma coisa. A ruiva fechou a mala com as fivelas e pegou nela com as duas mãos.
- Eu ajudava-te pequena, pena que a idade já custa... -lamentou-se Aurora estalando as costas com as mãos.
Niamh transportou o malão esforçadamente e pediu a Aurora para fechar a porta do seu quarto. Agora era muito mais fácil transportá-la, bastava arrastá-la pelo chão de soalho envernizado naquela manhã por Boris. Niamh poisou-a no chão e começou a arrastá-la com as mãos.
- Ai meu rico Merlin! Niamh, se Boris te vê a riscar o chão que acabou de envernizar... -alertou Aurora.
- Ele não vai saber. -respondeu prontamente Niamh com um sorriso maldoso.
Os corredores daquela casa eram escuros e mórbidos, a cor do papel de parede era muito escura assim como a cor da madeira do chão. O tecto era muito alto e o espaço muito estreito, sem nenhuma tapeçaria ou manto por onde se caminhasse. As paredes tinham vários quadros de antepassados da família e de outras pessoas também, estes últimos eram por vezes presentes de clientes de Eion. Não se conseguia ver o fundo do corredor, onde estavam as escadas para descer para o piso do rés-do-chão.
- "En garde"! -exclamou um jovem mosqueteiro de longos cabelos e barbas pretas que estava num quadro com um cenário de uma pequena aldeia do século XV.- Quem ousa perturbar o sono de um nobre mosqueteiro que morreu para servir a pátria?
Niamh olhou para o lado e ergueu o sobrolho, vendo a espada do mosqueteiro apontada para ela.
- Ele nunca aprende... -disse Aurora, empurrando Niamh pelos ombros para que ela continuasse a andar.
Aquele mosqueteiro era um dos antepassados da família Bole, e tinha sido morto à traição por um outro mosqueteiro que tinha sido subornado, segundo tinha lido nos arquivos da biblioteca da casa.
Já se conseguia ver as escadas ao fundo do corredor, Niamh começou a empurrar o malão com mais rapidez e Aurora teve de apressar os seus pequenos passos. Porém, Niamh deteve-se quando viu dois pés enfiados nuns grandes sapatos de salto-alto vermelho berrante. A ruiva olhou lentamente para cima, percorrendo com os olhos o vestido preto e o corpo elegante de alguém jovem.
- Penso que Eion foi bem claro quando disse que não queria que ninguém estragasse a casa. -relembrou Morgaine, a madrasta de Niamh, com as mãos cruzadas no peito e os lábios franzidos.- Principalmente os corredores que Boris acabou de envernizar. Eion não vai gostar nada de saber isto.
Aurora avançou para o lado de Niamh e poisou as mãos sobre os seus ombros:
- Ela não fez por mal senhora Bole...A mala é pesada.
- Cale-se! -cortou Morgaine, semi-cerrando os olhos e lançando um olhar acusador.- Sua empregada de meia-tigela! Pois, nem sequer consegue fazer comida de jeito! Se fosse a Eion já tinha contratado outra cozinheira com mais experiência e mais vocação, não uma...Uma vagabunda que aprendeu a fazer comida com o lixo.
Aurora ficou com os olhos brilhantes e segurou um soluço, mexendo nervosamente no seu avental. Niamh começou a ficar com a cara vermelha de fúria, como ela sempre ficava quando se enfurecia com algo ou alguém, apertou os punhos atrás das costas, mirando sempre o chão.
- Ela não é isso, Senhora Morgaine!... -articulou Niamh, mordendo os lábios com os dentes com tal força que começaram a sangrar.- Ela faz comida boa e pode ter a certeza que era melhor madrasta do que a senhora!
Morgaine ficou verde de fúria, e aproximou a cara dos olhos de Niamh.
- Vá-se embora cozinheira, eu preciso de falar com a filha de Eion a sós! -ordenou, sem tirar os olhos de Niamh.
Aurora fez uma pequena vénia e saiu do local atrapalhadamente, descendo rapidamente as escadas. Morgaine esperou que Aurora chegasse à cozinha para começar a falar com Niamh:
- Ouve lá sua ladrazinha de mães...Não te admires se Eion gosta mais de mim do que de ti, foste tu que matas-te a queridinha da mulher dele. Sim, ela deve ter ficado tão traumatizada com a filha que teve que até se matou!
- Isso não é verdade... -murmurou Niamh, com alguns cabelos a levantarem-se. Na verdade, ninguém sabia ao certo a razão porque Selena se suicidou. No dia anterior estava muito feliz pela chegada da véspera de Natal e, na manhã desta, desapareceu e só a deram como morta quando viram as pegadas dela junto à falésia e o mar agitado lá embaixo. Claro que o Natal naquele ano não foi um verdadeiro Natal, Eion não saiu do quarto e a refeição foi singela só com Aurora, Jonathan e Niamh na mesa. Nem sequer houve presentes para ninguém esse ano.
Morgaine emitiu um pequeno riso enervante e depois apontou o dedo indicador para a face de Niamh:
- Mas sabes...Ainda bem que se suicidou. Assim eu consegui que Eion se apaixonasse por mim e casasse comigo, e tu sabes bem porque é que eu assediei um velho como o Eion e não um jovem robusto como o Jonathan.
- Pelo dinheiro. -respondeu Niamh, semi-cerrando os olhos e limpando o sangue dos seus lábios com as costas das mãos.
Morgaine sorriu torcidamente e não afastou a cara dela. Niamh estava farta de ver aqueles olhos castanhos gélidos e cheios de ódio e aquela cara uniforme e ossuda.
- Pelo menos aqueles dias inteiros que passaste agarrada aos livros serviram-te para alguma coisa... -disse Morgaine, mexendo apenas os lábios rapidamente.
- O meu pai vai pedir o divórcio, ele não vai deixar que você fique com o dinheiro...Eu vou-lhe contar!
Morgaine afastou finalmente a cara e riu alto, olhando para o tecto. Depois olhou Niamh de cima e acrescentou:
- Em que é que ele vai acreditar? Na palavra de uma filha que ele raramente vê e que sempre que se mete em sarilhos lhe mente, ou na minha palavra?
Niamh aceitou a derrota por parte de Morgaine, sabia bem que se ela falasse algo sobre isso a Eion ele a punha de castigo por algum tempo. Eion confiava em Morgaine cegamente, e Niamh não percebia porquê, talvez ela tivesse feito um feitiço que o fazia acreditar nela e fazer tudo o que ela queria. As escadas rangeram ao som de passos de sapatos sem salto, Morgaine olhou para trás, mostrando o seu maior sorriso e Niamh desviou-se para o lado para admirar o homem de meia-idade que subia as escadas, o seu pai. Ele já estava velho e cansado, com os seus longos cabelos grisalhos apanhados atrás e com gel no cima da cabeça. Eion andava habitualmente com as mãos juntas atrás das costas, apenas quando se zangava ou quando ficava nervoso é que punha as mãos nos bolsos das calças de fazenda.
- Niamh fez alguma coisa, mulher? -indagou com a sua voz grossa e rouca, poisando os olhares entre Morgaine e Niamh.
- Na verdade, e custa-me imenso queixar-me dos teus filhos, mas sim, ela fez. -respondeu falsamente Morgaine enquanto se dirigia para o lado do marido para lhe dar o braço.- Ela arrastou aquele malão pelo corredor acabado de envernizar por Boris, e depois quando eu lhe chamei a atenção, nada de outro mundo é claro, ela começou a insultar-me e a dizer que Aurora era melhor mãe que eu. -ela encenou uma lágrima e um soluço e Eion confortou-a com a mão.
Niamh não se defendeu, porque sabia perfeitamente que se se defendesse ou disesse uma palavra Eion só iria piorar o castigo. Era sempre igual, Morgaine queixava-se dela, chorava em frente do marido e fazia papel de boa e depois Eion olhava Niamh com olhos acusadores e obrigava-a a ir para a solitária sem comer. E parecia que iria acontecer isso dessa vez também. Eion fraziu o sobrolho e os seus lábios começaram a tremer de nervos, passou as mãos que estavam atrás das costas para o bolso das calças de fazenda pretas. Niamh só o tinha visto naquele estado uma vez, quando ela tinha posto cera no chão para Boris escorregar e partir uma perna.
- É verdade? -murmurou, aproximando-se de Niamh e pondo-lhe as mãos nos ombros.
A ruiva mirou os olhos cinzentos escuros do pai e começou a lacrimejar, não poderia oferecer resistência, o castigo iria ser muito pior do que já o era. Eion começou a apertar os ombros dela e Niamh sentiu dor.
- Sim, pai. -disse Niamh. Morgaine mostrou um riso maldoso e satisfeito e depois mostrou-lhe a língua.
Eion largou-lhe os ombros e apontou para as escadas com o dedo indicador a tremer.
- Para a solitária sem pequeno-almoço. Já! -gritou aos ouvidos de Niamh, o que fez com que ela saltasse e fechasse os olhos.- Dois numa manhã já é demais...Anda Morgaine, vamos tomar o pequeno-almoço.
Eion passou o braço em volta dos ombros de Morgaine e os dois desceram majestosamente as escadas, acompanhados atrás por Niamh que massajava os ombros. O casal seguiu em direcção à sala de jantar e Eion verificou se Niamh se dirigia para o lado contrário, em direcção à solitária.
A solitária era uma sala como as outras, só que estava vazia e havia apenas uma janela por onde entrava um pouco de ar e de luz, Niamh e Damian foram para ela muitas vezes quando se metiam em sarilhos ou quando enfrentavam Morgaine. Às vezes só permaneciam dentro da sala por uma hora, outras por duas ou três, o máximo que os dois ficaram lá dentro foi precisamente doze horas, porque Eion deu ordem a Boris que só os deixasse sair quando chegasse a casa, o julgamento foi maior do que o que ele pensava e ele acabou por chegar a casa doze horas depois. Niamh parou junto a uma porta de madeira que só se abria pelo lado de fora e rodou a maçaneta dourada. A porta era bastante pesada e forte e rangeu quando Niamh a empurrou para dentro. A solitária era empoeirada e escura, entrando apenas uma pequena frecha de luz que se concentrava num só ponto do chão e que fazia levantar o pó. Um cabelo loiro recebia os raios solares, tornando-se ainda mais brilhante e mais angelical. Era escorrido, comprido e com ondulação, com uma madeixa rebelde à frente que caía sobre os olhos cor de mel. O rapaz estava encostado contra a parede, com as mãos cruzadas na barriga e a cabeça mirando o tecto mal-pintado e cheio de humidade. Estava tão mergulhado nos seus pensamentos que nem reparou que a porta da entrada tinha sido aberta.
- Damian... -suspirou Niamh enquanto fechava a porta por trás de sim, fazendo com que a sala mergulhasse na escuridão.
O rapaz baixou a cabeça e tentou fitar os olhos de Niamh no meio da escuridão. Os passos da ruiva ecoaram pela grande sala vazia, e os seus cabelos ruivos embaçados foram iluminados pelos raios de sol.
- Que aprontaste desta vez, Ni? -indagou Damian pacientemente, levantando-se do chão para ficar dois palmos mais alto que Niamh.
- Arrastei o malão pelo chão para não ter de carregar aquele peso. -respondeu, encostando-se na parede ao lado de Damian, com os olhos cinzentos poisados no infinito.- E claro, aquela Morgaine tinha que aparecer lá, e insultou Aurora! E disse que ela não era competente e que tinha aprendido a fazer comida com o lixo. -Damian mordeu o lábio inferior e apertou os punhos ao lado do corpo.- Depois eu disse que Aurora seria melhor mãe que ela, e Morgaine mandou-a para a cozinha para ficar a sós comigo. E finalmente aquela ladra disse que só casou com o papá pelo dinheiro e para ficar bem vista, e insultou a minha mãe Damian... -Niamh soluçou e soltou uma lágrima.- Morgaine disse que fui eu que a matei, e penso que ela tem razão. Uma família tão bem parecida e com descendentes tão atraentes e só eu para estragar a má fama e ter nascido horrorosa e baixa! Ela deve se ter suicidado por ter dado à luz uma filha tão feia!
Damian embrulhou o seu braço pelos ombros de Niamh e puxou-a para o seu peito. Niamh encaixava perfeitamente no corpo de Damian, a sua testa coincidia exactamente com a maçã de adão dele, e muitas vezes Elroy a tinha consolado naquela posição.
Niamh abraçou a cintura de Damian e começou a chorar descompassadamente, molhando a camisola preta larga de Elroy ensopada em água salgada.
- Tu não és feia Ni. -consolou Damian, acariciando-lhe os cabelos.- A tua mãe também era baixa como tu, e mesmo assim ninguém a impediu de casar com um dos homens mais bonitos de Hogsmeade.
- Damian, tu não entendes... -lamentou-se Niamh, enquanto fungava e limpava as lágrimas com os nós dos dedos.- Já olhaste para os meus olhos? Ou para o meu cabelo? E as minhas sardas e o meu corpo infantil? Às vezes preferia morrer!
Damian apertou-a mais contra si e continuou a afagar o cabelo e as costas dela.
- Tu tens uns olhos lindos, quem te visse pela primeira vez iria ficar apaixonado por ti por esconderes tanto a profundeza e as emoções do teu olhar. -Damian tentava escolher as palavras certas para fazer com que Niamh se sentisse melhor e com mais auto-estima.- E o teu cabelo é imenso e bonito, muita gente quereria tê-lo. -Elroy pegou numa madeixa de cabelo de Niamh e começou a enrolá-la nos dedos.
A ruiva afastou-se do peito magro, no entanto protector de Damian. Limpou as lágrimas com as costas das mãos e olhou para os olhos cor de mel dele.
- Não sei o que era de mim se não me ajudasses. -Niamh estava com uma voz instável de ter chorado.- Tenho-te como um irmão mais velho.
Ambos sorriram um para o outro e Damian pegou na cintura pouco definida de Niamh e começou a rodá-la no ar, como um pai pega num bebé.
- E tu serás sempre a minha irmãzinha. -disse Damian. Niamh soltava gargalhadas enquanto voava pelo ar, deixando os dentes brancos e perfeitos (a única coisa que tinha de atraente) espreitando por entre os lábios gretados e mal cuidados. Damian poisou-a no chão e puxou-lhe uma madeixa encaracolada do cabelo ruivo.
- Ficas mais bonita quando te ris. -confessou.
Niamh riu e empurrou o ombro dele para trás, insinuando:
- Mas achas a Ashley mais bonita, não é verdade!
Niamh sabia que Damian tinha um fraco por ela, Ashley era uma rapariga de longos cabelos castanhos lisos e olhos verdes claros, tapados por umas enormes pestanas que fazia parte de Ravenclaw. Desde o quarto ano que Elroy tinha reparado nela e tentado de tudo para a conquistar, claro que Niamh odiava que ele fizesse isso, mas agora já se começava a habituar. Uma vez ele tinha-a convidado para o baile de Natal, mas Guliver já a tinha convidado antes. E Damian ficou uma semana inteira a remoer que tinha de se vingar de Guliver, e conseguiu, na verdade. Com a ajuda de Niamh conseguiram com que ele levasse uma detenção da professora de Runas Antigas, Hermione Granger.
Damian corou e assentiu levemente com a cabeça. Uma das qualidades que Niamh mais apreciava em Elroy era a sua sinceridade, dizia o que pensava e não se importava com o que pensavam, talvez fosse por isso que o tinham posto em Slytherin.
- E tu? O que é que fizeste desta vez? -indagou Niamh, tentando visualizar a paisagem naquela pequena janela no cimo da parede.
- O costume, apanharam-me a roubar comida da cozinha. -Damian revirou os olhos e voltou a encostar-se contra a parede, pondo as mãos nos bolsos dos jeans.
- Porque é que insistes em roubar comida de manhã? -perguntou Niamh, semi-cerrando os olhos.- Porque é que não esperas pelo pequeno-almoço? Desde o príncipio das férias que tens andado assim.
- Eu tenho fome, e ninguém me dá comida, então tenho de ir buscá-la com as minhas mãos. -disse Damian rispidamente, acabando por ali a conversa.
Niamh arqueou uma sombracelha e encostou-se igualmente na parede.
- Tu queres esconder alguma coisa de mim, Anjinho... -divagou a ruiva.- E eu vou descobrir o quê.
Damian praguejou qualquer coisa e fitou o chão solenemente. Os dois ficaram em silêncio por alguns minutos, absortos nos seus próprios pensamentos. O silêncio foi cortado de seguida pela voz forte e vibrante de Damian:
- E tu? Eu vi o modo como olhavas para o James Potter no último dia de aulas.
Niamh arregalou os olhos e rodou lentamente a cara para o lado. Damian riu-se da expressão dela e desafiou-a com um olhar.
- Ele é bonito. -afirmou Niamh.- Filho de boas famílias e do Harry Potter, mas tem demasiadas raparigas atrás dele... -Niamh fez uma careta e continuou a fitar o chão.
- Sei Ni... -disse Damian com sarcasmo, sorrindo torcidamente.
A porta da solitária abriu-se de repente, com um homem de cabelos grisados vestido com um fraque preto do outro lado. Niamh e Damian tiveram que semi-cerrar os olhos para poderem ver alguma coisa.
- O pequeno-almoço está servido. -pigarreou Boris, o mordomo da casa, com um tom neutro.
Os dois jovens olharam um para o outro e apressaram-se a seguir atrás do passo lento de Boris, confrangidos com a autoridade do velho. Os quadros espalhados por aquele corredor diziam coisas como "Que vergonha...Da solitária.." e murmuravam coisas entre si, mas os dois já estavam habituados aquele comportamento, era habitual.
A sala de jantar era imensa, com um grande candelabro de cristais suspenso no ar, e que deslizava lentamente de um lado para o outro. A mesa tinha espaço para vinte pessoas, e era trabalhada com motivos florais. Eion e Morgaine estavam sentados numa das pontas da mesa, comendo educadamente o pão com manteiga e limpando os lábios antes de poisarem a boca sobre o cálice com o leite fresco. O casal não olhou para os jovens quando estes entraram na sala, Boris fez uma pequena vénia e retirou-se para verificar o pó da casa para arranjar trabalho para as empregadas. Damian e Niamh caminharam lentamente até ao meio da mesa, onde já estavam servidos dois pratos com dois pães com manteiga cada um, e na sua frente um cálice de cristal com leite. Os dois puxaram educadamente os cadeirões em marfim para traz e sentaram-se na almofada de veludo que já estava rígida com o passar dos anos.
- A comida já está fria. -disse Eion, tentando arranjar um motivo de conversa.
Morgaine mostrou um sorriso convincente, porém hipócrito, para Damian e Eion, que a olharam com desprezo e indiferença. Damian foi o primeiro a pegar nos talheres de prata e a comer sofregamente.
- Bem, bem...Com muita fome, para quem tinha roubado comida de manhã. -ironizou Morgaine em voz baixa, e Eion percorreu o olhar ríspido desde Morgaine até Damian.
Niamh pegou finalmente nos talheres e comeu lentamente, com dificuldade em engolir a comida. Eion pegou no cálice e engoliu o leite que restava, limpando os lábios com o guardanapo.
A grande janela de vidro daquela sala, que se estendia até ao tecto, abriu-se subitamente com uma rajada de vento e os quatro índividuos olharam a coruja cinzenta e idosa de Eion a entrar pela sala, esvoaçando pelo tecto em voltas espectaculares. Pouco depois poisou na extremidade da mesa, deixando cair o Profeta Diário e saindo pela janela logo de seguida, fazendo com que esta se fechasse abruptamente.
- Chegou o correio! -animou-se Morgaine, rindo-se falsamente. Claro que Damian e Niamh tiveram de forçar o riso, para que Eion não lhe lançasse um olhar reprovador.
O chefe da casa levantou-se da mesa, visto que já tinha acabado de comer, e pegou no exemplar do Profeta Diário. Leu o título do artigo da primeira página e subitamente começou a ler o resto do artigo atentamente, uma coisa pouco vulgar, já que ele nunca lia o Profeta Diário. Niamh foi a primeira a presenciar aquele comportamento, e parou de comer para tentar perceber o que o pai lia com tanto empenho. Eion bufou e praguejou baixo enquanto atirava o jornal para cima da mesa e se sentava na cadeira, pensativo.
- O que aconteceu, querido? -perguntou Morgaine, levantando-se da cadeira para tentar ver a notícia do Profeta Diário.
- O corvo foi visto nesta floresta na noite passada, tiraram uma foto enquanto ele passava pela praia, mas só se nota uma sombra preta na imagem. -respondeu Eion calmamente.
Damian pegou no Profeta Diário antes de Morgaine e leu em voz alta:
- O Corvo foi visto outra vez, na última noite, perto da praia de Porthmouth. Depois de ter roubado algumas das lojas da aldeia, pensasse que o Corvo terá fugido com os produtos para alguma caverna numa falésia. Os Aurores locais já estão a fazer buscas pela área e interrogatórios afim de identificar o alvo.
»Pede-se a todos os feiticeiros que deixem informações sobre o possível paradeiro deste assassino ladrão para que toda a gente possa dormir em segurança outra vez.
Niamh devia ser a única pessoa que não sabia da gravidade deste assassino, pois quando Damian acabou de ler o artigo toda a gente gelou. Quando abriu a boca para indagar sobre o Corvo, Eion cortou-lhe as palavras com um olhar, e apressou-se a dizer:
- Vão buscar os vossos malões para nos pormos a caminho de Londres, são sessenta quilómetros que temos de percorrer. Boris teve a amabilidade de os trazer para baixo. -Eion estendeu o braço em direcção a duas grande malas sujas e velhas que estavam colocadas perto das escadarias.
Niamh e Damian levantaram-se silenciosamente da mesa perante os olhares observadores de Morgaine e Eion e foram buscar os respectivos malões para ir para Hogwarts. A viagem iria ser longa, já que tinham de ir à maneira dos Muggles, com um aparelho chamado carro que Eion tinha comprado uma vez numa loja de artefactos Muggles.
Eion vestiu a capa de pele de dragão e empurrou os dois jovens pelos ombros, conduzindo-os à porta da entrada, onde já estava à espera um Ford Mondeo escarlate.