As paredes de pedra de King's Cross estavam sempre húmidas e frias. A cor cinzenta da pedra fazia contraste com as duas grandes janelas brancas na fachada do edifício. O relógio na torre marcava as dez horas certas, e tocou dez vezes com um som arrastado e metálico.
A viagem até lá tinha sido rápida e turbulenta, passando por lindíssimas paisagens de flores e de colinas verdejantes que faziam uivar o vento. Damian e Niamh preferiram o silêncio durante a viagem, sabiam que se falasse demasiado Eion iria-os repreender e isso não era muito satisfatório, afinal, os dois já tinham estado na solitária naquela manhã por se terem portado mal. Niamh tinha aberto a janela do automóvel para verificar se ainda conseguia cheirar a brisa marinha, do que já começava a sentir saudades, mas aquele cheiro que fazia vibrar e arranhar a garganta deu lugar ao aroma a flores do campo e a eucalipto.
Eion abriu a mala do carro e tirou os dois malões tão abruptamente que estes caíram no chão com um som rouco. Damian pegou nos dois malões e deixou o de Niamh equilibrado no chão para que ela o pudesse pegar.
- Vamos, agora vocês já são crescidos, eu já estou atrasado para o julgamento. -encorajou Eion enquanto consultava as horas num relógio Muggle de pulso que tinha comprado na loja do seu amigo Gregorius.
Niamh pegou no malão e lançou um olhar de incentivo a Damian, de seguida pôs-se em bicos de pés e tocou com os lábios na bochecha enrugada do pai.
- Adeus pai, cuide da Moony e de Aurora.
Eion pôs a mão no sítio onde Niamh o tinha beijado e ficou com os olhos cinzentos vidrados no infinito. Niamh sabia que sempre que tocava no pai ele se lembrava de Selena, e era sempre por essa razão que Eion a afastava dele. Damian avançou a sua mão esguia e com traços femininos e Eion apertou-a vivamente. Depois os dois jovens rodaram nos calcanhares e atravessaram a estrada para entrarem em King's Cross, sob o olhar perpicaz de Eion.
Niamh já conhecia a estação de cor e o sítio para onde devia ir todos os anos, e todos os anos ela já estava habituada a seguir ao lado de Damian, sempre mais alto e robusto que ela. Entraram pela grande porta giratória inventada pelos Muggles e passaram-na dificilmente, com a ajuda de uma funcionária da estação de cabelos castanhos apanhados atrás e de uns lindos olhos da mesma cor. Depois desceram as escadas de ferro cinzento escuro para chegarem à gare da estação. Damian olhou em volta em busca de algum feiticeiro ou bruxo, mas não teve êxito e deu de ombros.
- Entramos já na passagem? -perguntou Niamh, pondo-lhe uma mão no ombro.
Damian poisou o malão no chão e estalou a mão onde a carregava.
- Ainda não, o Expresso só chega às dez e meia e acho que a passagem ainda não abriu. -respondeu.- Vamos esperar no pilar da linha dez.
Niamh concordou com a cabeça e encaminhou-se até ao pilar com passos largos e imprecisos, depois atirou o malão contra a parede e encostou-se nesta com os braços cruzados no peito. Damian fez o mesmo, encostando-se mesmo ao lado dela.
Os Muggles eram realmente desajeitados e não-mágicos, corriam de um lado para o outro com malas de rodas nas mãos e mochilas carregadíssimas com comida e garrafas de água. E tudo aquilo poderia caber numa pequena mala com um feitiço. Niamh bufou e olhou para o tecto de vidro fosco de King's Cross.
- Achas que é desta vez que Morgaine vai matar a Moony?
- Não, não te preocupes com isso. -respondeu Damian pacientemente.- Se ela a matar, eu mato-a a ela.
Niamh sorriu torcidamente e olhou para os olhos profundos e mel de Damian. Esta era a única parte do corpo que nunca se tinha modificado desde que o conhecera, continuavam do mesmo tom, apenas se notavam alguns riscos castanhos junto à pupila.
- Mimas-me demais, Damian. -confessou Niamh com um tom trocista.- Os Slytherin normais não fazem isso. Podes quebrar a promessa que me fizeste, para ver se recuperas a tua reputação, eu não me importo, a sério.
- Não Niamh, eu fiz essa promessa por amizade, não como obrigação. Se te acontecesse alguma coisa eu culpava-me para o resto da minha vida. És muito nova para enfrentar o mundo real, tens de ser protegida por alguém mais velho e com experiência. -Damian parecia um adulto a falar, e Niamh assustou-se com a gravidade e seriedade da sua voz.
Na verdade, tinha sido há três anos atrás que Damian tinha prometido isso a Niamh, numa noite de lua nova, quando os dois estavam sentados junto ao lago de Hogwarts. Niamh tinha sido rebaixada e esbofeteada pelos rapazes do sexto e sétimo ano de Slytherin, e Damian encontrou-os quando um deles estava prestes a arrancar a roupa a Niamh. Depois ele lançou um Impedimenta bastante potente para um aluno do terceiro ano, fazendo com que todos os alunos caíssem no chão atordoados, incluíndo Niamh. Elroy pegou em Niamh e transportou-a até ao lago nas suas costas, esperando que ela acordasse do atordoamento. E então ela acordou, a cara ainda perturbada e com lágrimas secas e os olhos vermelhos de tanto chorar. Damian abraçou-a e prometeu-lhe que nunca ninguém lhe iria tocar com um só dedo ou cabelo, que quem fizesse isso morria pelas próprias mãos dele. E a partir desse dia acabaram a zanga que já durava há dois anos e tornaram-se ainda melhores amigos do que naqueles tempos passados na praia descontraidamente.
- Tu só és um ano mais velho que eu. -disse Niamh arqueando a sombracelha.- Eu sou bem capaz de me defender agora.
- Quando te vi nas mãos daqueles vagabundos a ser usada, jurei para mim próprio que era a última vez que via alguém que eu gosto a sofrer, já me bastou assistir à morte dos meus avós. -aquela era a parte proibida, Niamh nunca tinha falado com Damian sobre os avós, nem sabia sequer como é que os seus pais e os avós tinham morrido.- Às vezes de noite ainda os ouço gritar, como se estivessem naquele quarto e eu os pudesse salvar desta vez. Mas fui demasiado cobarde, fiquei a olhar aparvalhado para eles a morrer em vez de me sacrificar por eles. -Damian fechou os olhos e Niamh reparou que ele estava a fazer um esforço para não chorar.
- Queres falar sobre isso? -confortou Niamh, acariciando-lhe as costas da camisola larga que iludia o corpo de Damian como sendo mais largo e encorpado.
- Não, esquece o que eu disse. Eu vou para Hogwarts e tenho uma família aqui. -Damian sorriu para Niamh e ela retribuíu o sorriso.- Não posso pensar no passado, a minha família já não é essa.
Um comboio passou na linha à frente deles e fez um som ensurcedor. Niamh e Damian olharam ambos para as inúmeras cabeças de pessoas que iam dentro do comboio, umas morenas, outras loiras, outras ruivas e até dois japoneses vestidos como empresários, com uns óculos com armação preta. O comboio foi abrandando e travando e chiou fortemente, fazendo com que Niamh tivesse de tapar os ouvidos com a palmas das mãos. As portas abriram-se de par em par, e todas aquelas pessoas atarefadas e com pressa saíram e empurravam as que iam na sua frente, tentando chegar mais depressa ao trabalho. De entre aquela multidão de pessoas vestidas de várias cores e formas, apenas uma chamou a atenção de Damian e de Niamh, um rapaz aparentemente normal. Desceu majestosamente o vagão e ajeitou o seu extenso sobretudo preto com um emblema de uma serpente no lado esquerdo. Poisou o seu malão de cabedal preto envernizado no chão para poder puxar os cabelos loiros para trás. Aparentava os seus dezasseis, dezassete anos, já tinha o corpo de um adulto: os ombros estavam salientes e a cara era esguia, com uns olhos azuis claros gélidos e frios como o gelo. Damian acenou a mão no ar para que o jovem a pudesse ver, quando a viu não fez qualquer expressão de saudação e pegou na sua mala. Arawn Malfoy, era esse o seu nome, o conhecido rufia de Hogwarts. Porém ninguém o conhecia por esse nome, era muito díficil de pronunciar, toda a gente o conhecia por Harven ou simplesmente por Malfoy. Havia vários boatos em relação a ele, e Harven sentia-se orgulhoso por isso mesmo. Dizia-se que ele era filho de Voldemort e que era adoptado por Malfoy, visto que ele tinha uma cicatriz no braço que se parecia vagamente com uma caveira. Outros dos boatos era que ele era cúmplice do Corvo, e que também o ajudava a assassinar as pessoas do Ministério. Os passos de Harven eram rápidos e precisos, com um ligeiro cambalear de ombros e do tronco, que o faziam ficar mais atraente e despertar alguns suspiros de umas raparigas Muggles que o viam pela janela do comboio.
- Damian, saudações amigo! -cumprimentou Harven batendo nas costas de Elroy.- Quantas vezes ficaste de castigo? -aquela era uma das perguntas que Harven fazia a todos os alunos que conhecia, era como uma marca dele, ninguém iria perguntar uma coisa tão absurda como aquela.
- Muitos, perdi a conta por acaso. -respondeu Damian com um sorriso torcido e maroto.
Harven felicitou-o com uma pancada nas costas e de seguida virou-se rapidamente para Niamh, fazendo com que o pequeno brinco na orelha esquerda brilhasse com a luz do sol.
- Estás suja aqui, Bole. -disse ele, passando o dedo pela cana do nariz para mostrar a Niamh.
A ruiva teve o impulso de esfregar a cana do nariz com força e verificar os dedos para ver o tipo de sujidade que tinha, mas as suas mãos saíram limpas e sem qualquer vestígio de pó ou de outra coisa.
- Ah, desculpa, eram as tuas sardas! -troçou Harven, abafando um riso escarninho e maldoso.
Arawn era sempre assim, imaturo e grosseiro, por isso Eion sempre olhava de esguelha quando Damian falava nele em casa. O juiz aconselhava Damian a afastar-se dele, afirmando que ele não era igual a Draco, era irreverente e rebelde, talvez por ter sido educado na ausência da mãe. Eion era muito exigente em relação às amizades dos jovens da casa, ele próprio as escolhia ou acabava, e se algum deles ousasse contradizê-lo Eion proibiria a eles terem quaisquer amigos sem ser aqueles que ele escolhia.
Niamh enfureceu e ficou com a cara vermelha, como sempre ficava quando se irritava. Ela já sabia que as sardas que lhe ornamentavam o rosto eram feias e pouco atraentes, não era preciso repetir isso de novo. Ainda por cima vindo da boca do rapaz mais popular e concorrido de Hogwarts.
Harven enfiou a mão pelo bolso de trás das calças de ganga gastas e rasgadas nos joelhos e na base e tirou uma pequena embalagem rectangular com a cor branca e vermelha. Abriu-a e tirou de lá um pequeno papel branco e amarelo envolvido numa espécie de erva seca. Niamh perscutou o objecto com uma intensa curiosidade de saber a função, nunca tinha visto nenhuma pessoa com aquilo. Damian, pelo contrário, olhava aquela pequena coisa na mão de Harven com uma paixão e admiração inimagináveis.
- Cigarros Muggles! -sussurrou Damian, mexendo bem os lábios e os maxilares.- Onde os arranjaste? Eu nunca os encontrei em lado nenhum.
Harven olhou em volta desconfiadamente, de seguida puxou discretamente a varinha para fora e murmurou "Incendius". A ponta do cigarro tornou-se incandescente e depois apagou-se e saíu um fumo intenso para a direcção de Niamh, o que fez com que ela tossisse. Malfoy levou o cigarro à boca e soltava o fumo à medida que o sugava mais. De seguida deu de ombros e apontou com o dedo para uma máquina encostada contra um pilar.
- Há disso por todo o lado. Montes e montes de máquinas daquelas por todos os sítios...Mas não tenhas esperanças! Aquilo só aceita dinheiro Muggle. -explicou Harven enquanto soltava argolas de fumo pelo ar.
- Então como conseguiste o dinheiro? -indagou Damian, olhando a máquina com um prazer indescrítivel.
- Conheci um Muggle nas férias às escondidas do meu pai. Pedi-lhe algum dinheiro para fazer uma camada à minha mãe.
- Chamada!... -corrigiu Niamh, pois já tinha lido essa palavra num dos livros da biblioteca sobre os costumes e aparelhos Muggles.
- Certo, chamada. -concordou Arawn gesticulando com a mão. De seguida murmurou para que ninguém o pudesse ouvir.- Ravenclawzinha de esterco.
Damian arqueou as sombracelhas para encorajar Harven a continuar o que estava a dizer.
- Sim, e depois fui a um bar que havia lá perto e tirei esta beleza. -continuou, mostrando a caixa dos cigarros a Damian.- Mas aquele sacana só me deu dinheiro para comprar uma caixa, se o meu pai sabe que ando a fumar cigarros Muggles mata-me.
Niamh já tinha lido também sobre fumar nalgum livro, e lembrou-se que aquilo matava lentamente, mais lento e dolorosamente do que um Crucius. Observou Harven entregar um cigarro a Damian, e observou-o também o acender com um pequeno Incendius. Elroy tossiu nas primeiras vezes que inspirava todo aquele fumo, mas logo depois se habituou à sensação e chegou a fechar os olhos para sentir o calor e o sabor entrar-lhe e consumir-lhe o corpo.
- Isto é realmente bom... -confessou Damian, olhando para o cigarro com vivacidade.- Nada comparado com os cachimbos bruxos, aquilo não é droga alguma.
Harven virou a cabeça para o tecto e soltou o fumo num ciclone que se desvaneceu no infinito.
- Por vezes gostava de ser Muggle. As coisas que eles usam são muito mais pesadas e violentas que as nossas. -disse Arawn, tirando o cigarro quase consumido da boca para o atirar para o chão e esborrachar os seus restos com umas botas envernizadas mal apertadas.- Os cigarros são muito mais pesados que o cachimbo, eles divertem-se a fazer corridas com aquelas coisas parecidas com coches e vêem as notícias naquela coisa meia quadrada que mostra imagens em movimento.
- Carros e televisão! -acrescentou Niamh, pondo a mão num ombro em sinal de timidez.
Arawn olhou para ela e semi-cerrou os olhos, pegou avidamente no braço dela e apertou-o com alguma força.
- Não me corrijas sua Ravenclaw feita de esterco... -ameaçou.
Ele iria dizer mais alguma coisa além daquele insulto, mas não deu tempo para Harven o transmitir em voz alta, Damian já tinha apontado a varinha discretamente às costas dele.
- Larga-a ou enfeitiço-te aqui no meio da estação, e serás troçado por todas aquelas raparigas do sétimo ano que estão além.
Harven sentiu-se ameaçado quando ouviu a palavra "raparigas". Ele era o engatatão da escola, e não podia manchar a sua reputação com um simples feitiço da única pessoa que considerava um amigo. Baixou o braço e olhou para trás à altura dos ombros.
- Tens de deixar de andar com esta pardalita, Damian. Só te traz problemas, mudas completamente quando estás ao pé dela.
Niamh olhou fitou o cabelo de Harven com raiva, e pela primeira vez na vida teve vontade de esbofetear alguém. E bastava apenas levantar a mão, ele estava distraído e a apenas uns centímetros de distância.
- Esta pardalita é a minha única amiga, e foi aquela pessoa que me ajudou quando ninguém podia dar-me atenção. -declarou Damian, enquanto afagava o braço ferido de Niamh.- E ela não se chama pardalita ou Ravenclaw, é Niamh.
Arawn olhou irónicamente para os dois e passado um pouco soltou uma risada gracejante e estridente. Não era raro este comportamente em Harven, ele sempre tinha sido estúpido e para escapar às situações embaraçosas dava gargalhadas.
- Vocês davam um belo casal, sabem? Os otários normalmente dão-se bem uns com os outros. -e tirou outro cigarro do bolso traseiro das calças, afastando-se dali com a mala de cabedal na mão e o cigarro por acender colocado na boca.
Damian mirou Malfoy dirigir-se até ao pilar número nove e entrar descontraidamente através deste. Niamh olhou para um grande relógio suspenso no tecto que marcava as onze menos vinte cinco da manhã. O expresso já tinha chegado à plataforma nove e três quartos e a passagem já estava aberta. Damian tirou o cigarro da boca e lançou-o ao chão, apagando-o com as suas sapatilhas compradas numa feira Muggle. De seguida pegou nas suas coisas e ajudou Niamh a pegar nas dela, e ambos caminharam cambaleantemente até ao meio dos pilares nove e dez. Damian escolheu ser o primeiro, olhou em volta e depois correu rapidamente até ao pilar nove, desvanecendo-se na parede de tijolo sujo e cheio de pastilhas elásticas secas. Niamh repetiu o mesmo gesto de Damian, olhou para os lados desconfiadamente e respirou fundo. As malas impediam-lhe de correr rápido, então para não chamar a atenção decidiu andar calmamente e encostar-se ao pilar para passar discretamente para o outro lado.
Niamh ouviu o apitar do comboio, aquele ruído ruidoso e antigo que ouvira sempre desde há cinco anos atrás, quando entrou para o primeiro ano em Hogwarts. A locomotiva era sempre a mesma, uma antiga que funcionava a carvão e que exalava um fumo insuportável. Niamh lembrou-se vagamente das histórias sobre cowboys que lia e associou aquele cenário como um "mágico faroeste". Sorriu discretamente e arrastou a mala pelo chão rapidamente para acompanhar Damian, que já a aguardava de testa arregalada.
Aquela hora não havia movimento nenhum ao longo daquela única linha sob o tecto escuro e húmido da estação, que terminava num pequeno ponto luminoso e verdejante quando se olhava para o horizonte. Niamh pensou instantaneamente em entrar num vagão e encontrar uma cabine vazia (que de certeza que seriam muitas) para irem confortáveis durante a viagem até Hogwarts, principalmente sem terem de a dividir com infortunáveis companhias como acontecia todos os anos. Normalmente partilhavam os seus doces e lugares com miopes ou gagos, aquele tipo de pessoas que à primeira vista parecem ser aborrecidas. Puxou o braço de Damian e ambos subiram o degrau em metal do vagão, cumprimentando um elfo doméstico que alcançava apenas os quadris de Damian. Viram o cabelo loiro de Arawn ao fundo do corredor, entrando solitariamente numa cabine vazia. Damian avançou apenas algumas cabines e abriu a porta ferrugenta de uma, que parecia mais velha e gasta que todas as outras.
- Porque escolheste logo esta? -indagou Niamh, com a voz num tom irritado.
- Espertinha, assim esta vai ser a última cabine que vão escolher para ficar! -explicou Damian, imitando um deficiente. Poisou o malão em cima do sofá encarnado da cabine e fez com que algumas molas saltassem e furassem o estofo.
Niamh entrou calmamente, revirando os olhos enquanto colocava o malão no suporte metálico para as malas mesmo em cima dos bancos. Como era muito baixa, teve de apoiar os joelhos no sofá e mais outras molas romperam o estofo e saltaram para o chão. Depois deixou-se cair no sofá semi-inteiro e esfolou as pernas nas molas deste.
Damian olhou atentemente para a sua mala, e de repente teve um sobressalto, abrindo-a rapidamente e dizendo:
- Acho que te esqueceste de alguma coisa em casa.
Niamh fechou os olhos e verificou o quarto pela sua memória, não, pelas suas contas não se tinha esquecido de nada em especial. Só quando viu o que Damian tirava da mala é que a memória lhe tinha aguçado, o vidro estava partido e a madeira da moldura estava carcomida e coberta com grãos de areia.
- A foto da minha mãe, trouxeste-a Damian!
Elroy limitou-se a acenar com a cabeça e entregou a tão desejada moldura a Niamh. Selena estava particularmente bonita naquele retrato, era no casamento dela com Eion, a mãe de Niamh vestia um longo vestido encarnado com luvas que chegavam até aos cotovelos, e o seu cabelo estava solto e selvagem como num dia normal. Ela era igual a Niamh, o que as diferenciava verdadeiramente era a cor dos olhos e a forma da cara, a cara de Selena era mais redonda e uniforme que a de Niamh, parecia uma boneca de porcelana acabada de comprar.
Niamh segurou a foto contra o peito com tanto carinho que até se emocionaria ao ver a cena. De seguida deitou-a lentamente ao seu lado e agradeceu timidamente a Damian, que a olhava satisfeito e alegre.
- Eu fui lá buscar o meu medalhão e deduzi que te ias esquecer, como em todos os anos. -disse, tirando do bolso das calças o medalhão de ouro e pondo-o no pescoço.
Niamh esboçou um sorriso e tirou a varinha de dentro do casaco, dizendo as palavras "Accio Hogwarts:uma história". Logo depois um livro bastante grosso e usado tinha caído sobre as suas mãos, e Niamh abriu-o mais ou menos a meio, enterrando a cara sobre as páginas.
- Outra vez esse livro! -admirou-se Damian, quando viu pela centésima vez Niamh a lê-lo.
Niamh não baixou o livro e acenou levemente com a cabeça, aquele livro dava-lhe tanto prazer a ler que mesmo o tendo decorado ela voltava a ler. E era em vão perturbá-la enquanto o lia, era a mesma coisa se ela não estivesse lá, porque Niamh não iria ouvir nem uma palavra do que alguém diria. Depois ela baixou rapidamente o livro ao nível dos olhos, fitando a cadavérica cara de Damian observando-a atentamente com um sorriso nos lábios e os olhos sonhadores. Quando ele se apercebeu que a ruiva estava a olhar interrogativamente para ele, disfarçou a expressão de receio e virou a cabeça para a janela, olhando o apogeu da movimentação na linha. Vários alunos todos vestidos com um sobretudo preto com o emblema da sua equipa arrastavam os malões pelo chão apressadamente, tentando chegar rapidamente ao expresso e encontrar cabines vazias. Algumas caras já eram conhecidas, outras eram novas e olhavam para todos os lados com um interesse e curiosidade devorador. Alguns alunos do sexto ano rodearam um pequeno garoto do primeiro ano como hienas e roubaram-lhe alguns dos galeões que levava num saco preso ao cinto das calças. Niamh não suportava estas injustiças com os caloiros, embora ela fosse uma das que mais pregavam partidas da escola, enfiou de novo os olhos no livro e continuou a ler vorazmente.
De repente a porta abriu-se e acabou por cair aos pés dos dois adultos sérios e aparentemente antipáticos, um de cabelos pretos despenteados e o outro com longos cabelos ruivos abaixo do ombro. O ruivo fez uma careta e disse entre gargalhadas:
- Lá se foi a nossa cabine habitual.
O de cabelos pretos cotovelou o ombro dele e murmurou algo como "Estamos em trabalho". Os dois recomporam-se e ajeitaram as suas largas camisolas simples e encarnadas. Pediram permissão a Damian para entrar e ele confirmou, fazendo um simples gesto com a mão. O ruivo tossiu e Niamh levantou os olhos do livro, semi-cerrando-os para os olhos verdes do de cabelo preto. Os adultos sentaram-se ao lado de Damian pouco à vontade e cumprimentaram-no com um aperto de mãos.
- Somos Aurores... -gracejou o ruivo com um sorriso triunfante.
Damian e Niamh trocaram um olhar e abafaram um riso com a inutilidade daquela frase.
- Sou o Potter. -explicou o de cabelos pretos, com a voz mais professional e séria.- Aquele é o Weasley. Permitiram-nos interrogar os alunos na viagem para Hogwarts, a fim de sabermos mais sobre o paradeiro ou alguma informação sobre o Corvo ou sobre o Herdeiro de Voldemort.
Weasley estremeceu ao ouvir o nome do feiticeiro que fora morto por Potter quando este andava no sétimo ano. Ainda não se tinha habituado à ideia de já poder falar o nome dele. Potter fulminou-o com um olhar e continuou:
- Então...Algum de vocês sabe?
Damian e Niamh olharam um para o outro, eles já estavam tão habituados a falar telepaticamente que muitas vezes permaneciam em silêncio. Já tinham ouvido falar do Corvo no Profeta Diário e em alguns jantares em casa, mas nunca tinham ouvido falar no Herdeiro de Voldemort, mas pelo nome temeram o pior.
- Nunca ouvimos falar nesse tal de Herdeiro. -aventurou-se Damian, abraçando uma perna com os braços.
- 'Tás a brincar! -exclamou Weasley, arregalando os olhos.- Essa história deve ser provavelmente a mais contada desde há um ano atrás.
Niamh perscutou Weasley com os olhos e não gostou dele, era demasiado imaturo e atrevido para o seu gosto. Fechou o livro rapidamente e fez um ruído seco, e todos os ocupantes da cabine olharam para ela. De seguida poisou o livro no sofá semi-inteiro e cruzou os braços no peito.
- Bem... -começou Potter, passando os olhares desde Damian até Niamh.- Quando eu andava no quinto ano, dizia-se que Voldemort tinha engravidado a Lestrange. Provavelmente uma história inventada nas lareiras, pensei. Mas depois, passado nove meses dessa história ter sido contada, ela foi encontrada morta, e foi autopsiada como morte pós-parto. Terá se pensado que Voldemort a tenha feito sofrer durante o parto, para que ela pudesse morrer quando este acabasse, dando a ele o respectivo herdeiro dos poderes. Pensem bem, um filho de Voldemort, com todos aqueles poderes, e filho da Lestrange, com toda aquela beleza e sensualidade, seria uma óptima estratégia para o Mal voltar a reinar. Desde aí que os Aurores foram se interessando mais nessa história, mas passado uns anos sem receber indícios e com Voldemort morto decidiram deixar o caso à parte. Mas, há exactamente um ano atrás, apareceu Lucius Malfoy morto em Azkaban, com uma mensagem escrita na parede com o seu próprio sangue.
- O Herdeiro chegou, socorro. -interrompeu Weasley, tentando ganhar algum prestígio.
- Certo... -continuou Potter.- E toda a gente sabe que nada assustava o velho Lucius, com este aviso dele eu e o Weasley começámos a investigar e a entrevistar pessoas, ao contrários de todos os outros Aurores que se interessam mais pelo Corvo.
Niamh ouviu a história atentamente e com a boca semi-aberta. Damian permanecia sério e com uma expressão fria e sem sentimentos, de seguida clareou a voz e indagou:
- Então, pensam que um de nós é o Herdeiro?
- Não, claro que não. Mas sabes, nós temos a experiência que normalmente os alunos de Slytherin sabem mais coisas sobre isso do que os outros.
- Mas pensou mal! -interrompeu Niamh, com uma voz cortante e gélida como a morte.- Eu sei uma coisa sobre o Corvo, se vocês não leram a manchete no Profeta Diário. Ele foi visto na floresta ao pé da minha casa.
Weasley cruzou os braços e revirou os olhos:
- Sim, sim, nós lemos o Profeta Diário todos os dias. Mais alguma informação que tenham?
Niamh deu de ombros e encostou-se ao sofá confortavelmente, olhando Damian fitar o chão com a cabeça noutro mundo. Ouviu-o fazer uma espécie de um latido e fraziu as sombracelhas.
- Damian...O que foi isso? -indagou.
O loiro tapou a boca com a mão e com os olhos arregalados sussurrou algo como "Não sei". Potter arqueou as sombracelhas e disse-lhe:
- A tua cara faz-me lembrar alguém...Deve ser só impressão minha.
Weasley franziu o sobrolho e tirou do bolso das calças de ganga um bloco de notas velho e usado, com a capa dobrada e amarrotada.
- Como são os vossos nomes e sobrenomes, mesmo? -indagou, pegando numa pena e conjurando um frasco de tinta que levitava.
Niamh olhou-o de alto a baixo, mas pensou que seria melhor responder-lhe, já que ele era um adulto e para agravar ainda mais era um Auror.
- Niamh Bole e Damian Elroy.
Weasley escreveu os seus nomes com a pena, apoiando o bloco de notas na palma da mão. Niamh não resistiu à curiosidade e espreitou discretamente para a folha, e viu uma grande lista de nomes desconhecidos e alguns riscados avidamente por cima.
- Eu não autorizo a divulgação do meu nome em circunstância alguma! -alertou Damian, olhando-os com desaprovação.
- Claro, claro; nós só estamos a apontar a quem nós já fizemos a entrevista. -explicou Weasley, fazendo desaparecer a pena e o bloco de notas no ar com um toque de varinha.
Potter levantou-se e agradeceu pela disponibilidade, de seguida saiu pela soleira da porta, puxando Weasley pelo braço.
Damian também se levantou e pegou na porta caída no chão para apoiá-la na soleira da porta, esperando que com os movimentos do comboio esta não caisse. Voltou a sentar-se e esboçou um sorriso irónico para Niamh, dizendo:
- Aurores.
A ruiva sorriu e pegou novamente em "Hogwarts: uma história" para continuar a ler. Enfiou o nariz pelas páginas e descodificou rapidamente as palavras. Estava a ler sobre as punições antigas em Hogwarts (claro que Dumbledore já tinha desistido de algumas) e uma chamou-lhe especialmente à atenção. Dizia que qualquer aluno não se poderia envolver com alunos de equipas diferentes, apenas com a dele, e se era descoberto seria punido com uma poção de amor para se apaixonar pela primeira pessoa da sua equipa. "Que horrível" pensou Niamh "Acho que se essa regra ainda existisse metade dos alunos andariam cabisbaixos, mas também, de que é que isso me interessa? Ninguém gosta de mim, nem eu gosto de ninguém"
Na verdade, Niamh nunca tinha amado, apenas tinha sentido uma atracção por Arawn no segundo ano, e uma atracção por Damian no terceiro, quando eles voltaram a ser os melhores amigos. Mas nessas duas experiências ela tinha sido iludida por um par de olhos bonitos e de corpos esbeltos, nada mais; nem sequer sabia o verdadeiro significado do amor. Tinha lido em livros de poesia Muggle uns excertos de sonetos sobre amor, mas aquilo não lhe valia nada, aquilo era a sensação do amor para os autores, não para ela, e cada autor tinha uma ideia diferente. Uns diziam que o amor é fogo que arde sem se ver, outros lamentavam-se e diziam que era a pior coisa do mundo.
- O que é o amor, Damian? -indagou, sem tirar os olhos do livro.
Elroy admirou-se com a súbita pergunta e riu-se para disfarçar a atrapalhação.
- Toda a gente sabe o que isso é, é uma atracção e uma forte empatia com uma pessoa. -respondeu, com um tom de troça.
- Não! Eu estou a perguntar o que é para ti o amor. -corrigiu Niamh, levantando por fim a cara do livro e olhando seriamente para o fundo dos doces olhos de Damian.
Bole estava habituada a receber uma resposta fria e insensível por parte de Damian, ele não era romântico, nem de longe, e só gostava das raparigas pela parte física. No entanto, Elroy olhou pela janela para os campos verdejantes, com pequenas flores brancas e grandes árvores ao fundo, e um pequeno lago azul reflectido pelo ceu limpo. Parecia inseguro e sonhador, olhava a paisagem com tanta paixão que até doía o coração.
- O amor é como um rio. -começou, continuando a fitar a extensa e lindíssima paisagem.- Ele nasce, corre, aumenta e desagua. E quando nasce e corre pelo rio principal ninguém o pára até morrer no mar. Quando corre pelos afluentes já é diferente, há vários e vão ter de passar por obstáculos, e por vezes a maior parte não consegue chegar. Mas há sempre um que chega ao rio principal.
Niamh arrepiou-se com a sensibilidade das palavras que Damian tinha dito, nunca pensara que ele tinha tanta vocação para divagar. Mas para sua própria admiração ele continuou:
- E quando eu disse que nunca se pára, é porque não se pára. Nem que a outra pessoa seja seu irmão, a água não pode simplesmente desaparecer ou se evaporar. -por fim Damian voltou a concentrar a sua visão no presente e em Niamh, e esboçou um pequeno sorriso triste.
- Mas o que é que tu sentes quando estás apaixonado por alguém? -indagou Niamh, pondo o livro de lado e interessando-se ainda mais na conversa.
- Vontade de estar com a pessoa todos os segundos, vontade de tocar na pessoa mas não o fazer por ter medo de nunca mais a conseguir largar e não conseguir tirar os olhos dela, mesmo que nos obriguemos a isso.
Niamh iria fazer mais outra pergunta, Damian percebia sobre assuntos amorosas, embora ele nunca tenha namorado com nenhuma rapariga de Hogwarts; mas subitamente a porta caíu de novo para trás e do outro lado estava uma garota do primeiro ano, de olhos mel ainda mais claros que os de Damian e cabelos curtos e pintados de magenta. Entrou para dentro sem dar explicações e apoiou de novo a porta na soleira.
- Eu conheço-te? -perguntou Niamh irónicamente.
A garota sentou-se ao lado de Damian, um pouco afastada dele, e poisou o seu pequeno malão púrpura no chão. De seguida estendeu o braço e apertou a mão a Niamh.
- Íris Nymphadora.
Niamh arqueou a sombracelha e retirou a mão, encostando-se ao sofá e olhando para o tecto esburacado da cabine.
- Então...Primeiro ano, hein? -arriscou Damian, tentando ser simpático.
- Sim. -Íris mostrou um leve sorriso.- Espero que seja Slytherin, como os meus pais.
Damian sorriu torcidamente e cruzou os braços ao peito, a garota aparentava ter um perfil próprio de Slytherin, tinha respostas rápidas, frias e precisas.
- Os Aurores já vos entrevistaram? -indagou Íris, olhando para Niamh.
- Sim, sim. Foi entediante, não sabiamos nada sobre isso e tivemos de aguentar com a história. -respondeu Elroy, revirando os olhos.
Íris pegou na sua mala e abriu-a rapidamente, tirando um papel de pergaminho velho e amarrotado. De seguida fechou a mala e voltou-a a pôr no chão.
- A minha mãe tinha-me dado isto antes de ir para a América. -explicou-se, entregando o pergaminho a Niamh.- O Auror Potter parecia bastante interessado nele e queria-o levar, mas eu não o deixei. É só um pedaço de pergaminho e não tem nada lá escrito! Podes ver se tem algum feitiço aí escondido, Niamh?
A ruiva admirou-se de como ela sabia o seu nome, Íris deu uma gargalhada clara e estonteante e acrescentou:
- És muito conhecida, mais do que imaginas. Falam muitas vezes de ti na minha casa, de como tu lês e sabes mais do que muitos dos bruxos nas mais altas classes. E têm-te muita confiança, achei que talvez saibas o que isto significa para o Potter.
Niamh pegou no pedaço de pergaminho e guardou-o entre as páginas do livro.
Faltava pouco para chegar a Hogwarts, e já se conseguia ouvir os passos da senhora dos doces ao fundo e a sua estridente voz perguntando "Doces?".