Ele abriu os olhos e viu a claridade abundante em seus olhos, sentou-se na cama e ficou assim por alguns segundos até que seus olhos se acostumassem com a luz. Trocou-se e saiu do quarto.
Não podia reclamar, estava precisando mesmo descansar, até porque não tinha superado a morte de Sirius, mas do jeito que estava ele ficava angustiado por notícias, informações ou qualquer coisa, mesmo que não fresco, mas que lhe desse uma noção do que estava acontecendo. Há duas semanas estava totalmente isolado do mundo mágico.
Tirou a frigideira de dentro do armário e separou alguns ovos para o café da manhã. Viu a porta aberta e deixou a panela na pia.
-Nadijah?
Saiu para a pequena varanda e a encontrou dormindo na cadeira de balanço, com um livro na mão, parecia ter virado a noite ali. Resolveu voltar a fazer o café da manhã e só acordá-la na hora em que estivesse tudo pronto.
Salsichas, bacon, ovos e um suco fresco deixaram a mesa desejável, mas ele saiu da casa e desceu os quatro degraus e olhou para o vasto campo cheio de mata e de flores a sua frente. Era agora um típico morador do campo, ou pelo menos fingia ser.
Andou alguns passos e colheu algumas flores, já havia reparado que Nadijah fazia isso todas as manhãs, não custava nada fazer isso hoje por ela.
Subiu novamente os degraus e parou em frente a ela, observando-a. Ela era estranha. Sabia que Dumbledore não estava mentindo, mas ela não falava em nada que pudesse parecer que ela perdera a mãe recentemente ou que sofria com isso. Também não falava muito de si nem de seu pai e muito menos de seu país, mas fazia perguntas o tempo todo. Carregava sempre no pescoço um cordão cujo pingente era uma pedra vermelha de porte médio e sempre tinha um livro para ler, mas nunca os lia até o final, lia os primeiros capítulos e então folheava as folhas, tentando entender o que se passava. Não falava porque estava ali ou se queria ir embora. Não usava magia e parecia viver como uma completa trouxa, como se nem mesmo conhecesse isso.
Ela abriu os olhos e se deparou com Remo a olhando, Nadijah sorriu.
-Bom dia, Remo.
-Bom dia.
Ela se levantou da cadeira e se espreguiçou.
-Flores pra mim?
-Ah! Bom, de um certo modo sim, peguei para colocar na jarra, como você faz.
Ela sorriu e tomou as flores dele, entrando e indo pegar o jarro. Ele entrou também e sentou-se à mesa, tentando disfarçar o incomodo que sentia. Não sabia como ela levava toda aquela situação, mas para ele aquilo era maluquice. Nadijah colocou o jarro e sentou-se à mesa também.
-Hoje à noite, não é Remo?
Ele levantou os olhos para ela.
-O que é hoje à noite?
-A lua cheia.
É mesmo, ele havia se esquecido, esta noite era noite de lua cheia. Ela já sabia da condição dele, e parecia não se importar, afinal, uma semana antes ele já havia tomado a poção mata-cão e esta noite deitaria calmamente no chão de seu quarto, para ser um cão bonzinho.
-Aham, hoje à noite.
-Nunca conheci um lobisomem, sabe?
Era isso que detestava nela. Nadijah nunca falava de si, mas entrava em seus assuntos pessoais como se fossem um livro aberto, mas o problema era que ela falava tão naturalmente que ele acabava se revelando sem perceber, às vezes falava coisas que não queria ou até mesmo que não podia. E toda vez que fazia isso lembrava de Dumbledore afirmando que ela podia ser um perigo.
-Não perdeu nada, aposto.
-Posso vê-lo hoje à noite?
-Não.
-Não?
-Não.
-Por quê?
-Primeiro porque eu não quero, segundo porque pode não ser seguro e terceiro porque não creio que isso vá levar a algum lugar.
Ela deu de ombros e fez bico.
-Você é tão racional, Remo...
-Eu sou ou você é?
O tom sério e a encarada profunda fez com que a pergunta soasse mais insinuante do que ele gostaria, não queria provocá-la.
-Ok, eu não sou das melhores...
Tomaram café sem conversar das futilidades do dia a dia, até porque não havia muito dia a dia para se comentar. Não havia muito o que fazer além de coisas para arrumar, jardim para manter, comida pra fazer. Nem parecia que há menos de um mês ele vivia em função de uma guerra.
-Você não sente vontade de conversar, Nadijah?
Alguém de fora ao ouvir a perguntar estranharia, afinal, o que eles estavam fazendo ali? Mas ela entendeu muito bem do que ele estava falando.
-Às vezes... Às vezes também sinto vontade de sair desse estado de felicidade idiota, de sentir algo mais como raiva, tristeza, alegria por algo definido ou até confusão, mas eu sempre sou assim calma, normal, impassível, inabalável e diferente assim. Se alguém morre –quando ela falou isso ele teve certeza que ela estava referindo à sua mãe- não me afeta tanto, afinal morrer é parte do ciclo da vida. Ninguém completa o ciclo sem morrer. Por isso não me abalo, mas não acho que os outros concordem comigo.
-Não, eu não concordo.
Ela sorriu para ele, pegou uma fatia de pão e passou um pouco de geléia de morango.
-Então o que a morte significa para você?
-Ausência. Falta de plenitude, perda de momentos, gestos e palavras, de risadas, ressacas e angustias. A morte pode ser o fim do ciclo de uma pessoa, mas é um pedaço que fica faltando no ciclo de outra.
Ela parou de mastigar o pedaço de pão e ficou olhando para ele, encarando-o nos olhos. Abriu a boca para falar algo, mas então o vento soprou um pouco mais forte e derrubou o jarro, espalhando água sobre a mesa.
-Ah não... Vá ali, Remo, pegue um paninho pra limpar isso!
Ele a ajudou a limpar a mesa, mas depois cada um foi fazer algo diferente. Ela passou o dia mexendo no jardim e conversando com as plantas. Ele leu um pouco e aproveitou o tempo livre para estudar mais sobre poções, coisa que há muito queria fazer.
Quando começou a escurecer ele tomou banho, deixou suas coisas ajeitadas e ficou no seu quarto esperando a transformação que foi como sempre foi. Dolorosa, como se suas células estivessem se partindo, como se tivesse uma faca em cada parte do seu corpo, o rasgando por todos os poros, como se estivessem lhe jogando ácido no corpo e tudo estivesse se derretendo.
Mas então passava.
A mente ficou tranqüila e ele ficou quieto no seu quarto. Com os sentidos mais aguçados a sua mente canina conseguia distinguir melhor os sons que aconteciam por ali. Percebeu que algo se movia intensamente durante toda a noite, e ouviu a alguns sons fracos que ele não sabia o que era.
Sua mente apesar de um pouco mais controlada, ainda assim pertencia a um lobo, e por isso ele sentia, mas não entendia as coisas. Podia sentir o barulho seco no soalho no cômodo ao lado, mas aquilo não seria muito diferente de qualquer outro som.
Mas então veio o cheiro.
Aquilo ele sabia distinguir, sabia que gostava daquilo, e o pior, que desejava aquilo intensamente. O corpo e mente que até então estivera em inércia finalmente despertara, e ele não pôde lutar contra seus instintos naturais.
A porta do seu quarto foi arremessada longe e a do quarto dela foi derrubada. Havia sangue no ar, não sabia o porquê, mas nem queria saber, sabia que precisava de sangue.
Ele seguiu na direção que seu faro indicava, ainda que algo no seu subconsciente tentasse resistir a isso. Quando sua boca sentiu o gosto perfeito na mesma hora seus ouvidos ouviram o horror. Ele se afastou retraído, com algum vestígio de mentalidade humana, e correu para fora da casa, sumindo no jardim.
