Harry percebeu que Remo não ocupava a cadeira do professor de DCAT quando ele entrou no Salão Principal, o que era estranho. Olhou para Mione, percebendo que a amiga notava a mesma coisa.
Ele ficou estranho depois da saída do Malfoy da nossa cabine... –disse ela.
E saiu correndo quando o trem parou –completou ele.
Rony entendendo a conversa dois instintivamente olhou para a mesa onde os professores se sentavam.
Vocês não acham que algo aconteceu, acham? –perguntou Rony receoso.
Mione ficou alguns poucos segundos calada, então voltou a falar.
Talvez não tenha acontecido, mas possa vir a acontecer.
No fim do mês? –indagou Harry.
Rony e Mione olharam para ele estranhando a observação do amigo, Harry então completou seu pensamento.
Ele ficou perturbado quando Malfoy falou que o pior aconteceria no fim do mês.
Ah, mas obviamente é a transformação em lobisomem dele –disse Rony, dando de ombros- Malfoy só estava o provocando.
Talvez sim, mas talvez ele estivesse se referindo a alguma outra coisa –respondeu Harry.
Mione ficou calada observando os dois imaginarem o motivo do professor Lupin não estar ali, mas uma coisa mudou o rumo do pensamento dela.
Harry, você por acaso não tem tido sonhos, tem?
Ele abaixou os olhos.
Duas vezes neste verão –respondeu ele baixinho, com medo da reação de Hermione.
Mas ela não brigou, embora seu semblante não fosse dos melhores. Ao invés disso se ajeitou no banco e falou mais baixo, forçando Harry e Rony a se aproximarem para poderem ouvi-la.
E o que aconteceu? Digo, sobre o que Voldemort falava?
Um dos sonhos eu não consigo me lembrar, embora já tenha tentado, só o que sei é que algum Comensal o informava sobre uma mulher ter sido morta... Mas no segundo sonho ele estava planejando algo, falando sobre uma segunda chance, uma chance que ele pensou que estava perdida para sempre.
Ele estava feliz?
Harry somente acenou com a cabeça.
A porta se abriu e começaram a entrar os alunos do primeiro ano, os três então ficaram quietos, mas não antes de Mione olhar Harry inquisidoramente.
Apesar de tudo, é melhor que você não veja mais nada.
Ele balançou a cabeça, sem dizer nada.
Ele andou pelos corredores reparando que a mudança que se operara ali fora drástica e que provavelmente não acontecera de um dia para o outro. Desde o momento em que Nadijah devia ter pisado os pés na Inglaterra aquele lugar já devia estar sendo reformado. Seu antigo esconderijo agora parecia um lugar pacífico e até mesmo aconchegante.
Chegou ao que seria uma pequena sala. Uma mesinha coberta por uma toalha de renda e em cima um jarro de flor era tudo o que havia ali, perto das escadas. Já estas estavam com todos os degraus sólidos e pintados, o corrimão também pintado discretamente.
Os poucos quadros das paredes o olhavam desconfiados, e iam de uma moldura para a outra, comentando a presença dele ali. Remo se deixou ficar ali por algum tempo somente admirando e tentando entender aquela nova realidade.
Ah, você está aí! Bem que Rose, a Intrigueira me disse.
Nadijah estava no alto da escada, linda. Usava um vestido florido um tanto quanto primaveril, tinhas várias pulseiras coloridas nos braços e um par de brincos levemente discretos, no pescoço um mesmo colar que sempre usava, com uma pedra vermelha como pingente. Ela descia as escadas sorrindo com grande naturalidade, como se já pertencesse ao lugar, como se fosse a anfitrião e ele o convidado. Assim que terminou de descer parou em frente a ele.
É bom te ver, Remo. Estava preocupada com você.
Ele não conseguia a imaginar preocupada, fora de sua inércia emocional, mas ainda assim ficou feliz pelo comentário.
Eu que o diga...
Ela abriu uma porta que estava atrás dele e uma ampla sala apareceu. Um conjunto de sofá verde-musgo estava sobre um tapete de renda. Outros vasos de flores se espalhavam pelo cômodo em pequenos cantos. Na lareira no canto da sala havia algumas fotos, dando um aspecto doce ao ambiente. Ele se sentou ainda sem acreditar.
Nunca pensei que esta casa pudesse se tornar tão... diferente.
Papai ajudou Dumbledore a ajeitar esse lugar para que eu pudesse ficar por aqui, mas eu não sei como era antes –disse ela sentando ao lado dele.
Um silêncio se instaurou então, estavam lado a lado, como já queriam há algum tempo, e por isso mesmo as palavras tinham sumido e ambos não sabiam o que fazer. Vasculhavam a mente em busca de algo para falar, mesmo que fosse só para ocupar o tempo. Ele pensou, pensou, mas a sua língua coçava para perguntar algo, mesmo sabendo que isso poderia deixar a situação mais chata entre eles.
E aí, como foi sua transformação?
Ela sorriu e se ajeitou melhor no sofá.
Que transformação?
Ora, em lobisomem.
Nadijah se inclinou sobre uma pequena mesa que estava na frente deles a abriu uma compoteira, tirando um biscoito de dentro dela. Em seguida pegou o objeto e ofereceu a Remo.
Aceita um?
Não obrigado, prefiro somente a sua resposta.
Ela colocou o biscoito na boca e o mastigou vagarosamente, sem desviar os olhos dele.
Você não deveria estar na cerimônia de apresentação?
Vim correndo te ver assim que soube onde você estava.
Ah...
Ela tirou mais um biscoito do pote, mas não o comeu, ficou com ele entre os dedos, somente insinuando o gesto de comê-lo.
Não sei se isso o decepciona, ou talvez até mesmo o frustre, Remo. Mas a verdade é que eu não me transformei no fim da semana que acabou de passar, assim como eu não vou me transformar ao fim desse mês, bem como nunca me transformarei.
Ele a olhou sem entender, lembrava vagamente de tê-la mordido, e lembrava perfeitamente dela no hospital. Nadijah tinha sido mordida por um lobisomem, como não se transformara?
O que você quer dizer com isso?
Já viu aquelas fotos em cima da lareira, Remo?
Não, e não mude de assunto, pare de rodear para me responder. O que você quer dizer com isso?
Olhe as fotos na lareira, Remo.
Ele não teria se levantado e ido ver as fotos na lareira se não tivesse percebido que aquilo não era um desvio de assunto nem um pedido, mas quase uma ordem.
Não havia muitas fotos, mas as poucas que havia estavam todas em belos porta-retratos, e em todas apareciam as mesmas três pessoas, ainda que nem sempre com a mesma idade. Havia fotos de Nadijah quando pequena, com aqueles lindos olhos amendoados, e os mesmos olhos estavam a sorrir em algumas outras fotos. Mas isso não era o mais importante, o estranho é que nenhuma das fotos se movia, todas estavam incomodamente paradas.
Ele olhou para ela sem nada entender.
Lembra-se quando você foi me pegar na estação de metrô? Você disse que não entendia por que estávamos viajando daquela maneira, e eu lhe respondi que não via melhor maneira de viajar. E quando fomos para o campo enquanto este lugar ficava pronto, você com certeza reparou que eu vivia sem praticar uma só magia, como se fosse trouxa. Bom, a verdade é que eu sou trouxa, Remo. Sou filha de dois abortos que se excluíram da sociedade bruxa, e por isso por mais que você me morda, me arranhe ou faça qualquer coisa comigo, eu nunca me transformarei em lobisomem.
"Eu poderia estar em Hogwarts, em algum quarto extra, escondida na sala de Dumbledore ou coisa assim, mas a verdade é que eu não vejo Hogwarts, nem consigo entrar lá, por isso o mais segura que posso estar é aqui. Meu pai é um aborto, e os encantamentos não o afetam, e por isso desde que chegamos ele está lá com Dumbledore, analisando nossa situação e buscando junto a Dumbledore uma forma de nos tirar do perigo em que estamos."
Assim que ela terminou de falar houve um silêncio novamente, desta vez de surpresa. De todas as explicações possíveis que ele já havia elaborado em sua cabeça, essa não era definitivamente uma delas. Trouxa? Filha de dois abortos?
Ele se jogou num sofá mais próximo, olhando para o chão e tentando organizar seus pensamentos. Aquilo não fazia sentido, com certeza não fazia sentido algum. O que Voldemort poderia querer com dois abortos (agora um, sendo que a mão dela havia morrido, provavelmente assassinada por Voldemort) e uma trouxa? E que tipo de perigo eles podiam representar ou correr? Ele levantou os olhos para ela, a olhando num misto de surpresa e indagação.
Nadijah, eu recebi ordens diretas de Dumbledore para não perguntar, e você provavelmente tem ordens para não responder, mas... o que Voldemort quer com você?
Ela sorriu timidamente para ele, que foi sincero ao retribuir o sorriso.
É, eu realmente tenho ordens para não revelar isso...
Então você não vai me contar?
Eu não disse isso.
Um elfo doméstico entrou na sala.
Uly veio saber se minha senhora precisa de alguma coisa, ela e seu convidado.
Duas xícaras de chocolate quente, por favor, Uly.
O elfo saiu e ela começou a brincar com o pingente do colar que usava, aparentemente sem perceber que ele ainda esperava uma resposta, somente depois que o elfo trouxe as xícaras e saiu é que ela voltou a falar, depois de tomar um gole da bebida.
Não tem como eu te dizer sem antes explicar a história da minha família e do meu país. A verdade é que a Mongólia estava há muitos anos em uma guerra civil, e as famílias tinham sido privadas de suas identidades, de seus sobrenomes. A guerra gerou uma pobreza generalizada entre as pessoas, embora os bruxos tenham conseguido se manter até certo ponto sem serem atingidos pela guerra trouxa. Tanto o meu pai quanto a minha mãe nasceram numa família de longa tradição bruxa, mesmo que eles nem sequer soubessem seus sobrenomes, mas havia um certo orgulho bruxo, uma aura de superioridade da qual eles foram excluídos (e até mesmo se excluíram) por não nascerem com sangue mágico.
"Eles se conheceram ainda jovens e foi como se o problema em comum dos dois os unissem, eles se apaixonaram e se casaram, e eu nasci quando a minha mãe tinha 22 anos. Um filho costuma ser o orgulho e a luz na vida dos pais, mas eu era muito mais que isso, eu era a esperança. Se por acaso eles tivessem uma filha bruxa, então não se sentiriam mais excluídos, e seria como se finalmente pudessem viver na sociedade bruxa com dignidade".
Ela parou de falar abruptamente e tomou mais um gole de chocolate quente, encarou a bebida sem conseguir levantar os olhos para ele. Remo sentiu que aquilo não deveria ser algo fácil de se contar, e temia que o que estava por vir seria muito pior. Levantou-se e sentou ao lado dela, tentando passar algum apoio moral. Pouco depois ela voltou a falar.
Quando você me mordeu e achou que eu ia me transformar também, você me falou que a transformação era algo doloroso, e eu disse que você nem sabia o que era dor, aí você me expulsou do seu quarto com raiva. Provavelmente eu estava errada, você deve saber muito bem o que é a dor, mas na hora o que me veio à cabeça foi tudo pelo que eu passei, e nenhuma idéia na minha cabeça poderia ser pior que isso. Durante toda a minha infância eu cresci ouvindo que eu era uma bruxinha linda, e que ia ser fantástica, e que ia dominar todos os feitiços, e o principal, eu iria livrar meus pais da vergonha. Acontece que eu ia crescendo e nada do meu sangue mágico se manifestar, até que um dia alguma pobre alma falou com minha mãe que eu precisava levar um susto, ou correr algum tipo de perigo para o sangue se manifestar pela primeira vez. E isso foi boa parte da minha infância... Eu tinha o corpo cheio de cicatrizes, marcas das inúmeras situações de risco as quais os meus pais me submeteram com a esperança de que eu pudesse mostrar que realmente era bruxa. Bom, há alguns meses eu fiz o que nós trouxas chamamos de cirurgia plástica e removi todas elas, embora um bruxo amigo da família também tenha me dado poções para ajudar a remover algumas delas.
Ela continuava a mexer com o pingente, e Remo finalmente percebeu que não queria ouvir o resto, não importava porque ela estava ali, o importante é que estava segura. O importante é que estava com ele.
Nadijah... Você não precisa continuar. Essa história que você está me contando não faz bem a você, e é muito pessoal, eu não tenho direito de exigir resposta para a pergunta que eu te fiz.
Na verdade eu quero continuar –disse ela olhando nos olhos dele- É importante para mim, entende? Dividir isso tudo com alguém...
Ele pegou as mãos dela entre as suas e as apertou bem firme.
Pode continuar.
Ela respirou fundo.
Bom, um dia eu percebi que eu não era bruxa, e que ao invés de livrar meus pais da vergonha, eu estava me unindo a eles. Então eu tomei uma decisão drástica: ia tentar por mim mesma, por uma única e última vez, fazer com que meus poderes se manifestassem. Eu tinha decidido me jogar dum prédio de quinze andares. Se desse certo, ótimo. Se não desse, não havia motivos para viver. Eu tinha quase 11 anos e já estava desistindo da vida. É claro que nenhum poder acordou em mim, porque esse poder não existe, e eu teria morrido se na hora exata em que eu ia atingir o chão um bruxo não me tivesse salvado a vida. E o nome desse bruxo era Nicolau Flamel.
Ela parou de falar esperando alguma reação dele, que ficou tão surpreso quanto ela havia imaginado que ele ficaria. Mas Remo não falou nada, não a interrompeu, então ela voltou a falar.
Nicolau depois perguntou aos meus pais o que teria me levado a me jogar de um prédio, e eles explicaram a situação, e Nicolau decidiu que tentaria buscar uma forma, algum jeito de fazer com que eu virasse uma bruxa. Assim como ele havia conseguido criar a Pedra Filosofal que dava o elixir da vida e transformava os metais em ouro, do mesmo modo ele desenvolveria algo que permitisse um trouxa ou um aborto virar um bruxo. E os últimos anos que ele e sua esposa viveram foram realmente dedicados a esse projeto, mas então veio a ameaça de Voldemort retornar utilizando a Pedra Filosofal, e ele teve que organizar suas coisas e se preparar para morrer.
"Eu já não me culpava por ser trouxa, nem mesmo achava isso uma vergonha, mas fiquei muito triste quando soube que ele iria morrer, durante muitos anos da minha vida ele tinha sido uma vela acesa em plena chuva, a esperança que não morria. Houve tempo o suficiente para ele organizar os estudos que ele havia realizado junto aos meus pais, para que quem sabe eles ou algum outro bruxo conseguisse terminar e fazer aquele projeto dar certo. Só que ele não fez somente isso, secretamente ele organizou todos os documentos acerca da produção, manutenção e obtenção da Pedra Filosofal e os entregou para o meu pai, que deveria dar isso a um bruxo sábio depois que Voldemort já tivesse ido. Nicolau não queria que o segredo da Pedra morresse junto com ele, e tinha certeza absoluta que meu pai nunca entregaria aquilo para uma pessoa que não fosse realmente digna de receber aqueles papeis. Mas como eu disse, a Mongólia ficou em guerra civil durante vários anos, e uma vez nós fomos forçados a sair de casa com urgência, e de algum modo uma das várias e várias folhas desse dossiê entregue ao meu pai ficou para trás. E essa única folha foi descoberta por um bruxo do meu país nada amigável, que tratou de se aliar a Voldemort. E é por isso que agora eu estou aqui: refugiada, escondida e ao lado de uma pessoa maravilhosa".
O cérebro de Remo fervilhava a ponto de sua cabeça doer. Além da enorme descoberta que acabara de fazer, ele ainda desconfiava que a última frase dela era muito mais que uma demonstração de afeto, carinho e gratidão; isso tudo sem contar que ele não conseguia tirar os olhos da mão direita dela, que brincava com o colar.
Nadijah, isso é... Isso no seu colar é... a Pedra?
Um fragmento dela. Nicolau me deu quando eu atingi a maioridade. Ele disse que por enquanto ele não podia fazer com que eu tivesse poderes, mas que estava ao alcance dele me dar um poder que mais ninguém no mundo tinha. A única coisa que ele exigiu é que eu a usasse com sabedoria. Até hoje nunca a usei, para mim o significado do presente tem uma força muito maior que o poder dela em si.
Ele procurou alguma coisa para dizer e não achou, simplesmente num impulso do seu ser (que a este momento há muito havia se desligado da sua razão) ele a puxou e a abraçou fortemente, tentando fazer que ela compreendesse o que mesmo não conseguia compreender.
