Disclaimer: Esta songfic é baseada na série Harry Potter, de autoria de J.K. Rowling, e nos filmes originados a partir dela. À autora e a seus parceiros comerciais pertencem os direitos autorais e morais das obras. Esta songfic se destina ao entretenimentos de internautas e fãs da série, e não possui fins lucrativos. Contém spoilers de Harry Potter e a Ordem da Fênix. A canção que baseou este capítulo foi "Ladybird" (de 2004), de autoria e execução dos Tears for Fears.

AINDA E SEMPRE

Capítulo 10 – In Londinium

A porta se abriu com a volta da chave na fechadura. Voltou a passar o braço pelas costas doloridas dele e, muito devagar, ajudou-o a subir os dois degraus da entrada. Era-lhe difícil saber o quanto poderia colocar de força sem que o machucasse ainda mais, e sequer sabia o que doía mais: se ele ou se ela mesma, depois de tudo o que passara a saber. Com muito cuidado, colocou-o na poltrona e fechou a porta. Viu as últimas cenas, todas embaralhadas, passarem a toda velocidade por sua cabeça. Parada de frente para a velha porta de carvalho, desfolhada pelo tempo, não conseguia pensar direito no que fazer a seguir. Os olhos correram vagarosamente pela porta. Reparou na teia no batente, perto da quina da parede de pedra. A aranha estava repleta de ovos. Correu o olhar para o chão e viu que a porta precisava de um restauro nas partes mais úmidas. Ouviu Draco gemendo baixo. Inspirou fortemente o ar e o segurou. Fechou os olhos, soltou o ar. Não dava mais para adiar coisa alguma.

Quando se virou para a poltrona, encontrou um homem de ombros caídos e olhar pesaroso. Os cabelos em desalinho, o rosto marcado pelos punhos e o canto da boca com sangue seco não ajudavam em nada a melhorar a aparência dele. Então, lembrou-se do choque que sentiu ao ouvir as palavras reveladoras de Hermione: "Mas a filha é tua, Malfoy!", mas até mesmo para sentir raiva estava exaurida. Tornou a encará-lo.

-- E eu, que achei que te conhecesse.

Silêncio.

Harry conseguiu caminhar sem a ajuda de Hermione até a Chave de Portal.

-- Não, nem pensar, Harry. Do jeito que você está, vai chegar esfarelado na sua casa!

-- E quem disse que quero ir para casa? Evanesco! – A Chave de Portal sumiu ante o comando dado por ele. – Agora, vamos para o castelo. Quero dar uma palavrinha com a Madame Pomfrey... Ai...

-- Ai!

Acordou com uma pontada no útero. Não tinha percebido que adormecera novamente. A Sra. Weasley devia ter colocado uma Poção para Dormir sem Sonhar em seu chá calmante. Na verdade, lembrava-se de que todos estavam preocupados com o aparente sumiço de Harry e de Hermione e, quando o Sr. Weasley voltou da casa da filha e contou que ela também não estava lá, ela começou a se preocupar. Harry, Hermione, Ginny e Draco sumidos... Só se lembrava de Hermione ter lhe dado a comida e o suco e de mais nada... Não, não podia ser, era um pesadelo... Uma onda de frio veio, seguida de outra pontada que a fez dobrar as pernas e encolher o corpo.

-- Que foi, Parvati? Não está se sentindo bem? – A voz de Lavender estava longe. Só conseguia pensar na menina, em Draco, em Harry, em Ginny... – Parvati... Parvati! Sra. Weasley! Sra. Weasley!

Molly Weasley veio correndo para o quarto que fora de Ginny, amarrando o penhoar. – Sim, querida? O que... Ah, meu Deus! Arthur! ARTHUR! – e para Parvati: -- Calma, querida, tudo vai dar certo. Fique quietinha, sim? – Sentou-se na beirada da cama para evitar que ela caísse caso se mexesse ou tentasse levantar.

Ela só conseguia sentir o frio, o calor, e a dor, a dor, a dor... Uma nova lufada de ar gelado a encontrou suando. O que acontecia? Por que a preocupação no rosto daquela mulher? E por que Lavender estava chorando? Ela devia estar chorando, porque àquela hora, Harry... – Aiii...

Arthur encontrou a esposa com as mãos sobre a cabeça e a barriga de Parvati. Então, correu os olhos para a camisola e para as pernas dela e viu a poça de sangue na cama. – Ah, meu Deus! Ela tem de ir pro St. Mungus agora!

-- Nem pensar, Arthur! Mande Ron chamar o Dr. Smethwyck aqui! Ela não pode nem se mexer!

-- Er... Molly, querida...

-- Que foi? Cadê o Ron?

-- Dá pra vir aqui fora um minutinho?

-- Agora, Arthur? Tem de ser agora?

-- Pois é, querida...

-- Lavender, minha filha, sente-se aqui e continue a falar com ela... Não a deixe dormir de jeito nenhum, que já volto!

-- Sim, senhora.

Molly saiu do quarto e seguiu o marido até a sala. – Que foi, Arthur?

-- Bom, o Ron foi atrás do Harry e da Hermione depois que você se deitou. – Antes que ela falasse alguma coisa, ele continuou: -- Ele não queria preocupá-la. Disse que tinha achado Hermione bastante agitada no serviço; que ela tinha ido para Hogwarts e voltado daquele jeito.

-- Seja lá como for, isso não importa agora. Vá você chamar o medibruxo, então, Arthur! Vai, Arthur, vai, vai, vai! – correu para a cozinha, pegou água e compressas e subiu as escadas o mais rápido que pôde, enquanto o marido se vestia do jeito que conseguia e descia as escadas em direção à lareira.

Olhou para ela. Queria responder, mas pela primeira vez não soube o que dizer. A poção tinha entornado e as bolhas começavam a surgir. Tampouco conseguia se mexer ou respirar com mais força. Talvez uma costela estivesse quebrada.

O silêncio permaneceu. Parecia que os minutos não passavam. Sentada numa cadeira da cozinha, Ginny apoiava o queixo no espaldar, olhando para a janela. O perfume das glicínias invadia o ambiente, e uma faixa do luar acompanhava o caminho da janela até os pés dela. Distraidamente, brincava com o guardanapo, até que este caísse sobre o luar. Havia uma mancha de sangue nele. Ah, sim. Tinha ido pegar um pano molhado para limpar o sangue da maçaneta da porta de entrada. Não dava para deixar aquilo daquele jeito. Levantou-se.

Encontrou a mesma expressão triste e taciturna quando terminou de limpar a porta. Mais um gemido rouco. Não era manha; sabia que Harry havia batido para valer. Talvez estivesse com uma costela quebrada, além do braço. Não. Não dava pra conversar com ele naquele estado. Queria-o inteiro para a conversa que tinham de ter.

-- Vem, Draco. Deixe-me ver isso aí. Tira a camisa. – Ao vê-lo se mexer com dificuldade, resolveu ajudar. – Vai, deixa que eu faço isso.

A resposta dele foi pronta: -- Não! Quero dizer, dá pra fazer isso. – Não precisava que ela sentisse dó dele. Precisava, porém, de ajuda para melhorar, isso era inegável. – Bom... Puxa essa manga aqui...

Retirou as vestes e, então, com a ajuda de Ginny, abriu a camisa.

-- Ah, meu Deus... – A pele branca estava toda marcada de manchas arroxeadas, e a região esquerda da costela estava visivelmente mais afetada. – Está quebrada. Consegue respirar direito?

-- Vou viver, Virginia, se é isso o que você quer saber.

-- Shh. Fica quieto. Já volto.

Subiu as escadas de dois em dois degraus em direção ao seu quarto. Abriu um baú e começou a remexê-lo. Xerez, vinho, chás, ervas para poções... Onde será que... Ah, sim. Fazia um tempão que estava guardada ali, mas devia servir ainda. Voltou correndo para baixo. Pegou um copo com água na cozinha e voltou para sala, pingou algumas gotas e estendeu o copo a Draco.

-- Veneno, chérie?

Sorriu, cansada. – Bem que você merecia. Mas não me daria ao trabalho de trazê-lo aqui para isso. Vamos, beba. – E, diante do ponto de interrogação no rosto dele: -- É uma Poção Restauradora de Ossos. Madame Pomfrey me ensinou a fazer depois que eu pedi muito para ela. Eu vivia quebrando o mindinho nas defesas dos balaços. Não vai te prejudicar, Malfoy.

Viu-o entornar o líquido amargo com uma careta. Sentou-se para esperar fazer efeito.

-- Então é assim, Virginia? Agora eu voltei a ser Malfoy.

-- O que é que você esperava, Draco? Que eu te cobrisse de beijos depois de descobrir que você armou durante anos para me separar do Harry, quando tudo o que eu mais queria na vida era ficar com ele? Ah, faça-me o favor!

-- Não, chérie, isso eu já fiz.

-- Não me chame de querida!

-- Mas é o que você sempre vai ser para mim, Virginia. – Sentiu algumas agulhadas do lado esquerdo. Prendeu a respiração por alguns segundos, e soltou-a vagarosamente. – Eu...

-- Fica quieto, Malfoy. Deixa a poção fazer efeito. Não vai querer colar os ossos de qualquer jeito.

Olhou para a janela da sala. Divisou os olmos ao longe. O céu estava bastante claro. Sentiu a garganta queimar. Levantou-se de chofre e foi pegar um copo d'água na cozinha. Como estava quente! Suava, e não sabia se as mãos estavam úmidas por causa do calor ou da agitação que sentia agora crescer no peito. Mas que droga de vida! Quando achava que tudo estava começando a se encaixar e que tinha mudado, caía novamente no poço. Olhou para a faixa de luar. Tudo. Aquela cozinha, aquela casa. Viu o armário na parede. Aquele emprego forjado, aquele salário pago por ele. A dor aguda no joelho e o estrondo da cadeira se chocando com a mesa avisou-a da trombada no móvel. Caiu sentada no chão, o copo estilhaçado na faixa do luar em centenas de cristais que brilhavam, radiantes. Tudo. O anel em seu dedo anular direito. Tudo. A garganta ardia, e a dor no joelho não era nada comparada ao que estava sentindo. Tudo. A vida se esvaziara de uma hora para outra. Lágrimas grossas e quentes tombaram dos cílios espessos, o peito opresso, os lábios tremendo, segurando os soluços que teimavam em querer vazar.

Sentiu a mão de Draco no ombro e ouviu a voz cansada: – Levanta, Virginia. Já te disse pra não cair. Nunca.

Sentiu o sangue subir ao rosto de um segundo para outro. Colocando-se em pé de um salto, encarou-o, furiosa:

-- E como é que você ousa me dizer isso agora, Malfoy? Todos esses anos sozinha, sentindo-me a pior mulher do mundo, a mais rejeitada, e você vem me dizer isso com essa cara-de-pau! Você não teve dó de mim um só momento da minha vida! Queria acabar comigo ou com o Harry, Draco? Ou com os dois? Ou com a Parvati também? Nunca gostei dela, mas jamais pensei que pudesse me enganar tanto a seu respeito! Que história vai me contar agora? "Ah, eu te amo", é isso? Pois bem, Malfoy, palavras não são suficientes para justificar este ato hediondo que você cometeu contra todos nós!

Tell me a story of mind over matter

Conte-me uma história em que a mente controla o corpo
The hope and the glory of life ever after
A esperança e a glória de uma vida inteira

The sound and the fury the cloak and the dagger
O som e a fúria, a capa e a espada

Days when we sink like a stone

Dias em que afundamos como pedra

-- E você esperava que eu fizesse o que, Virginia? Que eu assistisse àquele retardado se dar bem em tudo, a levar todas as melhores coisas, a tirar de mim a única chance que eu jamais tive de ser feliz? Não, nem pensar. Eu tive de fazer aquilo! Eu não queria, não quero te perder! – A voz dele estava desesperada. – Acha que eu gostei de ficar um mês inteiro preparando aquela porcaria de poção, acha que eu adorei olhar no espelho e ver a cara daquele idiota em mim? Não, Virginia, você nem faz idéia do que eu passei. Só pensa naquele coitadinho que nunca te deu bola. Não viu todas as horas em que eu a espiei na biblioteca, escrevendo naquele seu maldito diário, nem todas as vezes que eu cuidei para que você não o visse com a Cho ou com Parvati do modo como eu vi. Nem pode imaginar, então, o que eu passei nas aulas do Snape, e em como ele me desdenhou na sala dele, quando descobriu que eu estava mesmo era apaixonado por você! E não me olha com essa cara de espanto, dona Virginia, porque é verdade. Passei pelas piores humilhações. A última coisa que meu pai me disse antes de ser morto em combate é que me renegava não por eu não querer servir a Voldemort, mas pela vergonha de ter um filho apaixonado pela laia de traidores de sangue que eram os Weasleys!

-- Eu realmente não tenho de ficar te ouvindo/

-- NÃO VAI SAIR, NÃO! – Ele a agarrou pelo pulso. – Eu não terminei!

Ela se desvencilhou. – Eu já ouvi o bastante. – Virou-se e correu para as escadas.

-- Não tem jeito, Sra. Weasley. Ela tem de vir comigo. Não posso fazer nada aqui. – O Dr. Smethwyck se levantou e conjurou uma maca ao lado da cama e transportou Parvati por meio de magia. – Vamos. Mobilicorpus.

-- Mas como...? – Lavender não entendia como poderiam transportar uma parturiente sem que ela corresse perigo, e tampouco o Sr. e a Sra. Weasley.

-- Entendam, aqui ela já corre perigo. Se amarrarmos a maca em duas vassouras, poderemos transportá-la para o hospital. Mas quem irá comigo?

-- Eu vou, doutor. Acho que ainda consigo guiar bem uma vassoura.

-- Arthur, você não acha melhor chamar Fred e George?

-- Não dá tempo, Sra. Weasley. Cada minuto é precioso para ela. Se eu induzir o sono... Ela pode não acordar.

Lavender engoliu o soluço e a Sra. Weasley fungou, afirmando com a cabeça. – Vai então, querido, com ele. Eu e Lavender vamos aparatar lá daqui a pouco e darmos entrada na papelada.

O medibruxo não perdeu mais tempo: prendendo a maca com Parvati nas duas Comet 260 que se encontravam na Toca e cobrindo-a com um grosso cobertor, desiludiu a todos e, junto com o Sr. Weasley, levantou vôo em direção a Londres.

-- Não quero nem saber o que inventou agora, Sr. Potter. Aparecer aqui na escola em plena madrugada, do nada, nesse estado! – Os gestos de Madame Pomfrey eram nervosos enquanto passava o algodão embebido em poção nas escoriações de Harry. Ao ouvir os gemidos, resmungou: -- Agora agüente, isso é o que dá ficar duelando como trouxa por aí. E onde está o outro?

-- Outro? – A voz de Hermione demonstrava incerteza. – Não...

-- Ora, é claro que havia, srta. Granger. Ele não topou em uma árvore! O Salgueiro Lutador deve estar intacto! Ou prefere que eu peça para a Professora Sprout verificar?

-- Não! – responderam Harry e Hermione juntos.

-- Humf... Foi o que pensei. Mas terei de contar à Diretora sobre sua visita, Sr. Potter.

Hermione interveio:

-- Hum... Madame Pomfrey... A situação é, como diríamos, delicada... Poderia deixar que eu conte a ela, amanhã, depois que os alunos entrarem em suas aulas? Nós... hã... gostaríamos de ficar por aqui até amanhã.

-- Na Ala Hospitalar, espero. O Sr. Potter precisa descansar. E então?

-- Então o que, Madame Pomfrey?

-- O outro rapaz, Sr. Potter! Onde está ele, para que eu possa cuidar?

-- Ele já foi para casa, -- respondeu Hermione. Ao ver a preocupação no rosto da enfermeira, continuou: -- Não há nada de errado com o outro, vai ficar tudo bem. Pode deixar que eu cuido do Harry, se a senhora quiser descansar. Sei que a senhora vai receber mais pacientes amanhã, depois do jogo da Grifinória contra a Sonserina.

-- Esses meninos nunca se cansam dessa revelia tola. – E, olhando para ambos, acenou com a cabeça, dizendo: -- Estarei nos meus aposentos, nos fundos. Chamem se precisarem.

-- Obrigado, Madame Pomfrey. Sabíamos que podíamos contar com a senhora. – O sorriso cansado de Harry era genuíno.

A enfermeira lançou um último olhar que, apesar de pretender parecer rígido, mostrava o carinho que sentia por eles.

Hermione esperou a enfermeira sair e virou-se para o rapaz:

-- O.K., Harry. Manda.

-- Não aqui. Vamos. – Harry se levantou da cama.

-- Mas a Madame Pomfrey...

-- E você acha que eu sou louco de ficar por aqui agora? Vamos!

-- Para onde, agora, Harry? – Hermione estava confusa.

-- Para onde mais, Mione? Para a Sala Precisa. Vam...

Um som típico porta rangendo soou na enfermaria, e logo em seguida Ron entrava detrás do biombo que protegia a cama de Harry. – Ah, aí estão vocês! Harry! O que é que foi que aconteceu com você?

-- Não aqui, Ron. Estamos saindo para conversarmos.

-- Que é que está acontecendo, Mione? Você tá legal?

-- Do ponto de vista físico... Mas como sabia que estaríamos aqui?

-- Bom, a Lavender me contou quando eu cheguei que o Harry as tinha deixado em casa e usado uma Chave de Portal pra te encontrar na orla da Floresta Proibida. Aparatei em Hogsmeade e vim para cá, mas vocês não estavam na beira da Floresta como a Lavender tinha falado. Mas sabe, eu tinha visto que você não tinha chegado em casa. Quer dizer, antes de aparatar em Hogs...

-- Tá, tá, Ron, já entendemos, -- interrompeu a moça. – Vamos, então. Daqui a pouco a Madame Pomfrey aparece aqui e vai ficar nervosa. Harry, consegue andar até lá? É um caminho bem comprido, sabe...

-- A Madame Pomfrey sempre faz um trabalho excelente, Mione. E além do mais, aposto que o Draco deve estar bem pior do que eu... – Sorriu ante a lembrança de ter finalmente dado ao sonserino a surra que ele merecia.

-- O Draco? Aqui? Mas o que foi que/

-- Daqui a pouco, Ron. Vamos, me ajuda aqui, -- disse ela, referindo-se ao braço de Harry.

-- Posso caminhar sozinho, Mione, obrigado.

-- Mesmo assim, fique ao lado dele, Ron. Eu já vou pra lá, gente. Um instantinho só.

-- Mas Hermione... – Não adiantava. Ela havia saído sorrateiramente da Ala, antes que lhe perguntassem aonde iria.

Ron estava zangado:

-- Ela sempre faz dessas! Custava dizer pra gente aonde vai?

Harry sorriu consigo mesmo. Se bem conhecia a amiga, ela devia ter ido até a cozinha. – Vamos, Ron.

Ela já estava na porta do quarto quando ele a alcançou, ainda com alguma dificuldade. Sentia o peito doer, ainda, e as manchas estavam todas ali, o corpo doendo e o lábio cortado. Não podia evitar de sentir aquelas dores, mas naquele momento o que mais queria era continuar a falar com ela, porque sabia que se parasse não poderia jamais continuar. Ela precisava saber de tudo. Porque, uma vez que tudo a história toda fora aberta, era preciso colocar todas as cartas na mesa. Deu um passo maior e tornou a segurar o pulso dela, girando-a com força.

-- Não, senhora, não vai fugir de mim, não, Virginia!

-- Me solta! Me solta, seu desgraçado! – Ele a prensava contra a parede do quarto.

-- Não enquanto eu não terminar! Acha que vou mesmo deixar você sem que eu diga tudo o que precisa ser dito aqui? Acha que só você pode se sentir ofendida e com dor? Pois saiba, Virginia Weasley, que eu também estou com o peito dilacerado! Não se sinta sozinha nessa sua dor. O meu mundo também caiu esta noite!

-- Você o derrubou, Draco Malfoy. – Ela arfava, debatendo-se para se soltar. – Agora me solta!

-- Só se você prometer não sair. Vamos, Ginny, me dá essa última chance de conversarmos civilizadamente.

-- Não tem gente civilizada aqui pra conversar comigo, Malfoy! Você é um bárbaro, um enganador, um traidor, um filho da puta/

-- Que te ama, porra! Será que você é tão cega que não é capaz de enxergar isso, mulher! Olha... – Para a surpresa dela, ele a soltou e levantou as mãos na altura do peito. – Eu a soltei. Dá pra ser civilizado, viu? Você faz o que você quiser. Mas eu te peço pra gente conversar. Eu vou me sentar aqui, – apontou para a poltrona na parede oposta da cama – e a gente conversa. – Respirou fundo. Esperava que aquela cartada desse certo.

Podia ver as engrenagens dela funcionando. Se resolvesse expulsá-lo, ele não iria. Se fosse embora, quando voltasse ele ainda estaria lá. Se não o deixasse falar, não poderia tampouco falar o que queria. Ouviu quando ela expirou o ar dos pulmões fortemente e viu-a sentar-se na beira da cama. O rosto dela era uma máscara de dor e de raiva. – Fala.

Olhou para as paredes, com aqueles quadrinhos de paisagem no campo, para aqueles bibelôs de porcelana e retratos de uma família numerosa, que se mexiam sobre a penteadeira, para o baú aberto, deixando à mostra velhos diários. Eles ainda continuavam ali. Os velhos livros que ela carregava o tempo todo quando era mais nova, como se fossem anjos da guarda que a acompanhariam e a protegeriam da dor e da desilusão e a consolariam a vida inteira, nos momentos de tristeza.

Porcelain portraits and silver medallions
Retratos de porcelana e medalhões de prata

Plasticine soldiers that march in battalions
Soldados de plástico que marcham em batalhões

Angels of mercy and lifelong companions
Anjos de misericórdia e companheiros de uma vida inteira

Days when we sink like a stone
Dias em que afundamos como pedra

-- É incrível, Virginia. O seu quarto é como uma janela para a sua alma. Descobri isso na primeira vez em que você estava adormecida em meus braços e eu aproveitei para observar o seu mundo.

There's a room somewhere with a different look
Há uma sala em algum lugar com uma aparência diferente

Where your secret life is an open book
Onde a sua vida secreta é um livro aberto

Where the love we made was a chance we took
Onde o amor que fizemos foi uma chance que aproveitamos

Days when we sink like a stone
Dias em que afundamos como pedra

-- Não estou aqui para ouvir o quanto eu fui burra de cair na sua cilada a ponto de dormir com você aqui.

Ele não lhe deu ouvidos e continuou com a voz cansada:

-- Eu sempre soube que você era especial. Na primeira vez em que eu te vi, você me olhou com raiva e pediu para que eu deixasse o Potter em paz. Para ser sincero, eu achei ousadia de sua parte dizer aquilo. Como é que uma menininha franzina como aquela se atrevia a me enfrentar daquele jeito? Quando comentei com meu pai, ele me contou que sempre tinha sido assim entre os Weasleys e os Malfoys, e por isso é que minha mãe não falava com Andromeda: porque, além de trair o sangue, casando-se com um trouxa, era amiga dos Weasleys. Disse que gente da laia dela não era digna de limpar meus sapatos e que eu não me importasse, que um dia você teria a sua paga pela ousadia. Hum... Não imagina como ele ficou contente quando, ao invés de prendê-la e levar a Voldemort, como meio de atrair Potter, eu os despistei. Foi a gota d'água para o velho e foi quando ele me renegou. No fundo, acho que só não me entregou para Voldemort porque não teve tempo. – A voz dele era baixa e era amarga como jamais tinha sido. Tomou uma inspiração e continuou: -- E foi quando eu resolvi que iria tê-la a qualquer custo. Não podia perder minha família e correr o risco de vida sem que tentasse tê-la. Aquele idiota do Potter a tinha desprezado por anos a fio, e eu estava cansado de preservar a imagem de líder sonserino. Foi quando a convidei para ir ao Baile de Formatura como meu par. Eram os meus últimos dias em Hogwarts, e eu tinha de tentar. O santo Potter não tinha tido coragem de honrar as calças que vestia e não tinha te convidado para ir com ele. Sempre perdendo a vez, como aconteceu quando quis convidar Cho e ela recusou porque Cedric já a tinha convidado. Ele pensa que eu não vi, mas eu vi. Por Merlin, como é que alguém podia ser tão tapado nessa vida! – Balançou a cabeça, olhando para baixo, largado na poltrona, a perna direita estendida, os braços descansando nos apoios.

-- Mas então você sabia que ele queria me convidar...

-- Só um tonto não perceberia que ele finalmente tinha se dado conta do seu valor e da menina maravilhosa em que você tinha se transformado. Vivia se dando mal em Poções, e Snape chegou mesmo a comentar que a paixão era pathos, ou seja, "doença" que cega e faz o homem cometer as piores besteiras – como deixar poções passarem do ponto pela milésima vez. Lembro bem da cara vermelha dele quando o Snape disse, ao final da aula, "Ai, ai, ai, Potter, que foi agora? Vai querer aprender a fazer poções para trocar as fraldas de seus filhinhos vermelhos sem se sujar? Tem de aprender a Poção do Amor, primeiro, tsc, tsc... Mas é claro que não sou eu quem vou te ensinar... Quem sabe a Sra. Weasley... Ou deveria dizer senhorita?" Foi quando eu percebi que se o deixasse tentar por muitas vezes, talvez ele acabasse criando coragem e a convidasse. Eu já tinha visto Parvati no pé dele, e isso era uma grata surpresa para mim. Convidar você argumentando que ele já tinha companhia era só uma questão de não ficar sozinho, de ir com quem eu queria e de não vê-la correr o risco de ser passada para trás e ficar sozinha no dormitório, sem participar do Baile. O que eu tinha a perder? O que você tinha a perder? Já estava cansada de ser jogada para o canto, e eu sabia disso. Não imagina a raiva que eu sentia dele por isso, Ginny. Bom... nada perto do que senti quando eu a beijei pela primeira vez, é claro. Era fogo líquido em minhas veias, nas pontas dos dedos, que corriam pelo cetim vermelho, pela pele quente... Valeu a pena cada soco que levei do seu irmão, naquele dia. As horas na Ala Hospitalar só serviram para eu me lembrar do gosto dos seus lábios e do seu perfume de rosas. E serviram também para intensificar meu ódio a cada vez que eu me lembrava do seu olhar de derrota e de humilhação por não ter sido defendida por ele. Como é que podia ser tão covarde, eu nunca entendi.

-- Não foi covardia, e você sabe disso, Draco! Você sabe que ele pensava que você já tinha me convidado antes de ele fazer isso.

-- Não estou falando disso, Virginia. Você não vê que eu estou falando de tudo, de todos aqueles anos de dor em que você se escondeu dos outros para ficar pintando e escrevendo? Ele teve milhares de oportunidades antes daquela. E aquela era a minha oportunidade. Eu já tinha esperado e dado todas as chances de que ele precisava. Se não aproveitou, foi porque não quis. Ou você realmente acredita que ele não teve chance alguma de te dizer, de te convidar pra uma cerveja amanteigada no Três Vassouras?

Ela não respondeu.

Harry... Harry... Hermione... Draco... Não, Draco não... Não poderia deixar isso acontecer... Deus, que dor insuportável era aquela... que medo de ser descoberta... Harry nunca iria entender, jamais aceitaria... ela não tinha culpa... Draco, ele era o culpado, ele era, ele er...

-- Parvati, olha pra mim, querida! Olha pra mim. – A Sra. Weasley segurava as suas mãos. -- A sua irmã já está vindo pra cá! Parvati!... Doutor Smethwyck, ela está querendo desmaiar de novo!

-- Não, Parvati! Olha pra mim! Olha pra mim! Fica aqui, a gente vai te ajudar, está ouvindo? A gente vai te ajudar... – via que a amiga chorava.

Mas que coisa, era só uma dor muito forte que não conseguia conter – Aaaaaiiiiii... Me ajuda, pelo amor de Deus... Ai, que dor, que dor, que dor...

-- Não fale, Srta. Patil... Estamos aqui pra te ajudar. Vamos, se acalme, não é bom para o bebê que fique assim. – A voz do medibruxo era calma e inspirava confiança. Sim, estava em boas mãos, poderia descansar, descansar, e esquecer da dor do parto.

Harry passou e voltou pela parede três vezes, com o pensamento firme: "preciso de uma sala confortável onde eu possa me recuperar e conversar com Hermione e Ron sem ser ouvido ou ser descoberto por ninguém". Na terceira vez que voltou, a porta escura surgiu. Um largo sorriso se formou no rosto de Ron, que generosamente abriu a porta. – Uau! Sempre me surpreendo com esta sala, Harry, olha só pra toda essa comida...

Na sala, encontravam-se camas com travesseiros de plumas, edredons e cobertores, e poltronas de chintz bastante confortáveis, além de mesas com serviços de chá e café mais variados possíveis, numa fartura notável, e muitos almofadões espalhados pelo chão. Além disso, uma parede com armários de poções de cura, livros e bandagens encontrava-se à disposição. A um canto, um amplo biombo escondia convenientemente um banheiro, com vaso, pia, toalhas e uma banheira bastante atrativa. Harry bem que desejava um bom banho, e Ron entendeu.

-- Vai, amigão. Eu fico de olho na porta. A Mione deve demorar um pouco, eu acho. Eu, hã... vou checar uns livros ali na estante, enquanto isso.

-- OK – Sentou-se na tampa do vaso e ouviu Ron comentar, enquanto olhava a estante:

-- Puxa vida, isso aí até parece o banheiro dos monitores, não é mesmo? Com a diferença que você não precisou dizer "Frescor de Pinho" pra poder usar! Uau! Devia ver esse livro! Tem umas caras bem estranhas... Ahn... Deixa para lá... – Olhou a lombada: Efeitos benignos e malignos da Poção de Matacão em trouxas.

Harry quase não prestava atenção ao que o amigo dizia. Embora a temperatura da água fosse agradável e o envolvesse como um cobertor, sua cabeça girava a toda velocidade. Ensaboando-se, sentiu doer o rosto, e estava com dificuldade de mexer o braço esquerdo. Lembrou-se com um sorriso cansado que, pela primeira vez na vida, tivera a satisfação de dar uma boa surra em Malfoy. Talvez fosse pelo estado dele que Ginny tivesse preferido acompanhá-lo depois de tudo o que Mione tinha revelado bombasticamente. Porque não poderia haver outro motivo. Não depois daquilo. Deus, não queria nem saber como contaria a Parvati que sabia do que tinha acontecido. Pelo menos, Mione tinha cuidado dela durante o dia e podia ficar tranqüilo.

-- Ah, eu devia de ter previsto isso! – Bufando de cansaço, Hermione entrou e depositou a comida numa mesa para depois jogar-se numa grande almofada.

-- Pois é, Mione, chegou atrasada dessa vez – o sorriso de vitória na cara de Ron a irritou:

-- Ah, cala a boca, Ron. – E, virando-se para o biombo: -- Morreu aí, Harry? Não quero falar com um fantasma. Já chega a Murta que me pegou de vítima de lamuriações na cozinha.

-- Ué, como assim? Ela não mora no banheiro? – Ron já abocanhava uma bomba de chocolate e bebia uma xícara fumegante de chá.

-- Mora, Ron, mas ela me deu um baita susto saindo do encanamento da cozinha. Disse que fazia um tempão que eu não a visitava e que agora que eu sou assistente da McGonagall eu não quero mais saber dos outros. Como se isso fosse verdade...

-- Querer saber dos outros?

-- Ser assistente da McGonagall, Ron; vê se acorda!

-- Ah, minha doce e pequena e tão delicada Mione...

Ambos ouviram o barulho da água respingando do corpo de Harry ao sair da banheira. Ele não falava nada. Alguns gemidos de dor também eram percebidos, e Ron fez menção de ir ajudá-lo, mas Hermione o segurou pelo braço, formando nos lábios silenciosos a palavra "deixa". Ela mesma respirava com hesitação, também cansada diante de todas as ações contínuas e momentos desgastantes pelos quais havia passado. E sabia que isso era somente o começo. Pelo menos, foi isso que a levou a inspirar fortemente o ar e a dizer ao amigo, ao vê-lo sentar-se num pufe:

-- Pode mandar, Harry. Estou pronta.

Se ela apurasse bem e deixasse de favoritismos, daria razão a ele. Afinal, Harry tivera a chance de convidá-la para sair, em todos aqueles anos de convivência na mesma Casa, e todas as vezes que se viram na Toca. Porém...

-- Isso não faz com que você seja menos culpado dos seus atos, Draco. Eu... – sentou-se vagarosamente na cama, os braços cruzados sobre o colo, as costas inclinadas para frente. Suspirou, e os pulmões doeram de cansaço. – Eu...

-- Você queria que nada disso tivesse acontecido, Virginia. Eu sei. – Ele estava inclinado para frente, também, e olhava diretamente para ela. – Mas aconteceu. E eu não acho que seja possível a alguém apaixonado sobrepor sua razão acima de qualquer situação, Virginia. E agora...

Ladybird fly away our friends are gone
Voe, Joaninha, nossos amigos se foram

Ladybird fly away our house is on fire
Voe, Joaninha, nossa casa está em chamas

Olhou para a janela. Lá fora, a lua brilhava alto. Ouviu um pio de coruja, e lembrou-se de Penny. Da última vez em que a vira, estava na gaiola de Pig, descansando, o bico sob a asa esquerda. Pigwidgeon. Ron tinha razão, o nome era mesmo estranho. Mas ela o achara tão fofo e gracioso, e tão parecido com aquela corujinha mínima! Adorava vê-lo pulando sem parar, mesmo sob os protestos de seu irmão e os risos silenciosos e compreensivos de Mione e de Harry, que sabiam ser aquele o modo de Ron expressar o quanto gostava da ave. Tão diferente do carinho que às vezes flagrava Harry fazendo em Hedwig, alisando-lhe as penas, ganhando em troca uma bicadinha amorosa no dedo. Gostaria de ser ela a abraçá-lo e a dizer que também gostava dele. Só que a vida, na pessoa de Draco Malfoy, tinha armado seu destino de forma bastante diferente. E aquilo doía agora mais do que nunca. Não queria olhá-lo, não sabia o que dizer, nem definir exatamente o que sentia. Não queria ter de saber naquele momento.

-- Volta, Virginia. Pra cá, para este quarto. Para agora. Eu preciso de você comigo.

Não disse nada. Devagar, levantou-se e abriu a janela. Precisava de ar fresco, o braço em volta da cintura, a mão no pingente da correntinha, o flanco encostado na armação da janela. Não olhava para ele. Não queria, não poderia. Não sabia o que dizer.

-- Você me odeia agora. – Sentiu um pesar na voz dele. – Você se sente sozinha e põe a culpa em mim. Você me odeia.

Não era ódio. Nunca poderia, nunca mais seria capaz de odiá-lo como nos tempos de Hogwarts, quando ele e Harry se duelavam, batalhões formados a cada lado, Sonserina e Grifinória se enfrentando através das ações de ambos... Não depois dos dias no Brasil, nunca depois de tudo o que tinham passado juntos. Jamais depois de... bom. Mas tampouco conseguia perdoá-lo. Pensou novamente nos anos de dor e solidão e sentiu o coração confrangido.

Não sabia precisar o tempo em que ficara encostada naquela janela. Provavelmente, o suficiente para sentir as pernas doerem e os braços ficarem gelados. A hora mais fria é aquela que antecede a aurora. Devia ser algo em torno de quatro horas, então. Sentou-se e, finalmente, falou. A voz era calma, baixa e lenta:

-- Você podia ter evitado todas aquelas telas. Assim, eu não precisaria jamais ter de queimá-las.

Ele não respondeu.

-- Acho melhor chamar o Sr. Potter, Sra. Weasley, em meio aos soluços de Lavender e aos gemidos da paciente. Parvati tornara a se agitar e a tentar se contorcer; a poção calmante parecia não fazer mais efeito sobre ela, e a dose não poderia ser aumentada.

A voz de Lavender Brown era ansiosa: -- E a criança, Dr. Smethwyck? Ela está bem? Elas vão ficar bem, não vão? Não vão? Doutor, pelo amor de Deus, ajude a Parvati, não a deixe morrer! – Ela chorava muito.

-- Enfermeira, tire a srta. Brown do quarto. Ela não pode ajudar muito. E pode ministrar a poção calmante para ela. Sra. Weasley, pode fazer o que eu pedi? Pode chamá-lo?

-- Doutor, ela não está... Ela não está...

-- Estou fazendo o que posso, mas ela não está respondendo como é preciso. Srta. Patil, está me ouvindo? Srta. Patil?

A voz do medibruxo ia e voltava, e uma zonzeira se alternava com a sensação do sangue pulsando e as lufadas de insuportável dor do estômago para baixo. Não sentia mais os membros. Abria os olhos, mas a luz feria-lhe os olhos. – Harry... Harry... Draco...

-- Acho melhor a senhora ir agora, Sra. Weasley. –- E para a moça: -- Srta. Patil, preste atenção, não durma agora, não durma... A criança está vindo logo... A senhorita terá de colaborar na hora, Srta. Patil. Preciso da sua ajuda.

-- Sem força... Harry... Draco... – a voz não era mais do que um fio.

-- Sim, sim, eu já mandei chamá-los. – E para o auxiliar, sem que ela visse: -- Augusto, mande já uma coruja para o Sr. Malfoy também.

-- Mas...

-- Anda!

-- Sim, senhor; imediatamente, senhor – Pie saiu em disparada.

-- Harry... Draco... A menina...

O medibruxo segurava a sua mão e, com a outra, media o pulso da paciente. O prospecto não era bom, e a pele estava muito branca. O lençol estava encharcado de suor e de sangue. O prognóstico realmente não era nada bom. Que Merlin o ajudasse. Respirou fundo e sacudiu de leve a mão de Parvati. – Srta. Patil...

Ela abriu os olhos.

-- ... e foi por isso que eu decidi chamar vocês dois pra orla da Floresta hoje, Harry. Pra contar tudo isso. – Hermione estava visivelmente cansada, sentada em meio aos almofadões, a roupa amarrotada e os cabelos mais bagunçados. – Me desculpe. Por tudo. – Os olhos estavam avermelhados, e ele sabia que ela se segurava para não chorar. Mas, naquela hora, não conseguiu sentir pena dela. Um sentimento forte de fúria surgiu; era como se o peito estivesse em chamas e fosse capaz de inflamar toda a sala. Como ela pudera fazer isso! Levantou-se da cama agitado:

-- Mas parece que você não sente tanto assim, não é, Mione? Afinal, guardou isso durante anos a fio. Não te interessou que ela gostasse de mim, nem que eu sofresse por ela. Nada disso parece ter contado, desde que tudo estivesse aparentemente bem, não foi? NÃO FOI? – Ela se encolheu; seu namorado pasmo diante de toda a história, boquiaberto.

-- MAS QUE MERDA! – Chutou as almofadas. – VOCÊ PODIA TER CONTADO, PODIA TER CONFIADO, HERMIONE! QUE CAGADA ENORME VOCÊ FOI FAZER! Mas não, não queria sujar a sua reputação de senhorita perfeitinha!

-- Harry, não é nada disso, você sabe que...

-- EU NÃO SEI DE NADA! NÃO SEI DE BOSTA NENHUMA PORQUE VOCÊ ME DEIXOU ÀS CEGAS ESSES ANOS TODOS!

Ela se levantou furiosa, o rosto afogueado:

-- Agora escuta aqui, Harry Potter, não fui eu que fiz a besteira de dormir com Parvati e muito menos de acreditar em Malfoy! Você fez isso sozinho! Não venha botar a culpa toda em cima de mim agora! – Ela estava de pé, apontando o dedo para ele: -- Se as coisas ficaram assim foi porque você quis!

-- Eu? EU! Era só o que me faltava!

-- Olha gente, eu acho que uma discus...

Ambos gritaram ao mesmo tempo:

-- Cala a boca, Ron!

O ruivo se levantou, indignado: -- Tá bom, se é assim, eu caio fora, então!

-- Ótimo! – retrucou ela, sem olhar para ele.

-- Já vai tarde! – Harry não tirava o olhar do rosto dela, o semblante de ambos transparecendo a tempestade. Ouviu a porta bater. – E agora, vai me acusar do que, Mione? Ou acabaram-se as suas desculpas pra mentir de forma tão deslavada desse jeito?

-- CHEGA, Harry! Sem mais desculpas pra você! Não se faça de santo, porque você foi tão filho da puta quanto podia ter sido! QUANTAS vezes eu o Ron falamos da Ginny pra você? QUANTAS vezes dissemos que a Cho não valia a pena, e nem a Parvati? Mas você nem prestou atenção! Sempre querendo o impossível! Chega de me culpar pelas suas besteiras, ouviu bem? Chega! – As lágrimas toldavam a sua visão, e ela não conseguia parar de chorar. – Eu nunca, NUNCA teria feito o que fiz se pelo menos uma vez na vida você tivesse se interessado por ela no tempo certo. EU TE DEFENDI MESMO ASSIM! Eu cansei de dizer pra ela nesses últimos meses pra desistir. DISSE O MESMO PRA VOCÊ! Mas você é o senhor da teimosia! Nunca quis ouvir, deu no que deu! Não me culpe por isso, ouviu bem? A responsabilidade também é SUA! – Jogou-se numa das poltronas, exausta, a respiração acelerada, o coração batendo muito rápido.

Sentando-se numa poltrona em frente a dela, Harry tirou os óculos e enxugou o suor deles na camisa. Que diabo, ela sempre sabia fazê-lo se calar. De fato, não tinha desculpas para aquilo tudo. A melhor política era calar a boca e esfriar a cab...

Ron irrompeu porta adentro correndo, Hedwig voando atrás dele.

-- Harry, Harry, é para você! É da minha mãe e é urgente! É um...

Mas Harry já se levantara de chofre e amparara a coruja, retirando rapidamente o envelope vermelho que ela prendia no bico. Tornou para o amigo: -- A porta! --, ao que Ron correu para fechar.

No momento seguinte ao da abertura do envelope, a voz da Sra. Weasley reboou na Sala Precisa:

-- Corre, Harry! Vem pro St. Mungus! A Parvati está… Ela está… Ai, meu Deus… Corre! Já, já, já! – E a mensagem se incendiou, as cinzas caindo no colo de Harry.

Olhou para ele. Todas as cenas dos anos em Hogwarts, todas as conversas importantes e todos os momentos de tristeza e de felicidade se misturavam num redemoinho, em sua mente. Pensou em Harry, em Parvati, em Mione, em tudo o que tinha ouvido naquela noite. Olhou de novo para Draco e, então, soube finalmente o que dizer. Tomou uma inspiração e disse:

-- "Amor", você me diz. Não vou negar nada do que sentimos. Nenhuma das palavras que trocamos Draco,... nenhuma das carícias e das promessas... Nenhum dos presentes, mesmo que eu não quisesse mas precisasse, como você sempre me disse.

Ajeitou-se na cama. Continuava a encará-lo, e o semblante amargurado e cansado dele não ajudava em nada a decidir o que dizer e como dizer tudo o que pensava. Mas precisava. Precisava. Não dava pra continuar a represar aquilo. A viver daquele jeito.

-- Não, Draco. Eu não nego e nem deixo de reconhecer cada gesto de preocupação e de carinho para comigo. Cada gesto que me convidou ao mundo de segurança e de prazer que você me trouxe. Sim, prazer, porque também sou mulher e sinto como qualquer pessoa, e você me ensinou a reconhecer, aceitar e ostentar isso. Agradeço-lhe por me fazer melhor.

Let us be lovers we'll melt after midnight
Sejamos amantes, derreteremos após a meia-noite

Hoist up the mainsail we'll coast through the daylight
Hasteie a vela principal, passearemos pela costa à luz do dia

Twisted like candles that fade in the half-light
Retorcidos como velas que se desvanecem na meia-luz

Days when we sink like a stone

Dias em que afundamos como pedra

-- "Sejamos amantes," era o convite silencioso que eu recebia de suas mãos, do seu corpo, naquela noite de Ano Novo, naquela praia, nas areias que me serviram de barco para o primeiro passeio por um mundo até então desconhecido. Eu acreditei que era amor, Draco. – Ele fez menção de protestar, mas ela levantou a mão, advertindo-o: -- Não, eu quero falar. Você pediu pra eu ouvir e eu ouvi. Agora eu quero falar.

Tomou mais uma inspiração e continuou:

-- Bom, eu acreditei que estava nascendo de novo, e que novas chances se abriam como cortinas para uma janela enorme e iluminada, Draco. Eu achei que nunca mais teria de me sentir rejeitada, diminuída, enganada, ou desiludida, e tudo por causa do seu amor. Seria uma nova vida, sem Harry e ao seu lado. Mas daí ele veio antes do jogo e disse que me amava, e que nunca tinha deixado de me amar, desde que tinha percebido isso, nos últimos anos em Hogwarts. – Algumas lágrimas ameaçavam tombar, e a voz falhou. – Você não imagina a força que eu tive de ter para dizer "não" a tudo o que ele finalmente me oferecia, porque eu achava que o filho era dele e porque eu estava com você. Foi a dor de negar o velho sonho, como se eu jamais pudesse aproveitá-lo. E, ao dizer aquilo, eu morri um pouco por dentro, sabe? De um certo modo, a história se repetia: um amor impossível de ser correspondido...

Well we die sometimes to begin again
Bem, algumas vezes morremos para começarmos de novo

When the same old dreams have the same old end
Quando os mesmos velhos sonhos têm o mesmo velho final

When we lose our mind or we lose our friends
Quando perdemos nossa cabeça ou perdemos nossos amigos

Days when we sink like a stone

Dias em que afundamos como pedra

-- Mais do que tudo, eu me agarrei no amor que você dizia sentir por mim, me agarrei nisso como se fosse um pedaço de madeira no meio daquele oceano de dor e de desilusão. Para descobrir, hoje à noite, que esse pedaço de madeira estava podre e que se partiu. – Ela já não segurava o choro, a voz embargada desabafando. – E eu afundei, Draco. De novo, no poço sem fim. Eu caí porque esse amor, Draco, nunca existiu.

A voz dele era desesperada, ao agarrá-la, sacudindo-a:

-- Eu a amo, Virginia! Eu quero você para mim! O resto da vida! Todos os segundos da minha existência! Amo mais do que sou capaz de imaginar! Reneguei o orgulho da família por sua causa! Reneguei amigos por sua causa! Me isolei por sua causa! Deixei a glória que poderia ter tido por sua causa! Eu a quero pra mim, para sempre, sempre!

Your friends have gone
Seus amigos se foram

Porcelain portraits and silver medallions
Retratos em porcelana e medalhões de prata

Your friends have gone
Seus amigos se foram

Plasticine soldiers that march in battalions
Soldados de plástico que marcham em batalhões

Your friends have gone
Seus amigos se foram

Angels of mercy and lifelong companions
Anjos de misericórdia e companheiros de uma vida inteira

-- Não, Draco, você não me ama. Você nunca amou. Amor, Draco, é querer acima de tudo, acima da sua própria vida, que a pessoa seja feliz, mesmo que seja longe de você. Você me diz que me ama e que quer viver comigo para sempre. Mas como isso pode acontecer, quando você não me deixa ser quem eu sou, não me deixa lutar de modo honesto, pagando pelo meu trabalho, enganando-me ao me deixar pensar que o emprego era mérito meu e só meu?

-- Mas é, Virginia! Eu só indiquei, a permanência e a promoção foram frutos dos seus esforços!

-- Mesmo assim, você vem pagando, literalmente, por isso, Draco. Você me enganou, ainda que fosse para me poupar e para que eu vivesse melhor. Só que a verdade é sempre o melhor caminho, ainda que doa e demore. E é essa verdade que faltou, essa sinceridade de sentimentos, que você não teve quando se sujeitou a usar de subterfúgios para me separar do Harry, e de modo tão inesperado e tão vil, que quase não dá para acreditar. Em nome desse amor, Draco, você mudou o destino de muitas pessoas, por muitos anos. Você mentiu, trapaceou, chantageou, iludiu, enganou a mim, ao Harry e à Parvati, que jamais deveria ter sofrido as conseqüências de uma gravidez sem que quisesse. Você construiu uma história sem respeitar o que de mais sagrado há, Draco: o outro. Não dá pra negligenciar isso, não é possível passar por cima das esperanças das pessoas em nome da sua glória e da sua vitória, e chamar isso de amor.

Tell me a story of mind over matter
Conte-me uma história em que a mente controla o corpo

The hope and the glory of life ever after
A esperança e a glória de uma vida inteira

The sound and the fury the cloak and the dagger

O som e a fúria, a capa e a espada

-- Você também está me dizendo que largou o orgulho da sua família, Draco, para ficar comigo. Mas de quem é a ilusão maior, minha ou sua? Qual de nós dois não deixou o orgulho de lado e abriu mão da felicidade só porque aquilo significaria deixar o inimigo ser feliz com aquela que queria para si? Draco, eu abri mão do Harry quando ele me disse que estava disposto a abandonar tudo para ficar comigo, porque eu o amo a ponto de querer que ele não se arrependesse de abandonar o filho e a mãe desse filho. Amor, Draco, é morrer, se preciso for, pelo bem daquele que você ama. Eu morreria pelo Harry, Draco. Eu morrerei por ele se for preciso, mas...

-- ... mas não por mim.

O silêncio caiu entre os dois. Era pesado, quente, abafado. Definitivo. Ele se levantou e fez menção de sair. Ginny o puxou pela mão. O rosto dele demonstrava uma derrota que não precisava de palavras para ser externada. – Me deixa, Virginia. – Sorriu, pesaroso. -- Apesar de tudo, eu fiz o meu papel...

Ela sorriu um sorriso fraco em retorno, levantando-se: -- Pois é, não abaixar minha cabeça. Nem para você, Draco Malfoy. Eu... – Não pôde completar a frase. Não havia mais nada a ser dito.

Draco a abraçou, secando as lágrimas dela em sua camisa, agora fechada, afagando-lhe os cabelos. – Vou amar assim, Virginia.

-- Sei que vai. – Abraçou-o num abraço terno e confortador. O último. Ele se desprendeu, sorriu numa tentativa, e disse:

-- Te vejo por aí. – Em seguida, desaparatou.

Ladybird fly away our friends are gone
Voe, Joaninha, nossos amigos se foram

Ladybird fly away our house is on fire

Voe, Joaninha, nossa casa está em chamas

Ginny se deixou cair sobre o amarfanhado de lençóis e travesseiros, vencida pela tristeza, pelo cansaço e pelas lágrimas. Dormiu quando a cotovia ensaiava o primeiro canto da manhã que invadia a janela. Ao seu lado, na mesa de cabeceira, jazia um anel de esmeralda e rubi, serpente e leão de lados opostos.

-- Está me ouvindo, Srta. Patil?

Era como se a voz do medibruxo viesse de longe e, em meio à névoa que toldava sua visão, conseguia enxergar um bruxo grisalho e de feições bastante tensas. Conseguiu murmurar:

-- Ainda não morri, doutor...

Muito seriamente, ele se sentou ao lado dela, segurando-lhe a mão. Era uma decisão difícil a de lhe perguntar, porque Harry Potter e tampouco a irmã dela estavam presentes, e ele precisava dela ou de familiares para conversar. Talvez, aquele fosse um dos momentos mais difíceis que já havia enfrentado em décadas de profissão.

-- Srta. Patil, ouça-me com atenção. – Ela olhava para ele. Foi em frente: -- Eu posso fazer com que melhore e a pressão se normalize, mas o bebê pode não...

Ela se agitou no mesmo momento: -- Não, nem pensar nisso, doutor! A criança! A criança!

-- Mas a senhorita...

-- A criança, doutor!... – A pontada na barriga e a lufada de ar gelado a envolveram mais uma vez. Apertou, desesperada, a mão do Dr. Smethwyck. – Aaaiiii...

"A decisão está tomada, então", ele pensou, pesaroso. Levantou-se e começou a cuidar dela para que tivesse a criança.

Nesse momento, a porta da sala abriu. A enfermeira vinha acompanhada de Padma e de Harry.

-- Chegaram a tempo de falarem com ela. – O medibruxo estava amarrando um avental limpo nas costas e pegava a varinha. Ao ver o rosto de surpresa de ambos, esclareceu: -- Entendam, ela está consciente, ainda... E optou pela criança. – Padma começou a chorar. – Desculpem. Sr. Potter, Srta. Patil, somente alguns momentos, então. Enfermeira, venha comigo, por favor.

-- Mas doutor, a prática do hospital prevê que não deixemos a paciente/

-- Comigo, por favor, -- insistiu o Dr. Smethwyck. -- Obrigado. – E, voltando-se para os jovens, -- Só alguns minutos, e voltarei em seguida.

Harry voltou-se para Parvati. Aquela mulher na maca não lembrava de longe a beleza exótica e exuberante com a qual tinha vivido nos últimos meses. Estava com os cabelos molhados de suor, o rosto contorcido de dor. A pele já não mostrava o dourado de sempre; estava pálida e macilenta. A barriga parecia maior do que nunca e, pela primeira vez em anos, sentiu medo do que iria acontecer. Caminhou para perto dela, mas foi Padma quem acorreu primeiro:

-- Parvati, Parvati!... Eu te falei pra não ter esse filho, eu avisei dos perigos, minha irmã... – Chorava convulsivamente, ao lado da maca. Segurava a mão da irmã, acariciando-a. – E agora, Parvati, e agora? Ainda dá tempo...

Harry não conseguia entender. O olhar passeou de uma para outra. Padma esclareceu: -- Eu disse a ela para não ter a criança... Desculpe, Harry, sei que o filho é seu, mas ela nunca me deixou contar pra você... Nossa avó morreu no parto da mamãe, assim como nossa tataravó no parto de nossa bisavó... Não podemos ter filhos!

Uma resposta fraca veio de onde a moça estava:

-- Crendice, Padma... Isso não é ciência... Eu quis tentar...

-- Mas você ainda pode desistir, Parvati! Fica com a gente! – A voz embargada de Padma implorava à irmã. -- Não me deixe sozinha!...

-- Padma, eu já... aaiiii... não, espera... Eu já escolhi... Me dá um beijo...

A irmã se abaixou e beijou o rosto de Parvati, afagando-lhe os cabelos negros. – Eu vou sentir a sua falta, querida, todos os dias...

-- Sei disso... Mas a gente se vê... daqui a alguns anos... Vai... Vai, Padma... Eu te amo... – Viu a irmã sair pela porta do quarto. Não pensou que uma despedida fosse doer como estava doendo. Mas antes que o Dr. Smethwyck voltasse, precisava falar com Harry, contar o que tinha acontecido, e pedir que cuidasse da menina. -- Harry... Harry...

O rapaz se sentou na cadeira ao lado da maca, e segurou-lhe uma das mãos com as suas duas mãos. – Eu estou aqui, Parvati.

-- Harry, eu não queria esconder, eu não sabia... Mas o Draco...

-- Sshhh, eu já sei de tudo, Parvati. Não fala mais nisso, OK? – Era-lhe difícil ficar calmo e não deixar transparecer a tristeza e a dor de vê-la naquele estado.

Parvati passou por mais uma contração, gemendo e pedindo que ele ainda não chamasse o medibruxo.

-- Harry, eu... queria ficar com você... só que não ... aaaiiii... pelo amor de Deus, que dor, que dor, que dor...

Já não dava para esconder o pavor de vê-la morrer ali, sem ajuda. Levantou-se e olhou para ela:

-- Eu tô aqui, não vou sumir, mas espera um segundo só... – Correu para a porta e, abrindo-a, gritou para o corredor: -- Dr. Smethwyck, dr. Smethwyck! – Voltou para perto dela. – Pronto, eu tô aqui. Vou ficar com você; prometo, Parvati.

O medibruxo entrou com a enfermeira e pediu que o rapaz segurasse a mão dela enquanto o parto ocorresse.

-- Ela vai agüentar empurrar? – a voz dele demonstrava dúvida.

-- Espero que sim, Sr. Potter, ou terei de recorrer a métodos trouxas e... cortá-la.

Harry não queria sequer pensar naquela possibilidade. O sussurro dela lhe chamou a atenção novamente:

-- Harry... Eu sei que a Ginny ainda...

-- Sshhh, fica quietinha, sim? Vai dar tudo certo, Parvati...

Ela insistiu:

-- Não, eu sei ... Escuta... – A voz dela era tão baixa, que Harry se aproximou para ouvir. -- Ela te ama... Vai atrás... dela... Me desculpa, eu não tive...

-- Eu sei, Parvati, não pensa nisso agora. Eu sei o que aconteceu. A Mione, eu e o Draco nos vimos, não se preocupa mais com isso. Pensa na menina e em você, eu tô aqui, não estou? – Tentava passar confiança em sua voz, mas sabia que estava falhando terrivelmente. Então, diferente de tudo o que costumava ser e fazer, soube de repente o que dizer: – Olha, deve ser uma menina linda, não é mesmo? Vamos, ajude a gente a ver como ela é bonita como você. – Deu-lhe um beijo na testa. Olhou para o medibruxo, que estava fazendo o exame da situação por debaixo do lençol que a cobria, e viu seu olhar de aprovação.

Então, o Dr. Smethwyck falou:

-- Olha, quando a dor vier, você empurra pra valer, Srta. Patil... – E, cochichando para Augusto Pie, que entrara e o estava auxiliando: -- Monitore a pulsação e os batimentos cardíacos. – Mas as feições do curandeiro auxiliar não eram nada boas.

O momento era de grande expectativa. Fora da sala, podia-se ouvir os gemidos de dor de Parvati. Padma e Lavender se abraçavam, chorando copiosamente, assim como Hermione, que escondia seu rosto no ombro de Ron. Ele fungava e, como seu pai, procurava se segurar e não chorar também. A sra. Weasley quisera entrar, mas o marido havia sido enfático ao dizer que se precisasse o medibruxo a chamaria.

Dentro da sala, Harry pensava nas orações que aprendera quando ainda era criança e pensou em rezá-las, mas não conseguiria. Assistia ao esforço insano de Parvati para ter a criança, impotente. Se pudesse voltar no tempo e fazer tudo diferente! Se pudesse não ficar com ela e protegê-la daquela dor, evitar a remota chance de tê-la e de vê-la ir-se daquele jeito, ele o faria, naquele momento. Qualquer coisa para que não ela não pagasse pelos erros de todos aqueles que estavam envolvidos naquela história. Então, um grito agudo e um choro hesitante o tiraram de seu devaneio. A criança finalmente viera à luz.

Harry olhou para a maca e a viu pela primeira vez, como se nunca a tivesse enxergado direito. Não era a exuberância e a elegância, tampouco a segurança que sempre demonstrara, nem o capricho e a teimosia com que convivera durante aqueles anos, fosse em sua casa ou não. Ela nunca passara de uma menina assustada que queria tudo o que ele nunca pudera lhe dar: amor.

Amor foi tudo o que conseguiu ver em seus olhos quando ela finalmente segurou a pequena nos braços sem força, amparada pela enfermeira de nariz vermelho e olhos marejados. – Aqui, Srta. Patil, sua filha...

Parvati chorava. Olhava para a menina e murmurava:

-- Veja, Harry, como é linda a minha menina...

Não conseguiu mais segurar. Abraçou a ambas, chorando e, ao olhar para a menina muito branca e de cabelos negros, respondeu:

-- Ela é maravilhosa, Parvati, e linda como você.

Parvati fechou momentaneamente os olhos, respirando com muita dificuldade, o coração batendo muito, muito rápido. A tontura aumentou, e o zunido no ouvido começou a ficar mais alto. Desesperou-se:

-- Harry, se ele não quiser você cuida... Você... Prometa...

-- Eu prometo, Parvati. – A coisa mais difícil que já dissera não chegava perto do que estava dizendo. Pensou na criança e em Malfoy, controlou sua raiva, e continuou: -- Eu cuido dela pra você se o Malfoy não vier. Como minha filha.

A moça sorriu, aliviada. – Obrigada, Harry... – Olhando para o bebê, abraçou-o mais uma vez e, num suspiro, sussurrou-lhe o nome: -- Dawn...

O Dr. Smethwyck tirou a menina dos braços largados de Parvati. Examinou-a mais uma vez e, entregando-a para a enfermeira, dirigiu-se, exausto, para Harry:

-- Sinto muitíssimo, Sr. Potter. Espero que o senhor esteja bem de saúde e em condições de receber a criança.

Seu olhar estava parado, olhando para o vazio. Parvati se fora. – Quê?... Ah, sim... Eu cuido dela, pode deixar...

Mas no momento em que estendia os braços para pegá-la, ouviu uma voz cansada, cujo ritmo lento e arrastado conhecia muito bem:

-- Pode deixar, doutor, eu fico com a criança. – E, sem que desse tempo para que reagissem, tomou a menina dos braços da enfermeira. Olhou demoradamente para aquela menininha. Naquele momento, foi acometido de uma dor tão profunda, que não podia sequer definir o que era exatamente. O coração na boca, a respiração acelerada, o estômago com uma pedra muito pesada, um medo apertando o peito.

Então, finalmente pôde compreender o que Ginny Weasley estivera lhe falando durante todos aqueles anos. Sim, ele morreria por aquele pedacinho indefeso de gente sem pestanejar, se preciso fosse. Moveria céus e terras para fazê-la feliz. Transformaria o mundo para vê-la sorrir. Por Merlin, ele a amava. E aquele amor o invadira de modo tão intempestivo, tão inusitado, tão definitivo, que jamais cogitaria a possibilidade de deixá-la fora do seu mundo. Não, agora que tal mundo se resumia a ela. Olhou para o auxiliar, e então para a enfermeira e para o médico, e afirmou com convicção:

-- É minha, doutor. – E, para Harry. – A Virginia está na casa dela. E eu vou para a minha, -- tornou a olhar para o bebê e corrigiu: -- para a nossa casa.

Dito isso, o loiro saiu devagar, a criança segura e protegida em seus braços. Durante muitos anos, até que Dawn Patil Malfoy fosse escolhida pelo Chapéu Seletor para integrar a Sonserina, jamais se ouviu falar de Draco Malfoy.

Padma e Harry tomaram as devidas providências para que Parvati tivesse um funeral como ela queria: muitas flores, incenso e o fogo crepitando. Depois, na noite daquele mesmo dia, as cinzas foram recolhidas e guardadas pela irmã.

Harry não soube dizer por quanto tempo dormiu. Apesar dos protestos de Molly Weasley, resolvera ficar em Londres, em sua casa, para descansar. Hedwig fora mandada por Mione ao Ministério, solicitando licença para Harry. Ela e Ron, que haviam resolvido adiar indefinidamente a data do casamento, resolveram ficar com Harry para "fazer você comer", como ela dissera, mesmo com suas declarações de que aquilo não era preciso.

Se fosse honesto consigo mesmo, admitiria que era um alívio não ter de se preocupar com coisas práticas, tais como cuidar da casa, cuidar do emprego e comer. Seria melhor ainda se Mione não tentasse falar com ele sobre o que tinha acontecido no hospital e fosse interrompida com um chiado ríspido de Ron, avisando-lhe que se calasse. Mas, conforme a semana passou, conseguiu se recuperar um pouco. A dor no corpo sumiu, embora continuasse a sentir uma imensa tristeza invadir-lhe o coração a cada vez que pensava no que havia acontecido. Por duas vezes, acordara com os gritos de Parvati ecoando em sua mente, e sabia que o pesadelo recuperava a dor que sentira ao vê-la naquela maca. Nessas ocasiões, levantara-se, no meio da noite, e fora ao quarto em que as coisas dela ainda estavam guardadas.

Era hora de levar a vida adiante. Ela não estava mais ali, mas suas palavras martelavam continuamente em sua cabeça: "Ela te ama... Vai atrás... dela...". Lembrava-se da promessa que fizera de cuidar de Dawn, e então a imagem de Malfoy com a garota nos braços, o olhar terno que dirigiu a ela, acorreu-lhe, e se sentiu menos culpado. "Ele veio, Parvati. Ele está cuidando dela," dizia como se ela pudesse escutá-lo. De alguma maneira, sabia que ela podia escutar, sabia que ela podia vê-lo. E era como se a cobrança sobre si fosse ainda maior. Não dela, mas dele mesmo: estava mais do que na hora de resolver a sua vida de vez, fosse como fosse. Malfoy tinha dado a entender que Ginny não estava mais com ele, mas ela tampouco o procurara, fato que o deixava receoso de procurá-la. Não imaginava com seria recebido. Tampouco saberia, se não tentasse.

Sim, era hora de levar a vida adiante. Verificando que os amigos continuavam profundamente adormecidos, tornou ao lugar onde guardava as coisas de Parvati, separou-as, empacotou-as e se preparou para levá-las à Padma, que se encontrava, segundo informações de Mione, trabalhando no Ministério. Antes, porém, separou algumas fotos e um diário dela, empacotara-os e escrevera, do lado de fora, somente "Para Dawn, Mansão Malfoy, Wiltshire." Sorriu para si mesmo, olhando para o nada; a vida dava voltas, e jamais imaginou que fosse mandar Hedwig para a casa dele. Então, inspirou fortemente o ar primaveril e úmido da manhã londrina e chamara sua coruja. "Vai e não demora pra voltar, OK?".

Quando Hermione acordou, ele já estava de saída.

-- Não dava pra chamar a gente, Harry? Eu poderia ter preparado o café pra nós, -- disse a moça, tirando alguns dos fios encaracolados do rosto.

-- Valeu, Mione, mas já fiz. Tô saindo.

-- Vai trabalhar, então? – perguntou ela, mais confirmando do que inquirindo.

-- Hum-hum. Tá na hora, -- foi sua resposta.

Ela aproveitou que não estava com Ron para vigiá-la e perguntou de chofre:

-- E a Ginny, Harry?

Tentou não se mostrar preocupado:

-- Que é que tem?

-- Ah, sem essa pra cima de mim, Harry. Está mais na cara do que a testa. Não acha que deve procurá-la?

Ele bufou e olhou para os lados, evitando encará-la. Ela continuou:

-- Vai me dizer que não pensou nisso...

-- Olha, Mione, eu agradeço, mas deixa que eu resolvo a minha vida sozinho, tá? – não queria soar mal-agradecido, mas não sabia bem como dizer que queria ficar sozinho sem ser direto. – Eu acho que já dá pra me virar.

-- Tudo bem, Harry, já entendi. Bom... vou acordar o Ron. A gente se vê daqui a pouco, então. -- Virando-se para ele, já no batente da porta que dava acesso à escada, segredou: -- Ah, eu me esqueci de te contar uma coisa... Sabe aquele dia do jogo na Toca, em que você e a Ginny tiveram uma conversinha meio tempestuosa?

-- Sei. Não vai me dizer que você ouviu de propósito, Mione!

-- Bom, aquela joaninha que você espantou da entrada da tenda... Era eu. Tchau! -- Correu em direção ao quarto, sem lhe dar chance para responder.

Ora essa, desde quando ela havia se transformado em animago? E por que nunca havia lhe contado, ou ao Ron? Desconfiava que o amigo também não sabia. Mas a verdade era que aquele não era o momento para questioná-la. Certamente poderia fazer isso depois, quando não estivesse atrasado para o trabalho. "Bom,", pensou, "uma coisa de cada vez. E agora é a vez da Padma". Pegou o pacote, dirigiu-se à lareira, colocou os óculos no bolso, pegou um pouco do flu e foi engolido pelas chamas verdes em direção ao Átrio principal do Ministério da Magia.

-- Olha, Srta. Weasley, realmente, não há necessidade alguma de fazer isto. A Academia Brasileira de Magia e Bruxaria só aceita em seu quadro os melhores profissionais de ensino mágico, e o fato de o Sr. Malfoy ter enviado seu pagamento foi algo que ele fez questão absoluta de fazer, -- esclareceu a Diretora Sílvia Maria. – Nós temos condições em mantê-la conosco nos mesmos termos do contrato assinado, sem que haja necessidade de o pagamento ser diminuído ou qualquer outra coisa.

-- Sei disso, Diretora, confirmou a moça, sentada à frente de sua mesa. – Mas são questões de cunho extremamente particular e sobre as quais não posso discorrer no momento. Veja, eu não ministro aulas aqui; tenho absoluta certeza de que encontrará um ótimo substituto para as minhas funções.

O olhar da Diretora era de simpatia quando insistiu:

-- Tem certeza de que não quer ficar conosco, Srta. Weasley?

-- Tenho, diret...

-- Ah, então você está aí! – Marina Murtinho irrompeu escritório adentro de maneira bastante impetuosa. – Estão dizendo que você não veio pra ficar com a gente!

Ginny se sentiu um tanto quanto desconfortável ao murmurar um "pois é" para aquela mulher; enfrentar a elegante, delicada e sempre educada Sra. Batira era como conversar com uma aeromoça, enquanto falar com aquela mulher era como enfrentar a força e a energia de um dragão. – São, bem... problemas de ordem pessoal.

-- Bem pessoal, eu diria. Eu disse à Sílvia: "Conta logo pra menina que o namorado dela está pagando pelo salário, mas que isso é coisa dele e não nossa!" Mas não, agora deu no que deu.

Deus do céu, aquela mulher sabia de tudo! Mexeu-se na cadeira.

-- Ah, não fica aí com essa cara de idiota, menina. Namorados vão e vêm, mas a sua carreira não. Vai fazer o que da vida, agora que está sozinha? – pelo jeito, ela lia mentes também!

A velha senhora bufou: -- Ah, nem precisaria ler a sua mente, garota. Já vivi muito, se quer saber. Está na sua cara o que aconteceu! E então! Vai fazer o que agora?

Ginny respondeu à pergunta sem que precisasse pensar muito – isso era um assunto resolvido desde quando acordara na manhã seguinte à conversa que tivera com Draco. Aprumou-se e declarou, com segurança:

-- Vou dar um tempo, se posso dizer assim, professora Murtinho.

-- Marina, pra você, menina. – O olhar de escrutínio parecia não deixar escapar nada. – Bom, se vai "dar um tempo" pra botar sua cabecinha em ordem, pode deixar a sua demissão pra depois, não é mesmo?

-- Isso, -- interveio a Diretora. – Pode pensar o tempo que precisar, Srta. Weasley. É isso o que venho tentando lhe dizer. Veja bem, sua colaboração é muito importante para nós, bem como a sua pessoa. Não gostaríamos de deixar de contar com seus artigos.

Ginny não sabia o que responder; pressionada por ambas, sem desejar de fato quebrar um contrato, indecisa que estava sobre seu futuro, era-lhe difícil negar de modo definitivo. Olhou para os ladrilhos hidráulicos que desenhavam um tapete no chão, considerando a proposta das duas.

-- Bom, -- respondeu. – Acho que posso deixar para decidir depois. Mas podem, por favor, e com certeza, suspender o pagamento. – Levantou-se para sair.

-- Se é assim que a senhorita deseja, assim será feito, -- concordou a Sra. Batira, levantando-se e estendendo-lhe a mão, um sorriso nos lábios. – Esperaremos o seu contato.

-- Ou o seu próximo artigo, -- sugeriu a professora de Poções. – Se for a algum lugar interessante, poderá trazer informações de lá, não?

Por Merlin, aquela mulher sabia defender seu ponto de vista! Mas não queria argumentar, e nem estava em condições para isso. Apenas meneou a cabeça, apertando-lhe também a mão e virando-se para partir.

Uma vez fora dos terrenos da escola, olhou para o azul muito límpido e a luminosidade que chegava a machucar os olhos, e pensou que aquela era mais uma etapa resolvida – pelo menos, por hora.

Mas seu coração não parava de doer. Pensava em Draco e na filha que, a mãe dela contara, fora levada para a casa dele. Pensou no quão se sentira bem ao mandar, através de Penny, o anel para que fosse dado à menina, uma vez que representava as casas do pai e da mãe. Pensava na morte de Parvati. Pensava em Harry. Não tinha ouvido nenhuma palavra dele, ou sequer recebido um bilhete. Antes de viajar, porém, encontrou-se com os pais na Toca para se despedir e vira Hermione. A amiga lhe contara dos dias brancos passados por Harry após a morte e o funeral de Parvati, e no quanto o olhar dele externava a dor, a tristeza e a angústia que estava sentindo. Resolveu não procurar por ele para explicar a conversa que havia entabulado com Malfoy, até que ele estivesse melhor. Bem, até que ela também estivesse em condições de conversar.

O grito de uma gaivota chamou sua atenção. O vento parecia ser constante naquele lugar; Draco tinha razão de reclamar daquilo. Draco... Melhor esquecer daquele lugar, trazia lembranças demais, dor demais. Melhor sumir, aparatar em outro lugar. Ali não. Não mais.

Já fazia quase duas semanas que estava de volta ao trabalho. Aos poucos, estava conseguindo voltar a prestar atenção nas tarefas, embora todos aqueles sentimentos deprimentes teimassem em permanecer consigo. O trabalho, no final das contas, parecia trazer a cura para males como aquele. Pelo menos, amenizava a dor.

Os grandes painéis que faziam as vezes de janelas mostravam um dia claro, apesar de um tanto branco. Estava descendo para o terceiro andar quando Arthur Weasley entrou no elevador.

-- Ah, Harry! Bom dia, que bom vê-lo!

-- Oi, Sr. Weasley.

-- Molly insiste que eu o convide para jantar lá em casa nesta semana. Diz que quer muito ver que você está melhor; não adianta eu e o Ron falarmos.

A vontade de Harry era não sair. Mas, por outro lado, aquela era uma chance de finalmente ver Ginny. Olhou para o Sr. Weasley mais animado:

-- Será um prazer, é claro. A que horas?

O Sr. Weasley sorriu jovialmente:

-- Sabe que pode aparecer a hora que quiser, Harry. – E, vendo a porta do elevador se abrir no segundo andar: -- Bom, já vou indo... te vejo em casa mais tarde!

-- OK!

Mas, antes que as portas se fechassem, O Sr. Weasley se virou para trás e informou, rapidamente:

-- Ia me esquecendo de dizer... Ginny não estará por lá. Ela foi viajar. Até mais!

Tinha de admitir: estava prestes a cometer a loucura de invadir a casa de Ginny e procurar por pistas que o levassem até ela. Já não agüentava mais ficar sem notícias dela. Perguntara a seus pais, visitara os gêmeos na loja, escrevera a Charlie, encostara Ron e Hermione na parede, mas ninguém parecia saber o paradeiro da ruiva há pelo menos três meses, data da última mensagem enviada através de Penny, cujo conteúdo se resumia a um "Não se preocupem comigo; estou bem. Amo vocês. Ginny".

Seis meses desde que o incidente ocorrera. Nas últimas três semanas, estivera em vários países da Europa, na Nova Zelândia, na Austrália, na África do Sul, nos Estados Unidos e até no Brasil. Conseguira, afinal, umas férias para descansar, e a aproveitara para procurar por ela, mas parecia que elas iriam acabar sem que ele a encontrasse.

Para acrescentar, o dia não poderia estar pior. Lá fora, o vento fustigava as árvores amareladas pela estação, e as folhas que cobriam o asfalto e a calçada eram varridas para longe. O céu plúmbeo prometia mais daquela garoa fina e gélida durante aquele final de semana. Sabia que dali para frente, tudo o que poderia esperar era um frio maior. Encolheu-se sob as cobertas, na sua velha poltrona, a xícara de chá fumegante esquentando suas mãos.

Ouviu a campainha. Quem pensaria em utilizá-la num tempo ingrato daqueles, quando o pó de flu poderia oferecer uma temperatura agradável? Ninguém que conhecesse. Talvez fosse algum dos vizinhos trouxas. Mas o que poderiam querer? Não se lembrava de nada que pudesse chamar a atenção, e... Melhor levantar; ela soara novamente. Um calafrio o percorreu ao sair debaixo da proteção.

Ao abrir a porta, foi tomado de surpresa. Lupin estava fechando o guarda-chuva e apertando o casaco, sempre surrado, contra o corpo. O silêncio da estranheza fez com que o homem se pronunciasse: – Oi, Harry. Posso entrar?

-- Ahn? Ah, sim, é claro... Entra... – Abriu espaço para que o amigo passasse e não demorou a fechar a porta. – Mas... a lareira...

-- Sim, pensei nisso, Harry, mas eu estava perto. Além disso, meu estoque de flu... bem... Mas vim para lhe fazer uma visita, ver como você está. A gente não se fala desde que você começou a viajar sem parar, indo de lugar em lugar. – Ao ver a xícara de Harry apoiada no chão, dirigiu-se à cozinha, pegou uma xícara e despejou um pouco do chá já pronto, no bule. Voltando à sala, sentou-se na poltrona ao lado da que Harry havia voltado a se sentar. Tomou um gole do chá quente, olhou para o rapaz e inquiriu:

-- E então, nada ainda?

A resposta foi lacônica:

-- Nada.

Um silêncio incômodo permaneceu por alguns momentos. Lupin tornou a falar:

-- Imagino que esteja frustrado e com raiva. E o pior, que não saiba nem de quê ou de quem, exatamente.

Harry sorriu o primeiro sorriso em semanas: -- quer dizer que há um modo de se ler corações e almas, além das mentes, Remus? Nunca me falou disso...

Foi a vez de o homem rir com gosto, afastando os fios precocemente grisalhos dos olhos:

-- Ora, isso não é obra de feitiço e os trouxas já sabiam disso há séculos: trata-se de ler o que lhe vai na alma através dos olhos, como bem deve saber. – Lupin continuou: -- Mas eu já não vejo aí aquela dor e aquele sentimento de ausência que moravam em você há alguns meses, Harry. O que é uma boa coisa, já que a nossa vida segue em frente.

Harry escutava sem dizer coisa alguma. Lupin tomou uma inspiração e disse:

-- Olha, Harry, eu perdi muitas pessoas queridas ao longo desses anos; algumas pelas mãos de Voldemort, e outras não. E em cada vez, eu achei que fosse morrer junto, mas alguma coisa sempre me fez ficar e seguir em frente. – Fez uma pausa para outro gole de chá e continuou: -- Quando o Sirius foi embora, não pense que não doeu. Eu o amava tanto quanto você. Era o único amigo, o único irmão que eu tinha. Imagine se o Ron e a Hermione fossem embora. – Harry estremeceu por debaixo do cobertor, e sentiu uma pedra atingi-lo no peito ante o pensamento nefasto. – Pois é, Harry, você pode imaginar o que eu senti. Não deve ser difícil acreditar que a minha vontade era a de ir junto com ele. Só que eu estava consciente de que a minha lealdade e o meu amor eram justamente o que me fariam continuar a viver. Porque ali, na minha frente, desesperado, estava um rapazinho pelo qual todos aqueles que eu mais amava haviam sucumbido, e ele estava desamparado e sozinho. – A voz de Lupin era triste: -- Sabe, Harry, quando eu te segurei, eu senti no peito o impacto da minha responsabilidade sobre você e sabia que, por mais que Dumbledore a tomasse para si, eu também tinha o meu legado. Quantas não foram as conversas sobre você que eu e Sirius tivemos? A preocupação de seus pais com você era a nossa preocupação, e nós, eu e o Sirius, juramos a eles que se eles viessem a faltar, nós olharíamos por você. Sirius, que era o seu padrinho, estava encarregado, mas eu tinha prometido ficar com ele e ajudar no que fosse possível. – Sorriu, desanimado. – É claro que não foi aquela beleza, mas Dumbledore sempre me garantira que você superaria todas as vicissitudes de forma espetacular. – Um lampejo de tristeza perpassou o olhar de Harry ao ouvir o nome do amado Diretor e amigo. – E então, daquela ligação forte de amizade que unia a todos nós, na escola, e depois na vida, sobrou a mim. Obviamente, nada do que você poderia ter tido caso seus pais ou Sirius estivessem vivos, ou...

-- Você sabe que é tão importante quanto eles, Remus. E sabe o quanto eu sei disso.

Remus Lupin sentou-se mais na beirada da poltrona e encarou Harry, olhando-o nos olhos:

-- Então me escuta, Harry. Desistir não é a idéia.

O rapaz pareceu ofendido:

-- Você sabe que eu estive procurando ceca e Meca por ela, e nada de/

-- Talvez, -- Lupin o interrompeu, -- você estivesse procurando nos lugares menos prováveis.

-- E onde será, caso você saiba, que posso encontrar aquela mulher? – A voz de Harry tinha um certo tom acusatório, como se Lupin e todos os outros sempre tivessem sabido do paradeiro de Ginny. – Será que pode me dizer, hein?

-- Bom, Harry, eu não sou adivinho, e nem tenho videntes na família. Mas eu posso, assim como você, pensar em algumas coisas que o levem até ela. Pense, rapaz, onde é que uma moça como a Ginny gosta de ficar, uma moça com uma tendência enorme a se isolar quando está sentindo a dor que deve estar sentindo. Pense no que ela gosta de fazer, em como deve estar vivendo.

Harry tentou pensar na direção de Lupin:

-- Hum... ela gosta de... de escrever e de... de pintar também. Mas não vejo como iss/

-- Ótimo, já é um começo. Mas há um outro detalhe: ela quer ficar sozinha. Senão, não sumiria durante meio ano. Por outro lado, não é segredo para ninguém que ela o ama. – Lupin levantou a mão para interromper o que ele tentava argumentar: -- Não, não, não, não, nem comece. Isso é fato consumado, Harry, e você sabe disso. Afinal, ela não teria começado aquela história toda com Draco Malfoy se não fosse aquela história da festa de noivado.

-- Que completa um ano amanhã, -- o rapaz completou.

-- Que completa um ano amanhã, depois de tudo o que aconteceu. Bom, Ela quer ficar sozinha, mas não longe o suficiente para não ter notícias da família e de você. Soma-se a isso o fato de que ela tem buscado, como Molly disse, quando a vi, pela independência dela. O que significa...

Ele completou:

-- Que ela não deve voltar nem ao sobrado em Ottery St. Catchpole e nem...

-- ... nem à Toca, é. Pelo menos, para morar. Para completar tudo isso, onde uma moça como ela poderia morar sem ter problemas com o dinheiro, já que está sem trabalhar, e tendo a possibilidade de utilizar uma coruja como a Penny, que pode ser confundida com qualquer outra aqui em Londres?

Harry se sobressaltou:

-- O que você quer dizer com isso?

-- Que eu acho que ela não foi pra um lugar muito longe, Harry. Só isso. – Lupin ergueu as sobrancelhas significativamente para Harry, sorvendo um gole do chá. – Mas não pensei em nada além disso. Você consegue pensar em algum lugar assim, perto o bastante? – Levantou-se, pegou a xícara esquecida nas mãos do moço e levou-as para a cozinha. Ao voltar, pôs uma das mãos no ombro de Harry. – Eu não quero ver você desistir, e tampouco querem todos os que te amam. Mas é você quem tem de resolver essa questão, e você sabe disso. – Olhou para a janela; o dia começava a se transformar em noite. Pegou o guarda-chuva ao lado da porta: – Eu já vou indo, ou daqui a pouco congelo de frio.

Harry pareceu acordar da letargia em que estava, e segurou o amigo pelo braço:

-- Não, olha só o tempo como está. Toma. – Empurrou o pote com o pó de flu para as mãos de Lupin: -- quero receber sua visita mais vezes. Pode levar, que eu tenho em estoque. – E, ante o olhar de escrutínio do amigo: -- Juro. Leva com você.

-- Harry, eu...

-- Não precisa ficar sem graça. Olha, é... é um presente. De agradecimento, pelo toque. – A chuva começou a ficar mais grossa, e Lupin acabou se convencendo.

-- Tudo bem, então. Obrigado, por enquanto, Harry. Eu devolvo/

-- Esquece, Lupin. Eu é que te devo muito.

O amigo sorriu e o abraçou:

-- Te vejo depois, então. – Jogou um pouco de pó no fogo, que crepitava há um bom tempo, e entrou nas chamas verdes, dizendo claramente: -- Grimmald Place, 12.

O tempo pareceu suspenso a Harry depois que Lupin se fora. Sentado naquela velha poltrona, rememorou tudo o que havia acontecido naqueles meses. A memória viajou mais ainda, e pousou em pontos longínquos, em que se misturavam imagens de uma menina franzina e sardenta com as de uma adolescente corajosa e forte, em combate de vida e de morte, tudo junto à imagem inesquecível de uma rainha coberta de veludo verde e de prata. O rodamoinho se movimentou, e ele a viu com lágrimas nos olhos, saindo de uma biblioteca, e de novo com lágrimas nos olhos, enfurecida, discutindo com ele numa tenda antes de uma partida de quadribol. Deus, como a tinha feito sofrer! Fosse por desinteresse, no início, por dúvida, em seguida, e por medo de magoá-la e de faltar às suas obrigações com Parvati, mais tarde, ela sempre havia sofrido calada a dor de não estar com ele.

Se estar com Malfoy tinha sido por trapaça, transformando-se na maldição de suas vidas, tinha dado a ela, ainda que por poucos meses, o conforto de não estar mais sozinha. E por mais que quisesse se punir por aquilo, jamais teria a chance de se redimir daqueles anos de dor e de solidão a que a obrigara a permanecer. Mas podia, e nisso Lupin tinha razão, consertar tudo. Porque ele a amava e acreditava que ela ainda o amava. Por isso, voltou a percorrer o caminho que trilhara com o amigo horas antes. A mente fervilhava com várias informações novas. Isolamento, mas perto da família e dos amigos. Gostava de pintar e de ler, então devia estar com acesso a materiais e a livros, já que os seus tinham ficado no sobrado. Sem dinheiro – ou com pouco, de qualquer modo -- e com uma coruja que podia viajar as distâncias necessárias sem chamar atenção. Independente porque queria deixar de ser um peso à família, e porque queria o seu emprego para se bancar sozinha, mas ainda assim sem emprego. Então ela devia estar num lugar simples, barato e realmente per...

Uma luz pareceu se acender para Harry, que batia a mão na cicatriz ao mesmo tempo em que se levantava de pronto, o cobertor aos seus pés. Ia pegar sua velha vassoura, mas olhou para a chuva grossa lá fora, ouvindo o uivo dos ventos de uma noite de outono particularmente escura e tempestuosa, e pensou em viajar pela lareira. Então, lembrou-se do pó de flu que havia dado a Lupin, e pensou no lugar em que ela devia estar. Não ia mesmo adiantar nada... "É, o jeito é aparatar". Só esperava estar certo. Porque aquela era finalmente, em anos, a hora de agir corretamente, e não podia colocar tudo a perder.

Houve um estrépito quando ela se assustou ante o som familiar de uma aparatação: deixara a xícara escorregar da mão e o líquido quente escorrer em sua blusa, penetrando o tecido e queimando-lhe a pele. Levantou-se e tirou a peça, afastando da pele a camiseta que usava por baixo. Quando se levantou, viu um par de olhos verdes e uma mão lhe estendendo o diário no qual estivera escrevendo durante a última hora:

-- Você deixou cair isso...

O gesto de pegar o diário foi automático, assim como o de pousá-lo sobre a cadeira em que estivera sentada. Não conseguia pensar direito ou ver qualquer outra coisa a seu redor. Quantas vezes, naqueles meses, havia imaginado que o veria bem ali, naquele quarto, com ela? Quantas haviam sido as vezes em que se pegara divagando, dando corda para a memória, lembrando-se daquele par de olhos incrivelmente verdes, daquelas sobrancelhas grossas, daquele nariz afilado, daquela boca rosada de traços marcantes? Seria uma alucinação o barulho, a voz? A solidão contínua poderia ter esse efeito. Aquela poderia ser uma visão. Não contara a ninguém onde estivera, ele não poderia saber. Mas, ao mesmo tempo, a proximidade era real demais. Teve certeza quando sua mão tocou os cabelos em desalinho, a pele quente do rosto, a maciez do moletom que cobria o braço que tocava.

-- Harry...

Não conseguiria mais ficar ali, parado. Deu mais um passo e a abraçou com força, sentindo que ela o envolvia num abraço igualmente apertado. O rosto em meio a fios flamejantes, respirou o perfume da pele quente, fechando os olhos para gravar para sempre a sensação. Não queria soltá-la jamais, não desejava deixar de sentir o contato dos cabelos e do rosto dela, de envolver sua cintura, sentindo-a tão pequena e, mesmo assim, tão forte em seus braços. Um tremor a percorreu, e ela a estreitou mais ainda. Lá fora, a tempestade se formava, os trovões eram cada vez mais constantes, e os raios corriam pelo céu negro.

Palavras eram desnecessárias. Harry levantou o rosto, o nariz e os lábios roçando a pele dela, percorrendo o caminho até a boca. O choque corria entre ambos, do verde escuro para a imensidão castanha, percorrendo os caminhos de volta de cada um, os lábios selando um beijo adiado por anos e ansiado por mais noites do que alguém seria capaz de contar. O hálito morno era sopro de vida, fazendo girar mais rápido as mentes, acelerando a respiração e os corações, em compasso mútuo.

A vida parou no instante em que ela afastou o rosto, mas não mais do que um único instante: os lábios úmidos e intumescidos, entreabertos, o fogo dos cabelos refletido em seu rosto corado, Ginny olhou-o nos olhos, segurou-lhe as mãos e começou a dar passou para trás, num convite mudo. Ao lado da cama, tornou a abraçá-lo, os braços correndo pelas costas um do outro, as bocas num beijo agora ininterrupto, inebriante, em meio à respiração ofegante e o coração acelerado de ambos. Não sentiam o frio do quarto, nem escutavam a chuva batendo na janela ou o reboar dos trovões; tampouco viam os raios. A tempestade estava ali dentro, molhando e aliviando os corações crestados pelo sol e pelo vento inclemente de tantos anos. E, num tempo suspenso naquele mundo da mansarda do número 319 na Rua Falls, tudo aconteceu.

Tudo. As velas que projetavam a sombra de ambos sobre a coberta, os cabelos que sentiam correr pelos dedos. Tudo. As bocas se beijando, a respiração arfante, as roupas pelo chão. Tudo. O choque da frieza dos lençóis sob os corpos ardendo, as pernas se entrelaçando, o vento rugindo. Tudo. A chuva, a saliva, o céu, o teto, a música dos pingos grossos, a cadência dos movimentos. Tudo. A estranha e bela harmonia da tempestade, os sons murmurados, as cortinas molhadas através de uma fresta da janela, os lençóis sob os corpos suados. Tudo, a luz de um relâmpago invadindo o ambiente, o auge do desespero, o grito uníssono. E o silêncio.

Antes que dessem conta, a tempestade lá fora amainou e o domingo de 25 de novembro amanheceu frio e cinzento. Ao acordar, Harry olhou para ela, que parecia adormecida, e murmurou, num pensamento que deixava escapar:

-- Ainda bem que depois de tudo você ainda me ama, Ginny.

Ela, porém, se encontrava acordada havia algum tempo. Virou-se, olhou para o pedaço de pergaminho que havia deixado cair do diário – um em que anotara planos para uma vida feliz com ele, um ano antes --, sorriu e respondeu:

-- Sempre, Harry.

N./A.: E chegamos, após tantos percalços nesses meses de 2005, ao final desta songfic. Sei que demorei, e peço desculpas por isso! Nesse meio tempo, eu acabei passando por uma fase de reconsideração de várias coisas. Por isso, demorei mais tempo e me sentei mais vezes do que pretendia para conseguir escrever. Espero, contudo, que o resultado agrade a vocês como me agradou. Há algumas pessoas a agradecer em especial: à Píchi, grande amiga que venho aprendendo a conhecer cada vez mais, à Diana Prallon, que foi quem começou tudo isso e betou a songfic durante algum tempo – se eu não tivesse começado a ler "Uma Outra Estação", não estaria aqui hoje! --, aos amigos conhecidos nos fóruns, como a Flora e a Frini, e ao apoio e colaboração de amigas, em especial da Vanessa – que deve me ajudar a pensar no capítulo NC-17 de Harry e Ginny (ou pensam que vou deixar barato?). Finalmente, a todos aqueles que acompanharam a história desde 2003 (!) e me enviaram as reviews com comentários. Para quem torcia por um final D/G, peço desculpas, mas desde o começo era pra ser H/G. Acredito que se houve torcida, foi porque as cenas D/G convenceram. Era pra ser. Enfim, sinto-me triste com o final, mas contente de tê-la concluído e pronta para, daqui a um tempo – não muito, espero – iniciar uma outra. Então é isso, folks! Se quiserem deixar a review, eu com certeza lerei! Beijos a todos. F. Mellingott.