Capítulo 4 – Já vi todas as pessoas de bem
Remus Lupin caminhava rumo ao salão para o café da manhã quando cruzou com Harry no corredor. O garoto estava distraído e apressado, e o licantropo sorriu ao passar por ele.
Mas parou de repente. O faro o alertara.
Não havia dúvidas. Harry estava impregnado com o cheiro de Severus Snape – e um cheiro indisfarçável para alguém com os sentidos aguçados como Lupin. Oh, não. Ele não tinha previsto aquilo.
Ele voltou e confrontou o rapaz.
– Harry, posso dar uma palavrinha com você?
– Desculpe, professor, pode ser uma outra hora? Eu gostaria de visitar alguém na enfermaria.
– Você pretende ver Severus, não é? – Harry assentiu. – É justamente sobre ele que eu gostaria de lhe falar.
– O senhor esteve com ele? Ele já acordou?
– Não é isso, Harry. É que me chamou a atenção o fato de que recentemente você e Severus se tornaram... próximos.
Harry arregalou os olhos, mas não disse nada. Lupin interpretou o silêncio dele como uma confirmação.
– Harry, entenda que eu só quero o seu bem. Em respeito à memória de James, Lily e Sirius é que eu preciso lhe dizer algo que provavelmente você não vai gostar de ouvir.
– Você... vai contar para alguém? Para o Prof. Dumbledore?
– Não, não vou, mas eu devia. Harry, ele não serve para você. Não quero nem entrar no mérito de que ele é seu professor e você ainda não saiu da escola. Mas preciso dizer que Severus não é uma escolha adequada. As pessoas... sabem sobre o passado dele.
Harry mal podia acreditar no que estava ouvindo. Lupin tinha os olhos cheios de preocupação, mas as coisas que ele dizia estavam fazendo Harry perder as estribeiras.
– Não pode estar falando sério! De todas as pessoas, você não pode estar falando essas coisas!... Você sabe na pele como é sofrer discriminação – ele tentou manter a voz baixa – E Severus está pagando pelos erros que cometeu, ele arrisca o pescoço cada vez que vai ao encontro de Voldemort!... Você não faz idéia de tudo que ele sofre nas mãos daquele maníaco. E agora quer me dizer que ele não serve para mim só porque foi um Death Eater?
Lupin encarou Harry com cuidado, perplexo e confuso. Demorou alguns segundos até ele perceber: Harry não sabia. Não sabia sobre Severus, sobre seu passado.
O rapaz continuou com sua tirada, vermelho:
– Sabe que ele tem o maior complexo por causa disso? Ele me disse exatamente a mesma coisa: que ele não era bom o suficiente para mim, que não era companhia adequada. Ele tem a pior auto-imagem que já vi, e você e gente como você parecem alimentar isso! Pois eu não vou mais permitir!...
– Harry – ele tentou dizer. – Procure escutá-lo. Ele também está preocupado com você.
– Não! Eu praticamente tive que me jogar para ele, e ainda assim ele não acredita que merece ser amado!... É a coisa mais triste que eu já vi, alguém se sentir tão baixo e tão sem amor, mas eu pretendo dar um jeito nisso: eu vou amá-lo, amá-lo até ele acreditar, até ele se convencer!
– Você não entende, Harry. Você não sabe de toda a verdade. Precisa acreditar em mim: Severus não é bem-visto pelas pessoas respeitáveis, pelas pessoas de bem, da mesma forma que eu não sou. É justamente por conhecer a discriminação que quero poupá-lo disso, Harry. Você vai sofrer se continuar com isso.
– Quer saber? Não vou mais ouvir você! Desculpe, professor, mas eu estou com pressa!
– Harry, por favor, precisa me ouvir...
Ignorando-o, Harry saiu sem se virar, e Lupin suspirou. Ele sentiu um leve consolo ao saber que Severus tentara afastar Harry, mas o rapaz podia ser bem voluntarioso às vezes. O jovem via Severus como vítima, e seu coração generoso reagira instintivamente diante do que percebera como uma injustiça.
Mas Harry não sabia da verdade.
Ele pensou se deveria contar a Harry o que sabia, ou se deveria alertar Dumbledore sobre a relação entre os dois. Ambas opções eram interferência, ele sabia, e Harry provavelmente o odiaria se o fizesse.
Por outro lado, ele amava Harry como o filho que nunca tivera, e por respeito a seus amigos mortos, ele tentaria fazer de tudo para protegê-lo.
Lupin seguiu para o café da manhã, seu apetite diminuído consideravelmente, e suas dúvidas aumentadas ainda mais.
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Mal Harry tinha se acalmado depois da explosão com Lupin, e Madame Pomfrey já o tinha deixado de novo com os nervos à flor da pele. Segundo ela, Severus tinha simplesmente fugido da enfermaria, e ignorado os cuidados médicos a despeito de seus protestos.
O menino quase invadiu as masmorras. Assim que ele entrou na sala de aula de Severus, viu-o apagando o fogo de um caldeirão médio.
– Severus! – Ele correu a abraçá-lo, uma onda de alívio ao constatar que ele parecia com saúde. – Você está bem? Madame Pomfrey estava possessa, disse que você fugiu da enfermaria sem fazer exames!...
– Como pode ver – ele se libertou dos braços do rapaz –, eu estou perfeitamente bem, apesar das histerias daquela louca na enfermaria. E é muito fortuito que você tenha vindo. Precisamos conversar.
Harry notou a tensão na voz dele.
– Aconteceu alguma coisa?
– Sim, Harry aconteceu. Aconteceu uma coisa de extrema gravidade. Aquilo que aconteceu nessa sala não pode se repetir jamais.
– Aquilo? Severus, foi apenas um acidente. Qualquer um pode sofrer um acidente.
– Não, Harry, não se pode chamar aquilo de acidente. Pode-se chamar de imprudência, imperícia ou negligência, mas não de acidente. E eu sou um Mestre de Poções. Acidentes não acontecem com um mestre.
– Está bem, está bem. A gente toma mais cuidado da próxima vez.
– Não haverá uma próxima vez – A voz de Severus era suave e gentil como nunca antes, e isso assustou Harry tanto ou mais do que as próximas palavras. – Amanhã direi a Dumbledore que não posso lhe dar aulas de Poções e que ele terá que arranjar outra pessoa para fazer isso.
– Mas Severus...
– Não haverá discussões sobre isso, Harry. Não teremos qualquer tipo de contato que não social (e com outras pessoas presentes) até a sua formatura ou até o fim da guerra, preferencialmente este último.
– O quê! – O menino perdeu a cor. – Não, não pode!...
– É minha decisão, Harry – ele evitou o olhar do rapaz. – Da última vez que nos vimos, ambos perdemos o controle, apesar de nossos esforços. O resultado foi o que você viu, mas poderia ter sido infinitamente pior.
– Severus, eu... eu não acredito... Olhe, por que não vamos mais devagar? Eu prometo me concentrar mais nos estudos e...
– Isso de nada vai adiantar. Desde o verão, eu lhe avisei como seriam as coisas em Hogwarts.
– Você disse que poderíamos ser amigos! Que eu poderia passar aqui para conversarmos! Só isso, conversarmos!
– Harry, se nós não conseguimos nos controlar sequer para fazer uma poção, como espera que nos controlemos sendo amigos? Não, o melhor é nos afastarmos completamente.
– Por quê? Por que o melhor é nos afastarmos? Por que não podemos ficar juntos? Eu não acredito que você não me ame, Severus. Nem me venha com essa, porque eu não acredito! E se nós nos amamos, por que não podemos ficar juntos?
– Será que eu preciso mesmo explicar? Harry, tudo já está extremamente arriscado do jeito que é, imagine se a situação se aprofundar. Além do mais, eu sempre disse que isso seria o melhor para você.
Uma onda de raiva surgiu em Harry, e os olhos dele pareciam chispar de ódio, ainda mais verdes do que o de costume:
– Foi Remus, não foi? Ele veio aqui e ameaçou você!
Severus ficou confuso.
– Lupin? O que ele tem a ver com isso?
– Ele veio falar comigo. Queria me dizer que você não era bom o suficiente para mim, e que as pessoas de bem sabiam sobre o seu passado. A audácia!...
A pouca cor que tingia as faces de Severus fugiu-lhe tão completamente que Harry pensou que ele fosse desfalecer.
– O que... – A voz dele falhou. – O que Lupin disse?
– Que eu seria discriminado se continuasse a vê-lo. Que ele está pensando no meu bem – O rapaz fez uma careta de desgosto. – Eu quase avancei para cima dele! Justo ele, um lobisomem, alguém que conhece o seu trabalho para a Ordem, falar em discriminação por causa do seu passado!...
Severus fechou os olhos, num misto de alívio e amargura. Lupin sabia. Não importava como, talvez soubesse há muito tempo. Mas ele nada dissera a Harry, obviamente para poupar o rapaz. Nunca passou pela cabeça de Severus que Lupin preservaria seu segredo por respeito a ele, ou por consideração. Ele não merecia esses sentimentos, nem mesmo do lobisomem.
Harry viu a dor no rosto fechado de Severus e sentiu seu coração sangrar de tanto amor por aquele homem. Num impulso, ele se pôs de joelhos no chão e pegou-lhe a mão:
– Severus, você sabe que eu não me importo com o que os outros vão dizer. Eu te amo. Por favor, não me deixe.
Aquilo doeu profundamente em Severus. Porque ele também amava Harry. Mas nada disso importava. Seus sentimentos não importavam.
Ele puxou a mão que Harry segurava, encerrando o contato:
– Eu não quero ser grosseiro, Mr. Potter. – Ele suspirou, tentando firmar a voz. – Mas acredito que não tenhamos mais o que discutir.
– Não, Severus, não! – Harry pôs-se de pé. – Eu não vou aceitar isso.
– Precisamente por esse motivo é que não haverá discussão, Mr. Potter. E também sugiro que me chame de Prof. Snape, daqui por diante.
– Severus... – Os olhos verdes se encheram d'água.
Uma coruja os interrompeu naquele momento, uma coruja grande e de modos requintados, que entregou um bilhete a Severus. Ele leu o papelzinho, face indecifrável, a elegante letra de Lucius Malfoy reconhecida desde o envelope.
Harry o olhou com expectativa, mas Severus guardou o envelope, dizendo:
– Deixe-me acompanhá-lo até a porta.
– Isso não fica assim – ele franziu o cenho e uma lágrima caiu.
– Lamento muito – A voz de Severus saiu baixa.
– Isso não acabou – repetiu Harry, enxugando a lágrima.
E saiu.
Em Hogwarts, o ar pesou, e dois corações se quebraram tão alto que o som poderia romper o silêncio da noite.
