Capítulo 8 – Mudança perpétua

E assim foi feito. Em menos de meia hora, Harry estava caindo de "bêbado", e Ron e Neville o carregaram para o dormitório, para ele curar a ressaca. Logo depois, Harry pegou a Capa de seu pai para deixar a Torre Gryffindor, levando consigo sua batida mas imbatível Firebolt. Ele mais ou menos sabia o caminho até a cidade indicada por Dumbledore, no norte de Yorkshire. Após horas na vassoura, ele achou uma taverna bruxa onde conseguiu se informar sobre a propriedade dos Snape. Era alta madrugada.

Não era uma mansão, apenas uma casa confortável. Ou melhor, ela fora uma casa confortável, pois aparentemente já vira seus dias de glória, há muitos anos. Embora não estivesse exatamente em ruínas, a negligência era visível. Harry inspirou fundo, tomando coragem, e bateu à porta.

Quem abriu foi o homem que ele vira tantas vezes na mente de Severus: robusto, mais atarracado do que o filho, cabelos grisalhos, expressões hostis e disposição pouco amigável.

Sevinus Snape.

– Quem diabos é você e o que você quer a essa hora da noite?

– Meu nome é Harry Potter, Mr. Snape. Podemos conversar um pouco?

– Harry Potter? – ele olhou para a testa, procurando a cicatriz. – O Harry Potter?

– Ele mesmo. Posso entrar?

– Ainda não me disse o que quer aqui.

– É sobre Severus, o seu filho.

– O que tem ele? Morreu? Deixou alguma coisa para mim?

– Não, senhor, ele está vivo. Posso, por favor, entrar?

Relutantemente, o homem finalmente abriu a porta e deixou Harry entrar. Por dentro, a casa sofria da mesma negligência de fora. Mas a atenção de Harry foi desviada:

– Muito bem, rapaz, pode falar. O que foi que aquela puta fez agora?

– Mr. Snape, eu vim aqui pedir a mão de seu filho em casamento – Harry ignorou os insultos.

Sevinus riu-se:

– O quê? Quer se casar com aquela vadia? Por quê?

– Eu amo Severus – disse o rapaz, tentando se conter. – E agradeceria se não falasse essas mentiras sobre ele.

– Que mentiras? É tudo verdade! Severus é uma vagabunda, biscate para qualquer um, igual à mãe. Está no sangue, eu sempre soube disso. É uma frutinha que se vende para qualquer um.

– Pensei que gostasse de ter notícias de seu filho.

– Que lucro eu tenho nisso? – ele deu de ombros. – Quer se casar, vá em frente. Mas eu vou avisando que você vai ser chifrado antes mesmo da noite de núpcias. Ele dá para qualquer um, especialmente quem paga bem. Foi a puta do Malfoy durante anos, nem sei se ainda não é. Severus só serve para isso, garoto.

– Estou vendo que vir até aqui foi um erro – Harry tremia de ódio. – O senhor nunca vai fazer as pazes com seu filho. Passar bem.

Harry foi em direção à porta antes que fizesse alguma coisa da qual se arrependesse, mas a porta bateu na sua cara, graças a um gesto da varinha de Sevinus. Ele se voltou, olhos arregalados.

– Mais devagar, garoto. Eu ainda não descobri o que você veio fazer aqui.

– Eu já disse: vim pedir a mão de Severus.

– Eu sei o que você disse. Agora quero descobrir o que você não disse – Ele olhou para Harry de maneira calculada, e o rapaz usou Oclumência para fechar sua mente. – Ninguém se casaria com aquela prostituta em sã consciência, então você tem algum outro motivo para se casar e veio aqui me sondar... – Ele estalou os dedos repentinamente. – Já sei: Severus engravidou, não foi? Aquela putinha tá prenha!

Harry empalideceu. Sevinus sorriu, os dentes amarelados arreganhados, os olhos brilhando de uma cobiça doentia:

– Isso mesmo, você acaba de confirmar o que eu suspeitava. Severus está prenhe, e com isso eu tenho total controle sobre ele. Ah, ele tentou esconder isso de mim, o filho daquela puta. Mas eu descobri e agora eu vou reaver o que é meu. Ele vai me render um bom dinheiro. De nada adiantou tentar me passar a perna, garoto! Severus é meu!

Num impulso, antes que ele fizesse qualquer coisa, Harry puxou a varinha:

Petrificus totalus!

Sevinus foi ao chão, todo duro, os braços colados ao longo do corpo. Só então Harry soltou um suspiro.

– Desculpe por isso. Venho soltá-lo depois do casamento.

E saiu em seguida, montando na Firebolt e sumindo em direção a Hogwarts, correndo contra o relógio, voando como nunca voara na vida. Sevinus iria ficar petrificado algumas horas, mas, com sorte, Severus já estaria casado quando ele fosse despetrificado.

Amanhecia quando Harry chegou de volta ao castelo, ainda agitado. Ele sequer teve tempo de guardar a Firebolt no dormitório, e preferiu seguir direto para o escritório do diretor. No caminho, cruzou com Lupin, que tentou abordá-lo, mas ele agitou os braços:

– Agora não posso, Prof. Lupin! Preciso ver o Prof. Dumbledore agora mesmo!

– Harry, você precisa me ouvir antes que seja tarde demais!

– Não posso! – Harry se debatia, e Lupin agarrou-lhe o braço. – Me solte! Severus está em perigo, e a culpa é toda minha! Por favor, deixe-me ir!

– Não até você me dizer direitinho o que está acontecendo.

Em poucas palavras, o mais rápido que podia, Harry explicou o que acontecera, concluindo:

– E é por isso que agora nós temos que nos casar o mais depressa possível, antes que ele se solte e venha para cá!

Lupin arregalou os olhos e puxou Harry pelo braço, com grande senso de urgência:

– Está vendo, Harry? Está vendo como Severus não serve para você? Precisa me... – Com um puxão, Harry decidiu que não queria mais ouvir aquilo e saiu correndo. – Harry! Volte!

O rapaz subiu as escadas e gritou com a gárgula do corredor para entrar a todo vapor no gabinete do Prof. Dumbledore:

– Diretor! Prof. Dumbledore! Precisa antecipar o casamento!

Dumbledore emergiu de sua alcova, ajeitando as vestes:

– Harry, o que aconteceu?

Mais uma vez, Harry contou o que tinha feito, ofegante, o coração disparado e o corpo todo tremendo. Dumbledore o encarou, os olhos sombrios:

– Harry, meu rapaz. O que você foi fazer?

– Eu só queria fazer a coisa certa! – O jovem estava desconsolado. – Mas agora ele sabe de tudo! Ele pode vir para cá e tentar impedir o casamento!...

– Ele fará isso com certeza – Dumbledore galvanizou-se em ação. – Vou pedir que Dobby avise Severus imediatamente. Vamos fazer a cerimônia agora mesmo. Preciso apenas...

Uma batida à porta interrompeu. Lupin estava com Mr. Filch, e estranhamente era o zelador quem trazia notícias:

– Diretor, achei que iria gostar de saber. Um tal Mr. Snape está no portão principal e exige que lhe tragam o filho. Ele diz que é o pai do Prof. Snape.

Harry sentiu o sangue fugindo-lhe das veias. Ao mesmo tempo, Dumbledore já se movimentava rumo à porta. A partir daquele ponto, as coisas ficaram confusas, com uma corrida desabalada, muda e desesperada, rumo aos portões de Hogwarts.

Nos anos vindouros, Harry jamais se esqueceria da cena que o saudou na porta de entrada da escola, ao lado do Grande Salão. Era uma imagem impressionante e chocante, que ficou gravada a ferro e fogo em sua memória.

Severus estava ajoelhado no chão, um machucado roxo na maçã do rosto, os pulsos magicamente unidos às costas, sob o efeito de um feitiço. No rosto, além do machucado, uma expressão que Harry jamais vira: um misto de submissão, repulsa e vergonha. Ele olhava para baixo, para os pés de seu pai.

Sevinus pairava sobre o filho como um abutre faminto circunda sua presa. Trazia outro daqueles sorrisos odiosos, de olhos fixos na figura humilhada de Severus a seus pés:

– Demorou 20 anos, mas o que eu previa aconteceu, sua rameira: você é meu! Posso fazer de você o que quiser e ninguém pode me impedir! Vae victis! ()

– Sevinus!

O homem de cabelos grisalhos voltou-se para o diretor, vociferando:

– Para trás, seu velho metido! Isso não lhe diz respeito!

– Engana-se, Sevinus. Severus é professor desta escola e, portanto, minha responsabilidade.

– Não é mais. Agora ele é meu. A lei está do meu lado, velho, e você sabe disso. Essa vagabunda engravidou e agora é minha propriedade. Já recebi uma boa oferta por ela e vim buscá-la para concretizar a venda!

– Se não me engano, havia mais um interessado. O jovem Harry Potter foi procurá-lo ontem.

– Ele não me fez oferta nenhuma – Sevinus lançou um olhar malévolo para Harry. – Na verdade, ele tentou me enganar, esse pestinha! Não tem negócio nenhum com ele.

– Então faça negócio comigo – disse Dumbledore, firme. – Quero fazer uma oferta por Severus. Eu o compro.

Harry se horrorizou com o que ouviu, mas Sevinus pareceu achar aquilo divertido:

– Quer comprar essa meretriz e dá-la de presente ao garoto? Esse menino não merece coisa melhor?

– Minhas intenções não são de seu interesse. Estou disposto a cobrir a oferta que você recebeu, seja ela qual for.

Aquilo atiçou a cobiça de Sevinus por um instante. Mas no instante seguinte, ele descartou a hipótese:

– Não posso fazer isso com o comprador. Eu já dei minha palavra. E a palavra de um bruxo é uma dívida de honra.

Harry pensou consigo mesmo que provavelmente uma pilha de galeões seria o suficiente para Sevinus voltar atrás em sua palavra. A postura de Dumbledore endureceu ainda mais:

– Neste caso, podemos resolver a disputa como prevê a lei ancestral: um duelo bruxo. Traga o comprador para me enfrentar, ou me enfrente você mesmo.

– Eu não quero vender para você! – Sevinus espumava de ódio.

– A lei o obriga a aceitar minha oferta e abrir a negociação, ou concordar com o duelo. Essa é uma dívida de honra de um bruxo. E para provar que estou nessa negociação de boa fé, eu dobro a oferta inicial.

– Não pode!

– Posso e estou fazendo – Os olhos de Dumbledore faiscavam, e seu poder estava mais evidente do que nunca. – E na frente de testemunhas.

Harry olhou em volta e só então se deu conta de que Filch e Lupin também estavam ali, ambos de olhos arregalados. Sevinus sustentou o olhar maligno, e o diretor de Hogwarts não se intimidou:

– Se seu comprador está mesmo tão interessado, ele pode me enfrentar num duelo bruxo na primeira ocasião disponível. Ou você mesmo pode defender os interesses de seu comprador, se acha que pode me derrotar.

Estava na cara que Sevinus sabia não ter condições de derrotar Dumbledore num duelo bruxo. Harry observou as expressões no rosto do pai de Severus e viu que ele tentava achar uma saída para descartar Dumbledore e fugir do duelo ao mesmo tempo.

O impasse não durou mais do que um minuto, mas para Harry pareceu uma hora. Entre os dentes, rosnando de raiva, Sevinus aquiesceu, num suspiro irado:

– Está bem, velho. Fique com essa piranhuda. Faça uso dela, você também. Ele certamente não vai se importar de aquecer a sua cama e a do garoto!

Harry não gostou das últimas palavras, mas não pôde evitar soltar um suspiro de alívio, especialmente quando o homem tão repulsivo se virou para sair. Ele deu um passo para correr até Severus. Contudo, Dumbledore ergueu a voz majestosa, chamando-lhe novamente a atenção:

– Não tão depressa, Sevinus!

O homem desagradável voltou-se para ele, exasperado:

– O que é agora, velho velhaco?

Dumbledore ignorou os insultos:

– Quero que me dê sua palavra solene de bruxo, na frente destas testemunhas, de que você renunciará a qualquer direito, faculdade, prerrogativa ou privilégio sobre Severus e o filho dele, seu neto, pelo resto de sua vida.

Harry arregalou os olhos. Ele não tinha pensado nessa possibilidade.

Ato contínuo, Sevinus voltou-se para Severus e desembainhou da manga uma pequena adaga. Num impulso, Harry se precipitou para proteger Severus, mas Lupin o conteve. Contudo, Sevinus usou a arma para fazer um talho na palma de sua própria mão, do qual começou a gotejar sangue, grosso e vermelho. Quase como se estivesse enunciando um encantamento, ele pronunciou solenemente:

– Assim como meu sangue penetra na terra, meu juramento é solene e definitivo. Esse é o meu sangue e ele sai das minhas veias para a terra, somente para a terra. Não tenho sangue em outros lugares, meu sangue não corre em outras veias. Não tenho descendência, não tenho filhos ou netos. Por meu sangue, que é meu e meu somente, eu amaldiçôo aquele que leva meu nome, e amaldiçôo também o fruto bastardo de sua união licenciosa, espurca e torpe. Que seus sedutores o conspurquem até o final de seus dias e sua lascívia seja a maldição de sua descendência.

Havia tanto rancor, animosidade e odiosidade (e até animus laedendi, a intenção de ferir) que as proteções de Hogwarts perceberam a invocação como magia das Trevas, e alertas soaram. Os presentesnão conseguiam esconder sua repulsa e surpresa diante de palavras tão cheias de ódio.

Então o pior aconteceu.

Sevinus ergueu a mão ensangüentada, e nesse instante Dumbledore previu seu próximo gesto. Mas num segundo, estava feito, e ele não pudera impedir. Sevinus lançou seu sangue no rosto pálido de Severus, gritando:

Sangüinis vinculum!

O Mestre de Poções, que ainda estava ajoelhado no chão, cambaleou, os olhos arregalados de puro terror, e Harry livrou-se dos braços de Lupin para abraçá-lo. Dumbledore mal continha sua fúria, algo inédito nos últimos 60 anos, e gritou:

– Fora daqui! Ponha-se daqui para fora e não volte nunca mais!

Harry jamais vira o diretor tão irado e estava curioso para saber o que Sevinus tinha feito, mas sua atenção estava toda voltada para Severus. Ele sequer olhou para a saída do avô de seu filho. Dumbledore lançou um feitiço que finalmente libertou Severus, e ele quase foi ao chão, de tão abalado. Lupin ajudou Harry a erguer Severus, limpando de seu rosto os borrifos do sangue jogado por seu pai.

– Talvez seja bom Madame Pomfrey dar uma olhada nele – disse o lobisomem.

Harry ia concordar, mas Severus resistiu, a voz trêmula e o rosto sem cor:

– Não será necessário. Eu preciso falar com Harry com urgência.

– Está tudo bem agora, meu amor – Harry abraçava seu noivo. – Ele já foi embora e não vai mais voltar.

Dumbledore dirigiu-se ao abatido Mestre de Poções:

– Severus, eu lamento tanto. Ele foi mais rápido que eu. Por favor, perdoe-me.

Harry não entendeu do que eles falavam, mas Severus abaixou a cabeça:

– Mais tarde lidaremos com isso. Harry precisa saber o quanto antes.

– Vou manter a cerimônia para o horário marcado, mas antes preciso fazer uma reunião com professores. Recomendo a vocês que descansem até a cerimônia.

– Se houver cerimônia – ressaltou Severus, amargo.

– Harry – Lupin o encorajou –, vá com Severus e escute o que ele tem a dizer.

Aquelas palavras levaram Harry a perceber que algo muito grave estava se passando ali. Ele não respondeu, gentilmente ajudando Severus a ir até as masmorras, ignorando os olhares e a chegada dos alunos, atraídos pelo tumulto ao lado do Grande Salão.

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N.A - Vae Victis! Lat., ' Ai dos vencidos!', palavras de Breno, general gaulês, ao atirar a espada ao prato da balança no qual estavam os pesos com que se deveria pesar o ouro do resgate dos romanos, e que eram falsos, tendo estes protestado contra o abuso.

1. Citação com que se lembra que o vencido está à mercê do vencedor.