CORAÇÃO DIVIDIDO
Desencontros, reencontros
(2º Capítulo)
O sol mal se levantou e eu já estou há muito acordada. Os primeiros raios da manhã tocam meu rosto como suaves mãos. Reflito sobre tudo o que aconteceu e o que pode acontecer. Não reclamo. Está tudo muito bem assim.
- Já acordada? - Uma voz conhecida me supreende.
- Ohayou, Hiei. Você também não é de acordar tão cedo...
- Talvez algo em meus sonhos tenha me chamado aqui... - diz, soando doce como um bebê e sentando-se ao meu lado.
- Mesmo? Interessante, achei que você não sonhava. – digo, num impulso.
- Oh, perdão. Acho que estou meio ácida hoje. – viro para o céu novamente. - Hm, e então? O que seus sonhos disseram para você?
- Que eu preciso falar algumas coisas a você. – ele diz, franco e direto.
- ... o que aconteceu? Você está sendo muito direto. Mais do que de costume.
- Eu preciso falar rápido e sem rodeios. Mukuro, eu me decidi. Vou voltar ao Ningenkai. Pra ficar.
- ... o... o que?...
Nossa vida juntos, mesmo que curta, começa a passar pela minha cabeça em flashes. A primeira vez que nos vimos, as lutas, as conversas, as brigas, os sentimentos... tudo. Meu maior medo, no fim das contas, aconteceu. Eu o perdi. Para sempre.
- O que você está dizendo, Hiei? O que pensa que está fazendo?? Como você pode fazer isso comigo??? Como pode me deixar aqui sem você?!? Diga logo o que aconteceu!!! – seguro em suas roupas, sem forças para conter as lágrimas.
Ele me olha sem saber o que fazer, mas mesmo assim tenta me acalmar.
- Mukuro, pare com isso, por favor...
- Como posso parar??? Diga logo o que houve!! Foi algo que eu fiz, que eu disse?? Me diga o que o fez mudar de idéia tão rápido!! – digo, parecendo mais brava que triste.
Ele suspira e retira minhas mãos de suas roupas, dizendo:
- Não foi você, não diga besteiras. Isso já estava pra ser decidido desde quando eu vim morar aqui com você. Minha vida acabou se dividindo entre dois mundos. E agora, a outra parte me chama.
- Outra parte? Você nunca gostou de ningens, eu sei muito bem disso.
Olho para o nada, tentando conter minhas lágrimas, meu sofrimento e minha raiva, sem muito sucesso.
Uma voz rouca fala, suavemente:
- Uma parte do meu coração, Mukuro, está lá no Ningenkai.
Me espanto com essa frase. Coração? Hiei estaria... amando? Me viro para ele e digo:
- Coração? No Ningenkai? Hiei, por que voc...
- E a outra, Mukuro... - ele se vira para mim. - está aqui, com você. - diz, se aproximando de mim.
- Hi... ei... - digo, sendo silenciada por um beijo.
- Não importa onde eu esteja, eu vou sempre estar com você. Uma parte de mim está aqui. Guarde-a bem e cuide muito bem dela. - ele sussurra em meu ouvido, enquanto, lentamente, nos entregamos.
"Hiei... será esse seu verdadeiro eu? Não me mostre... não quero saber... por favor, não quero mais sofrer..." - penso, mas não consigo formular as palavras.
E a manhã se segue, como se não estivéssemos ali.
Acordo com o sol forte do meio da tarde. A sensação da manhã ainda me entorpece. Porém, num estalo, levanto rapidamente. Olho para os lados e só vejo um grande vale. A sensação de vazio vem como uma bomba que logo explode em lágrimas e um grito:
- HIIEEEEEEEEEEEEEEEEEEEIIIIIIIIIIIIII !!!!
É noite alta e estou furtivamente andando pelas ruas do Ningenkai. Para quê? Não sei. Algo em meus sonhos disse para eu vir até aqui.
Meus pés caminham automaticamente para algum lugar que eu ainda desconheço, mas logo saberei.
É uma casa, grande. Uma árvore na frente de uma janela muito conhecida. Olho para lá e ironizo:
- Voc é mais forte do que eu pensei...
Com um salto, me vejo na frente da janela. Está escuro e talvez a viagem até aqui tenha sido em vão, mas mesmo assim me atrevo a bater no vidro.
Depois de algumas insistentes batidas, surge da penumbra uma silhueta esguia, de longos cabelos. Seu dorso nu revela que a noite está realmente mais quente do que de costume. Logo abre-se a janela. Sou recebido com um lindo sorriso:
- Hiei!
- Olá, raposa. Podemos conversar? - digo, mais direto do que o normal. Afinal, não tenho muito tempo para ficar ali, e já previa o que poderia acontecer.
- Hã... claro, entre, entre. - ele diz, um pouco surpreso.
Seu quarto, como sempre, muito organizado, apenas alguns livros ningens espalhados pela escrivaninha. "Você está mais nessa vida do que eu imaginei...".
- Quer algo para comer? Ou talvez queira tomar um banho? Ou será que você veio aqui só pra me ver? - diz a raposa, já iniciando um beijo.
Eu o afasto gentilmente, ao mesmo tempo que digo:
- Eu disse que queria conversar.
Kurama responde, me sentando na cama:
- Podemos conversar depois, koorime... - ele diz, me dando leves beijos no pescoço.
Começo a me render a estas irresistíveis carícias, mas algo me chama para a lucidez. Afasto Kurama mais firmemente, para que ele possa sentir minha determinação.
- É realmente sério, Kurama.
A raposa dá alguns resmungos mas logo aceita.
- Fale então, Hiei. Estou todo ouvidos.
Hesito um pouco antes de falar qualquer coisa, mas sinto que preciso. É sufocante estar com tudo isso preso à garganta.
- Pois bem. Antes de mais nada, quero perguntar: você está preparado para ouvir qualquer coisa vinda da minha boca?
Kurama troca sua feição de desinteressado por uma de surpreso.
- C-como assim, Hiei?
- Isso mesmo. Quero poder falar tudo o que quero sem sentir remorso depois.
Agora a raposa troca a feição de surpreso por uma de nervoso.
- Ora... Hiei, vamos, não faça esse teatro todo. Você sabe que pode falar tudo para mim. Você mesmo disse que eu sou a pessoa que mais confia. Mas você está me deixando com medo... vamos, fale logo.
- Por favor, kitsune, responda objetivamente. Não quero falar e depois ter que vê-lo com uma cara que eu não quero. - respondo, cada vez mais hesitante.
Kurama também hesita, mas logo fala, firmemente:
- Sim. Fale o que quiser, eu estou pronto pra tudo.
Um pouco mais aliviado pela segurança de Kurama, começo.
- Pois bem. Kitsune... lembra daquela noite que passei aqui antes de voltar ao Makai? Você repetidamente dizia que queria que aquele momento durasse para sempre, que mal podia acreditar que estava acontecendo.
- Sim... e como poderia esquecer... aquela noite foi...
- Deixe-me terminar. - digo, interrompendo-o.
- Ok, desculpe.
- Você também ficou muito triste porque eu escolhi voltar para o Makai ao invés de ficar aqui com você. - o peso da sua tristeza ainda pesava sobre meus ombros.
- Sim. - diz, com uma face mais triste.
- Eu ainda não havia feito minha escolha.
- Não? Para mim você parecia bem determinado. - diz a raposa com uma voz levemente irritada.
- Eu pedi para você me deixar terminar. - digo, um pouco impaciente.
- Tudo bem... vou esperar você terminar antes de falar qualquer outra coisa, então.
- "timo. - respondo, formulando o melhor jeito de falar tudo a ele. - Eu voltei ao Makai apenas por causa de uma pessoa que estava lá... você sabe quem é.
- Hn... - resmunga Kurama, com ar de desdém.
- Depois que voltei e a vi de novo... pensei seriamente em ficar por lá e nunca mais aparecer por aqui. Percebi que ela precisava muito de mim também... assim como eu dela.
Kurama vira seu rosto para a janela, com alguns fios de lágrima em seu rosto.
- Eu realmente... percebi quais são meus sentimentos por ela, e resolvi me decidir de uma vez. Eu... a amo. E não quero deixá-la.
Kurama agora estreita mais seus olhos, agora não se preocupando mais em segurar sua tristeza.
- Nossos passados cruéis nos uniu de um jeito que eu jamais poderia imaginar. No final, descobrimos o amor de um jeito puro.
- Por que está me falando isso, Hiei? Por favor, não seja tão cruel comigo. Seria bem melhor se você simplesmente tivesse sumido da minha vida... - ele sussurra.
Uma face triste tenta se esconder entre as mãos... porém o brilho da lua reflete perfeitamente em suas lágrimas. Decido falar de uma vez, não tem sentido enrolar mais.
- E sabe porque eu voltei, raposa?
Ele me olha um pouco surpreso, as lágrimas ainda correndo de seus olhos.
- Estou me perguntando isso... teria sido mais fácil você simplesmente ter desaparecido e nunca mais voltado...
- Porque eu descobri que eu havia conhecido o amor com você, não com ela. - Finalmente termino.
Kurama arregala os olhos e, instantaneamente, as lágrimas estancam.
- O que... você disse?
- Disse que te amo, raposa.
Está frio... e silencioso... como nunca havia sido antes. O que afinal aconteceu? Foi um sonho? Parece que nada do que aconteceu foi real. Mas não há como negar a realidade. Estou sozinha. Tudo o que eu sempre quis em minha vida se esvaiu diante de meus olhos.
"Não importa onde eu esteja, eu vou sempre estar com você. Uma parte de mim está aqui. Guarde-a bem e cuide muito bem dela.", foi o que ele disse. Parece que vejo perfeitamente sua imagem nessa pedrinha tão clara.
- Mukuro-sama? - uma voz me chama de meus devaneios.
- Oh... sim, Kirin, o que quer? - digo, guardando rapidamente a pedra.
- Você... oh. Deixe pra lá. Há alguém querendo vê-la.
- Hm. Quem pode ser a uma hora dessas?... - digo, me levantando do mesmo lugar onde eu estive desde de manhã, como faço todos os dias.
Chego na sala principal e me surpreendo com a visita. É um mensageiro do mundo espiritual.
- Boa tarde, Mukuro-sama. Não quero tomar muito de seu tempo, e também não posso ficar muito aqui. Trago uma mensagem de Shigure para a senhora.
Fico totalmente sem palavras.
- Shi... gure? - digo, totalmente pasma.
- Sim senhora. Aqui está. - e, dizendo isso, me entrega um envelope. - Desculpe o incômodo.
- N-não foi nenhum. Muito obrigada.
- Eu que agradeço a atenção. Adeus. - o mensageiro retira-se rapidamente da sala.
- Shigure... mandou uma mensagem para a você? - diz Kirin, tão pasmo quanto eu.
Abro o envelope sem responder, aflita pelo que ele poderia ter escrito.
E estava na carta, com sua própria letra:
Mukuro-sama,
Se esta carta chegou em suas mãos, é porque você realmente precisa lê-la.
Você deve saber que não é permitido que pessoas do mundo espiritual se comuniquem com pessoas de fora, muito menos do Makai, mas eu sei o que se passa aí, e não poderia de jeito nenhum ficar passivamente quieto.
Com tudo o que aconteceu no passado, eu já previa o que seria de seu futuro.
Por um lado estou feliz. Você descobriu o amor, não é mesmo?
Por um minuto, fico mais estática do que já estava. Shigure me conhece mais do que eu imaginava...
Pode parecer loucura mas eu sei o que se passa dentro de seu coração, talvez mais do que você mesma. Sei de seu passado, sei de toda sua vida. Por esse motivo, a última coisa que gostaria que gostaria de ver é essa sua tristeza.
Sua vida foi dura demais para que você prove a felicidade e depois se abstenha dela forçadamente.
Também conheço o outro lado.
Por isso mesmo eu digo para não esperar a felicidade voltar. Você deve ir atrás dela.
Pode parecer hipocrisia, mas é a mais pura verdade.
De que adianta ficar esperando uma coisa que você sabe que não voltará enquanto você não mostrar o quanto você precisa dela?
Quero muito vê-la de novo, mas você tem muitas coisas a fazer ainda. E uma delas é essa: ser feliz. Assim como eu fui a seu lado, lhe servindo.
Shigure
- Shigure... nem parece você.... - falo, ironizando um pouco. - Você fará muita falta...
Fim do 2º capítulo
