CORAÇÃO DIVIDIDO

Um final torna-se um recomeço

(4º Capítulo)

- Mukuro-sama? O que houve com a senhora?

- Nada. Resolvi visitar o Ningenkai. É um lugar muito bonito, sabe? Pena que eu jamais voltarei pra lá...


A escuridão toma conta dessa noite gelada de inverno. Observo os carros e as pessoas do alto de uma árvore. Incrível como eu não mudei. Mas você mudou muito...

As luzes vêm ao encontro dos meus olhos como uma agulha fina, a dor é aguda. Me sinto muito zonzo e estranho. O galho da árvore onde me encontro parece ser bem mais alto do que eu pensava ser. Olho para baixo e minha zonzeira piora, e por pouco não caio.

Eu sabia que este dia viria... eu sabia... mas não queria aceitar. Talvez porque fosse mais fácil pra mim viver achando que duraria pra sempre. Ou não? Se eu tivesse me convencido que esse dia viria, eu teria aproveitado muito mais... teria feito coisas que não fiz, dito coisas que não disse... e que agora já não posso mais.

Eu já fiz tanta coisa que eu achava que nunca conseguiria... mas não foi suficiente. Não fui o suficiente pra você. Não fui o suficiente para sua felicidade. Mas você me quis... você sempre me desejou do jeito que eu era, com tudo o que eu podia oferecer do meu jeito... sempre com um sorriso sereno e verdadeiro, um abraço aconchegante e um beijo doce.

Você me amou? Foi isso?

Essas luzes, rostos desconhecidos... "Só queria que você estivesse aqui comigo, agora. Mas você não pode mais... você não pode...".

Dou um salto do galho e começo a caminhar pela beira da calçada, o trânsito vem em sentido contrário. As luzes ainda estão muito fortes dentro de minha cabeça, que dói. Jamais pensei que seria assim. Jamais pensei que acabaria assim.

Lembro do todas as faces que você fazia quando me encontrava. Sempre demonstrava extrema satisfação ao me ver, enquanto eu nunca demonstrava a minha. Mas saiba, mesmo que tarde, que eu jamais conseguiria sobreviver sem você. Não fosse por esse sorriso, não fosse por seus olhos... não fosse por seu beijo, não fosse por seu corpo...

Não fosse por todo o sentimento que você dizia sentir - e eu sabia que sentia - por mim, acho que eu não estaria aqui agora... não estaria contemplando essa noite gélida, essas luzes ofuscantes, essas pessoas sem rosto...

Quando percebo, estou à porta aberta de casa. Sem pensar muito, entro. Você está lá, junto com nossos amigos e seu irmão. Todos mudaram. Seu irmão, agora dono da empresa de seu padrasto, desvia o olhar de mim. Talvez por não saber o que fazer ou dizer. Yusuke e Keiko, casados e com sua filha já adulta, me olham como se quisessem me dizer algo, mas sabem que nada pode mudar o que estou sentindo agora. Kuwabara está com Yukina, e eu estou prestes a ser tio pela segunda vez... lembro como você ficou feliz quando eu aceitei ser padrinho do casamento dos dois. Lembro de como ela estava linda naquele vestido branco subindo no altar, enquanto você me olhava, satisfeito... isso foi há tanto tempo, mas parece que faz tão pouco...

Yukina vem ao meu encontro e me abraça forte, mas eu não movo um músculo, não consigo. Ela diz palavras inteligíveis a mim, mas meu cérebro está por demais confuso para tentar entender.

Koenma está a consolar Botan, e me olha com incrível compreensão. Sei que é inútil para ele expressar algum sentimento, pois lida com isso desde sempre. Botan, ao me ver, abaixa a cabeça e sussurra um "Desculpe-me...", mas eu não me importo. Continuo andando até você.

Yusuke, que está ao seu lado, me diz o que eu queria ouvir. "É uma fase, você sabe que é passageiro. Sabe que você pode e sabe onde encontrá-lo a hora que quiser. É triste pra mim ter que te dizer isso, mas agora não há mais nada que te prenda aqui. E eu não quero te ver com essa cara. Isso machuca a ele também.". Olho para Yusuke, sabe-se lá com que cara que ele disse. Seu rosto está pálido, e claramente se vê que esteve chorando. Que contradição dele dizer que é uma fase, com o rosto inchado desse jeito.

Olho para você. Seu rosto está mais pálido, mas continua belo como sempre. Seus olhos... infelizmente não posso vê-los, mas é como se eu conseguisse ver através de suas pálpebras. Seus cabelos... vermelhos como sempre, porém com alguns fios brancos, devido a idade ningen que pesou em você através dos anos. Toco em seu rosto, que está tão frio quanto a noite. É então que percebo: você não vai mais abrir os olhos. Nunca mais. Daqui pra frente, você e eu não estaremos mais juntos neste mundo.

Me viro bruscamente para não precisar mais olhar sua face morta, e caminho até a saída. Lá eu paro, e fico contemplando novamente a rua. Está nevando. Está frio. Queria tanto que você me abraçasse agora e me esquentasse...

Todos viram para mim quando eu esmurro a parede, ao mesmo tempo em que dou um grito de fúria. Antes que qualquer um pudesse me amparar, eu saio pela porta e desapareço. Começo a correr para um lugar que ninguém faz questão de saber onde é...

ccc

Ao ver que Hiei esmurra a parede, Yusuke imediatamente vai ao seu encontro, mas ele desaparece no mesmo segundo. Sabia o que ele estava sentindo... não. Não sabia. Era muito mais do que qualquer um ali estava sentindo. Queria poder dizer as palavras certas, queria poder fazer o que Hiei gostaria que fizessem. Mas não era possível.

Suas lágrimas começam a correr de novo sobre sua face, ao pensar que não teria volta.

"Me desculpe, Hiei... por não poder fazer nada por você...", pensou. Baixou o olhar choroso até o chão, e percebeu que ali havia alguma coisa brilhando. Esfregou os olhos para secar as lágrimas, e abaixou-se para ver melhor o que era. Analisou o pequeno objeto brilhoso entre seus dedos, e seus olhos encheram-se ainda mais de lágrimas.

Levantou-se, caminhou até o caixão envolto por rosas e velas, e depositou a hiruiseki de Hiei na mão de Kurama.

Contemplou o rosto morto do amigo... e parou de chorar por um instante. Parecia loucura, mas sua boca parecia esboçar um leve sorriso... sentiu um alívio tomar conta de si. Eles foram felizes, e isso era o que importava agora.


Mal o sol nasceu e estou em cima de minha fortaleza móvel. Como há anos atrás... pensando na mesma coisa.

- Parece que eu realmente não mudo... - rio de mim mesma. Mas o gosto amargo do passado ainda é nítido no meu riso.

Eu achei que isso era passageiro. Achei que, depois de tudo o que aconteceu, eu logo esqueceria de tudo e seguiria minha vida. É o que eu tento fazer há anos...

Mesmo tendo me livrado de todas as lembranças que tinha de Hiei, todos os dias a imagem dele aparece claramente em meus pensamentos. O cheiro da manhã, a brisa do vale, as frutas... tudo me faz lembrar do que passamos juntos.

Eu achei que seria fácil. Mas agora eu percebi que se sente mais falta depois que se perde... e eu perdi o que eu mais amava...

A brisa leve da manhã toca meus cabelos e eu bato no chão com força.

- Vou me distrair! - grito para o nada.

Enquanto estou treinando, percebo que a sala é a mesma sala subterrânea em que Hiei ficara um ano treinando no passado, antes do Torneio do Makai, e isso me abate novamente. De qualquer jeito, a lembrança não me deixa. O sentimento... não me abandona. Lembranças irrompem em minha mente. "Eu tenho pena de você.", era a lembrança mais forte daquele tempo. Queria poder não lembrar de mais nada, de apagar tudo... como se nunca tivesse vivido aquilo... seria melhor... não seria?

Kirin adentra a sala de repente, me desviando das doces amargas lembranças.

- O que foi, Kirin? - esbravejo, parando imediatamente com o treino.

Kirin se curva imediatamente, num pedido mudo de desculpas, e apressa-se para falar.

- Chegou uma carta urgente para a senhora, Mukuro-sama.

- Uma carta? De quem é? - pergunto, intrigada.

- De... – Kirin parece ficar um pouco pasmo ao ler o nome no selo, mas logo responde - Youko Kurama, senhora.

Um mar de pensamentos passou pela minha cabeça. O que será que Kurama queria comigo? E estava claro que não estava em sua forma ningen, afinal... estaria no Makai? O que estaria fazendo ali, ao invés de estar no Ningenkai, com Hiei...?

- Y-Youko... Kurama? Me dê logo. - digo impaciente, arrancando a carta de suas mãos. - Pode se retirar... qualquer coisa lhe chamo novamente.

Kirin se retirou sem deixar a pose de reverência, até desaparecer pela porta da sala.

Hesito por um momento antes de abrir. Olho por todos os lados do pergaminho, giro-o entre meus dedos, até que uma coragem repentina fez com que meus dedos abrissem o selo. Ainda hesitante, desenrolo o pergaminho e leio-o atentamente.

"Parece que os ventos estão mudando. Uma vez achei que seria pra sempre, agora vejo que não se pode desejar o impossível. O fim se aproxima. Para mim? Não. Para você.

Me encontre dentro de uma hora na Floresta dos Tolos e você entenderá. Se é que já não lhe passa pela cabeça o que aconteceu.

Kurama"

"O fim se aproxima pra mim?", penso. "Será que ele quer novamente lutar comigo? Hm, bem. Não custa ver o que ele quer."

Uma hora depois, cheguei ao local combinado.

Uma leve névoa de fim de manhã cobria a copa das árvores, e o sol estava bem ao alto do céu vermelho-sangue. A imponência e magnitude do ser que estava à minha frente refletia em todo o resto do local. As árvores pareciam estar mais verdes e cheias; tremiam obscuramente, como se quisessem virar para contemplar o sol também.

Ele vira parcial e graciosamente para mim, com a paciência de quem tem todo o tempo do mundo. Me olha com displicência e perspicácia, comuns em youkais como ele.

- Pois não? - digo pacientemente, burlando minha curiosidade.

- Ora, ora, Mukuro-sama. Vejo que não pensou duas vezes em vir aqui. - sua voz era suave, mas uma ponta de cinismo estava presente nela.

- O que quer afinal? - pergunto, sem rodeios, sem expressão.

Ele, agora, vira-se totalmente para mim, mostrando uma expressão um tanto quanto triste. Parecia que ele estivera chorando por horas.

- Mukuro... - ele caminhava em minha direção - nunca achei que fosse preciso falar com você. Muito menos por causa de um assunto que parecia dar-se por enterrado.

Olho como se eu não soubesse do que se trata. Mas no fundo... sabia o que era.

- Você sabe. Estamos falando do que fazia-nos viver. Do que movia a todos os nossos sentidos, do que despertava desejos inimagináveis, do que nos fazia ter o prazer de levantar todos os dias e sorrir tolamente.

Olhei para o chão por um momento e sussurrei, com uma ponta de amargura:

- Hiei...

Ele me olhou como que satisfeito por eu ter feito aquela expressão.

- Sim, Mukuro... Hiei.

Olhei-o de volta, já perguntando o que não precisava ser perguntado.

- E o que ele tem a ver com esse encontro?

Kurama me olhou profundamente com seus belos olhos dourados, brilhosos como um diamante. Sorriu tristemente.

- Você o verá. Brevemente, mesmo que não queira.

- Verei? - meus olhos expressaram desconfiança.

- Sim. Lembra-se do que ele lhe disse sobre "suas partes do coração"?

Olho-o, agora, com uma expressão de certo espanto. Hiei teria-lhe contado?

- Não me olhe assim, Mukuro. Ele me falou exatamente a mesma coisa. "Uma parte está no Makai, a outra está aqui com você.". E lembra-se também... quando lutamos, há alguns anos atrás?

Olhei-o sem responder.

- Refrescarei sua memória. "Os dois terão seu tempo", ele disse. Lembra-se agora?

Assenti com a cabeça.

- Pois bem, Mukuro... - ele remexeu seu bolso e pegou algo. Pegou minha mão delicadamente e depositou o objeto ali. Era o hiruiseki de Hiei, que deixara propositalmente no Ningenkai depois da luta que tive com Kurama. - É seu tempo.

Olhei bem para o objeto e depois para o rosto de Kurama. Estava triste. Diga-se de passagem, quase chorando, mas obviamente não queria mostrar esse lado na frente de uma estranha. Um aperto inusitado pareceu pender em meu coração ao vê-lo.

- Eu o amei, Mukuro. Mas agora não é mais possível para mim viver junto com ele, repartindo esse sentimento.

Estava estática. Não sabia o que dizer, que movimento fazer... não sabia sequer se podia respirar.

- Eu sei que você o ama. Hm, é irônico falar isso, mas ele a ama também. Ainda. E muito. Irei fazer um pedido a você, espero que o aceite.

Olhei-o mais profundamente, suas lágrimas caindo dispersadas. Virava o rosto de vez em quando para secá-las discretamente. O aperto no peito aumentou, e tive a impressão de que queria chorar junto a ele. Na verdade, sabia exatamente o que ele estava sentindo.

- Pois faça-o. - disse, quando consegui reunir um pouco de coragem para falar.

Ele sorriu. Não era o sorriso inicial que me dera, cínico. Era um sorriso de completamente diferente...

- Ame-o até morrer. Morra por seu amor. É só isso que eu peço. Você pode fazer isso, não? - seu sorriso continuava ali, e suas lágrimas também, mesmo que discretas.

- Kurama...

Não agüentei. Uma lágrima acabou por sair sem minha permissão, junto com uma aceitação muda.

Kurama continuava sorrindo como um bebê para mim, um sorriso sincero de compreensão.

- Suas lágrimas de tristeza cessarão agora, Mukuro. É seu tempo. Seja feliz... como eu fui. Adeus.

Kurama sumiu entre a névoa. Uma brisa triste passava pelas árvores como se o Makai estivesse sentindo o que estávamos sentindo naquele momento.

Logo depois, virei as costas para onde Kurama sumiu e voltei à minha fortaleza.


O céu parece mais pálido com os efêmeros raios solares do fim da tarde. Uma grande tristeza ainda consome meu corpo, devora meu coração... mas me sinto mais calmo quando estou aqui.

Em todos os anos que eu passei no Ningenkai, eu sempre sonhava com as árvores, o céu e o cheiro daqui. É tudo diferente. É tudo mais forte. É tudo o que eu sempre quis.

Apesar de sentir o rosto ainda inchado e a visão um pouco embaçada, a paz inexistente que esse lugar me proporciona me acalma.

Mas... um novo vazio preenche meu corpo. Não é o mesmo que Kurama havia deixado...

De repente, me vejo em pé, caminhando a alguma direção que eu ainda desconheço. Tiro a faixa que cobre meu jagan e procuro algo familiar... mas que ainda prefiro não ter certeza do que é.

Não... pra que enganar a mim mesmo? Sei muito bem onde estou indo... um lugar chamado Mukade, a grande fortaleza móvel.

ccc

Hiei olha para a grande fortaleza com uma ponta de felicidade. Havia muito tempo desde que entrara ali pela última vez.

Ao passar pelo corredor, cruza com Kirin, que pára no mesmo momento, e diz:

- Você... como se atreve a voltar aqui! O que quer!

Hiei o olha com sua frieza comum.

- Não te interessa. Onde está Mukuro?

Kirin hesita, mas percebe que não adianta tentar evitar.

- Está na sala subterrânea... - responde.

- Em qual delas, seu idiota?

Mesmo sendo insultado, Kirin sabia que a única forma de ver a paz no rosto de Mukuro estava à sua frente.

- ... na mesma que você treinou.

- Hahaha não conseguiu se livrar das lembranças, é! É uma imbecil!

Kirin simplesmente virou as costas. Estava pronto para ir embora quando Hiei disse:

- Ei, Kirin.

Kirin se virou, um tanto incomodado.

- O quê?

Hiei olhou pra baixo e esbanjou um sorriso.

- Obrigado por ter cuidado dela pra mim durante tanto tempo. - e, dizendo isso, rapidamente foi embora.

Kirin o viu saindo afobado, e, secretamente, retribuiu o sorriso.

- De nada, Hiei. Agora aproveite e deixe essa cara triste pra trás.

ccc

É triste pensar que, durante todo esse tempo, eu estive nos pensamentos da Mukuro. Eu estava feliz com Kurama, por isso nem senti o quão grande era o nosso sofrimento por não estarmos juntos.

"Mas agora tudo vai mudar, Mukuro...", pensava, enquanto me aproximava da sala subterrânea.

Chego ao grande portão de entrada da sala. "Há quanto tempo eu não entro aqui...?".

Hesitante, abro a porta bem devagar. Ao abrir completamente, vejo uma bela luta lá dentro. Muitos youkais, de um nível elevado, atacam apenas uma pessoa.

"Então é assim que se sente ao ver, de fora, uma luta aqui..."

A imagem de Mukuro fica cada vez mais nítida em meio a tanto sangue, corpos e poeira...

Ah, esse cheiro... há quanto tempo eu não sentia isso... essa sensação... o perigo em volta... o instinto de matar para sobreviver...

Olho para minha espada e tento imaginar a quanto tempo não a uso.

Há apenas alguns dos vários youkais que antes eu havia visto, então aproveito que a luta está acabando para, discretamente, me infiltrar.

Mukuro ferozmente vai acabando com todos, um por um. Quando o último é eliminado, ela prontamente vira-se pra mim. Sua expressão de surpresa quase a paralisa a ação. Porém, sorrio e retiro minha espada, pronto para atacá-la. Ela volta sua concentração totalmente pra mim agora... e retribui o sorriso.

Em meio a desvios, golpes e sangue, nossos olhares não se descruzam jamais.

Sinto um estranho formigamento na barriga. Uma satisfação inigualável. Uma sensação boa de felicidade. Finalmente...

Mas uma coisa, uma sensação ruim passa rapidamente por mim. Uma lágrima sai sem avisar. Uma dor repentina toma conta do meu coração e logo desaparece. Eu deveria saber... nada do que acontecer a partir de agora preencherá o grande vazio que existe em mim, assim como existiu enquanto eu estava no Ningenkai. No fim das contas...

Eu não sirvo para ser completamente feliz.

FIM