Capítulo 3: Remorsos

-Omi... –Aya não conseguia fazer um movimento sequer. Estava paralisado. Como o loiro poderia saber que a garota havia morrido?

Como não conseguiu chegar a uma conclusão, decidiu levar o chibi de volta ao seu quarto. Não poderia ficar sozinho aquela noite e muito menos sair do lugar. Pegou Omi no colo e o carregou pelo navio, sem se importar com os olhares estranhos que muitos lhe lançavam. Quando chegou ao quarto, foi desabotoar um pouco a gola da camisa que o pequeno usava, para que pudesse respirar. Estranhamente, acabou desabotoando tudo, deixando-o com o peito nu. O ruivo sentiu-se incomodado, com uma sensação de culpa que não sabia explicar de onde veio. Mesmo assim, mais por impulso do que racionalmente, acabou tocando o tórax fino do loirinho, enquanto sentia que seu rosto afogueava. Ele está quente... A febre está muito alta... O ruivo então refletiu que talvez devesse cuidar do menino, como forma de compensação por não ter o feito direito com sua irmã. É claro que não nutria por Omi o mesmo sentimento que nutria por Aya, na verdade não tinha sentimento nenhum. Acreditava com todas suas forças, quase como se fosse uma obrigação, que jamais poderia gostar de qualquer ser vivo, com exceção para sua irmã. É claro que o chibi despertava ternura nas pessoas, carinho, mas... Não, o ruivo jamais iria gostar dele e ponto! Quanto à febre, o mais adequado seria pôr o loirinho num banho frio. E assim fez, e se não encarou o corpo do menino foi por muito esforço. Ou não. Aya tinha muito auto controle, além disso, não seria qualquer criança que atrairia sua atenção.

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O que... O que Aya está fazendo? O que houve com Omi? Yohji inconscientemente se escondeu quando viu os dois indo em direção ao quarto. Não entendia muito bem o que estava sentindo, mas estava com um misto de incômodo e preocupação. Além disso, havia mais mil e uma coisas preocupando-o, como, por exemplo, o beijo que ele trocara com Ken. Como reagiria agora em relação ao seu melhor amigo? Não que estivesse apaixonado por ele. Imagine um absurdo desses! O loiro gostava única e exclusivamente de mulheres! Mas e quanto a Aya? Enquanto saboreava Ken, fora o ruivo que lhe invadira a mente. O que estava acontecendo?

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Eu... eu beijei Yohji! Não acredito que tive coragem de fazer isso! Tudo bem que estar perto dele faça com que eu perca o controle sobre mim mesmo, mas dessa vez descontrolei de vez! Isso foi irracional! OK: Yohji sempre me deixou irracional, mas ainda assim havia uma luz em minha mente que sempre me lembrava de que beijar uma pessoa sem seu consentimento pode trazer graves conseqüências! Ken no baka! Mas ainda assim ele correspondeu, isso não se pode negar. Se eu tocar minha boca posso sentir em meus dedos o calor remanescente do beijo. Se passar a língua pelos meus lábios ainda posso saborear os vestígios de sua saliva... Se fechar meus olhos, posso me lembrar em detalhes de cada sensação, de cada milésimo de segundo. Ainda assim, e se Yohji tiver apenas seguido um impulso? Um instinto? Algo que o faz esquecer se é um homem ou mulher que está o beijando, mas desde que seja um beijo é "aproveite ao máximo"? Isso só está deixando minha cabeça confusa! Além do mais, ele me afastou depois... Droga, eu não devia ter feito nada desde o início!

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A noite passou silenciosa, e se findou junto com a viagem. Já na aurora podia se ver a terra aproximando-se do navio. Os Weiss tiveram que esquecer suas preocupações por algumas horas, enquanto terminavam com a burocracia e decidiam qual seria a programação. Ken parecia o mesmo de sempre, e embora dirigisse hora ou outra a palavra ao playboy, ainda assim evitava olhar para ele. Tinha medo de receber uma cara de recusa. Enquanto isso, Yohji permanecia mais quieto do que de costume, ajudando nos planos mas sem dirigir a palavra para nenhum de seus amigos em específico. Omi continuava alegre e otimista como sempre, embora fosse possível notar nele o ar doente e cansado. Além disso, quando olhava para Aya, suas feições misturavam-se com sentimentos de alegria, amor quase fraternal, gratidão, melancolia e pena. O ruivo, por sua vez, continuava anti-social como sempre, exceto pelos cuidados que dispensava ao Omi, de um jeito quase paterno.

Decidiram ir às montanhas, e logo compraram passagens de trem e reservaram quartos em um hotel serrano cinco estrelas. Chegando ao seu transporte, dividiram-se em duas salas: Aya e Omi em uma, Yohji e Ken noutra.

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-Hmmm... Que viagem mais longa...

-Acordou finalmente...

Omi sorriu envergonhado, corando.

-Não é bem assim... Você sabe que não costumo dormir tanto, mas estou doente, me sinto tão cansado! Meu corpo inteiro está dormente!

-Bom, eu até que cuidei de você. Mas parece que não cuidei bem...

-AH! Claro que não, Aya! Você com certeza fez um excelente trabalho! Se você saísse da Weiss daria ume excelente médico!

Omi tentava consertar o que havia dito, já que Aya ainda se sentia muito culpado por não ter cuidado melhor de sua mana. Precisava acreditar que estava cuidando bem de Omi, para sentir-se confortado e perdoado. Como uma compensação. Não pode salvar um (que era mais importante) mas salvou outro (que podia não importar tanto, mas ainda assim era uma vida! Mesmo assim o quanto Omi é importante Aya não pôde especificar ainda. Quando se está sofrendo, poderia fechar seu coração e alma mesmo para as pessoas mais significativas). Não que o espadachim tivesse cuidado mal de sua irmã, talvez tivesse cuidado bem demais até. Mas, como não deu certo, convencia-se que poderia ter feito ainda mais, mesmo que tivesse sido impossível na época. Porém, nesse momento, os pensamentos dos dois rumavam em direções opostas. Omi gostava muito mesmo de Aya, embora não houvesse especificado para si mesmo que tipo de "gostar" era esse. Mas gostava o suficiente para observar o amigo e poder adivinhar na mosca muitos de seus sentimentos, e tentar ajudá-lo, confortá-lo, mesmo que estivesse doente. Doente... Omi se sentia culpado por estar doente. Estava doente e dando trabalho para uma pessoa que deveria relaxar. Isso era horrível! Era ele quem deveria estar dando apoio ao Aya, e não o contrário!

Já com Aya era diferente. Cuidar de Omi estava indiretamente ajudando muito, já que assim podia se redimir sensivelmente da culpa pela morte de sua irmã ao mesmo tempo em que se distraía de pensamentos mórbidos... (?) Mesmo assim, aquela última frase do loirinho lhe fez pensar em sair da Weiss. É claro que aquela chance era remota, mas ainda assim possível. E se tivesse sido um médico em vez de espadachim? Poderia ter cuidado de maneira mil vezes mais acurada de sua mana! Mesmo assim...

-Aya... – o olhar do chibi imprimia uma grande tristeza - Você ainda está tão triste quanto antes... Eu não estou ajudando ne? Só te dou trabalho, não posso ajudar em nada...

-Como líder, preciso cuidar dos integrantes da Weiss. Não se incomode.

-Aya!

-...

Omi estava ficando decepcionado consigo mesmo. Só piorava o clima entre os dois. Preferiu ficar em silêncio então. Até mesmo porque estava novamente se sentindo zonzo e sonolento...

-Como você descobriu que Aya está morta?

A expressão do rosto do ruivo era intrigante. Mais que nunca seu rosto deixava transparecer a tristeza que o abatia. E também o cansaço, o cansaço de viver... Parecia anos mais velho! Havia olheiras circundando seus olhos, a pele branca estava manchada de tanto prender as lágrimas.

-Aya-kun... – Omi tocou a face do ruivo com a mão, acariciando a pele gelada – Eu simplesmente sabia. Eu... Eu me importo muito com você, não consigo te ver tão triste sem me perguntar o porquê! Eu sei que você esconde essa tristeza toda muito bem, mas às vezes ela simplesmente escapa, porque ela te deixa com o rosto mais abatido do que você imagina... Eu realmente queria perder essas férias... Apenas para que você estivesse feliz... Mas a morte da pessoa mais querida nos abate muito ne? É uma ferida que demora muito para cicatrizar, e mesmo quando já está fechada ela continua doendo terrivelmente... Eternamente... Mas ainda assim você não pode perder a sua energia para viver!

-Talvez você tenha razão, Omi... Acho que ficar triste só vai piorar as coisas, pois vai prejudicar vocês todos... E eu já prejudiquei gente demais!

-Não não Aya! Você é uma ótima pessoa! Graças a você estou me sentindo até melhor! Se ainda estou tão doente, é minha culpa, por eu ser fraco! Com certeza se não fossem seus cuidados exaustivos eu estaria mil vezes pior!

-Omi... Você é muito gentil. Às vezes você até parece minha irmã... É uma pessoa ótima, crescendo em minha estima. Na verdade, só há uma possibilidade de eu me sentir pior. Isso ocorreria caso eu perdesse mais uma pessoa especial.

Aya... Mas sua irmã é a única pessoa especial para você... Isso quer dizer que sua tristeza pode apenas regredir... Isso é bom!

-Bem, acho melhor você descansar mais um pouco, Omi... A viagem ainda vai demorar mais algumas horas...

-Hai!

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O ambiente entre Yohji e Ken estava tenso. Os dois estavam sentados em bancos opostos, de frente um para o outro, nervosos, revesando os olhares entre as janelas, a decoração, e entre o outro. Ken não tinha coragem para dizer alguma coisa e abordar seu amigo, e Yohji não estava com iniciativa para começar uma conversa que acabaria se guiando para o assunto que queria evitar: o beijo.

-Eer... Eu vou buscar um café... Yohji, quer uma xícara?

-Não, não... Obrigado...

Ken acabou se sentando novamente no lugar (inexplicavelmente), e passou a observar Yohji com uma expressão carinhosa.

-O... O que você está olhando?

-Nada não! ... Ou melhor, tudo. Você sabe que eu gosto de você, nada mais natural que eu queira te observar, admirar...

-Ehe, de certa forma me sinto traído... – apoiou o rosto na mão, cansado, enquanto olhava pela janela para o horizonte - Eu sempre depositei minha amizade e confiança em você, e acabei sendo surpreendido.

-Yotan, não diga isso! Não traí sua confiança nem pretendo. Além do mais, meus sentimentos por você não ficaram piores, apenas se aprofundaram, de modo que agora quero ainda mais sua felicidade.

-Nesses tempos é difícil se manter feliz... Todos aqui se escondem em suas máscaras. A Weiss é feita disso: máscaras! Cada um tem um passado triste demais para se deixar entregar a um novo sentimento... – suspirou - Isso é melancólico...

-Nossa! Falando assim, tão sério, nem parece o Yohji que eu conheço! Mas as máscaras são usadas apenas por quem ainda não esqueceu seu passado nem perdoou suas dívidas consigo mesmo.

-Talvez... Eu ainda não tenho encontrado a paz que preciso. Tentei apenas esquecer tudo o que houve, e tento ao máximo evitar que aconteça de novo...

-Você está falando dela, ne? Quantas noites já passei em claro com você quando sofria pelas lembranças dela...? A mulher que você amou, com quem você poderia ter casado, e com quem não conseguiu nada além de... morte... Talvez você devesse esquecer esses fantasmas que te atormentam, perdoar a si mesmo por não ter podido fazer algo para mantê-la viva.

-É difícil, Kenken... É difícil...

-Bem, você até que tenta lidar com isso! Pensa, você procura em todas as mulheres o que apenas uma te ofereceu de único até hoje. Acredito piamente que ela era especial, principalmente para você. ...Eu sinto um pouco de ciúmes dela... – o jogador lançou um olhar furtivo para o outro.

-EI! Você não tem esse direito!

-Claro que não! Mas não quero roubar o posto dela, não quero tirar o templo que você reservou para ela em seu coração. Eu quero apenas... Compartilhar...

-Não posso, não posso! – o loiro balançou a cabeça em negativa - Já se passaram anos, mas ainda não posso me entregar a alguém de alma e coração... Principalmente para um membro da Weiss. Nós brincamos com a vida, Ken... Nós brincamos... Com a nossa e com a dos outros. Você está sempre em perigo, eu também... Se eu me apegar a alguém, e essa pessoa morrer, eu não sei se conseguiria me reerguer novamente...

-Eu sei... Por isso que não podemos fugir do nosso passado. Nós nos conformamos com ele, não andamos para frente com medo de ter novamente em nossa frente o que já ficou para trás...

-Realmente... mas você fala como se já tivesse superado tudo aquilo.

-Superei sim! É claro que sempre vai me doer lembrar da traição que sofri, e que nunca vou esquecer isso... Mas eu quero superar! Quero fechar esse capítulo e poder começar um novo, mesmo que corra o risco de sofrer de novo! Não adianta eu me guardar da vida, principalmente sendo quem eu sou, um assassino. Do que adianta matar os malvados? Eles também são vidas, também tinham sentimentos, desejos, esperanças e motivações! É claro que podem ter tentando alcançar seus objetivos da maneira errada, mas ainda assim, quando nós os matamos, tiramos toda e qualquer esperança de eles se redimirem por seus pecados...

-Ken... Eu...

Janeiro/2003