DESTINO

"Foi sempre por um passo distraído

que começaram todos os destinos."

Capítulo 10

O vento uiva pelas frestas das janelas.

Lá fora o vento espalha as folhas pelo chão, transforma os resíduos sobre o asfalto num círculo rodopiante no ar.

O frio enregelante convida as pessoas a uma agasalhante e confortável acomodação dentro de suas casas, para dar fim ao desconforto da frieza a que a manhã chuvosa submete os seres vivos sobre a terra.

Dana Scully vestindo o casaco, olha-se ao espelho:

"Como eu, mais uma vez, fiquei aqui no apartamento de Mulder?" - dá uma olhada, chegando à porta do quarto - "E ele dorme como um anjo. Provavelmente sente-se firme, seguro e sossegado aqui comigo, é isso! Por que não chegamos logo à conclusão de que nascemos um para o outro? É nosso destino estarmos sempre juntos. Eu preciso dele... ele precisa de mim... porque, na verdade, desde o nosso primeiro encontro dentro do FBI nós vidas já estávamos predestinadas a ser um do outro. Não tem jeito... tem que ser assim."

Dana retorna à sala onde dormira e senta-se no sofá que lhe servira de cama. Permanece ali absorta, entregue a seus pensamentos.

"Não devo sair agora. Vou deixar um desjejum pronto pra ele. É melhor."

E assim pensando, resolve providenciar o necessário.

Dirige-se à cozinha.

No quarto Mulder desperta. Abre os olhos a seguir. Medita por alguns segundos. Espreguiça-se longamente. Diante dos seus olhos o teto, o lustre.

Baixa o olhar. Os móveis. Permanece meditando.

Subitamente seus pensamentos fazem-no levantar-se.

Dá um salto da cama.

- Scully! - pronuncia, recordando a noite anterior.

Dirige-se em passos rápidos para a sala. Nem sinal dela.

- Já se foi! - queixa-se num murmúrio.

Senta-se desanimado no sofá. Sente um estranho vazio em seu interior.

Com Scully ali ao seu lado fazendo-lhe companhia sentia-se bem.

Após sofrer a perda de sua mãe, Mulder sente-se cada vez mais só. Não tem ninguém que possa ouvir suas queixas, a não ser... Scully.

Ela sabe ouvir seus lamentos e queixumes, sentir suas dores, entender seus problemas...

Mas agora já se fôra de seu apartamento. E ali está ele só. Desanimado. Sofrido. Triste. Acabrunhado.

Se por tantas vezes costuma pronunciar frases sarcásticas e engraçadas, é justamente porque usa a ironia para extravasar o incômodo que lhe causa ser tão estranhamente só. Então necessita ser engraçado até para si mesmo e aproveitar as ocasiões para demonstrar aos que estão ao seu lado o seu modo sarcástico de ver as coisas.

A imagem de Scully, de sua diva, sua ajudadora, vem à mente.

Dirige-se ao banheiro. Olha-se ao espelho. Vê sua fisionomia cansada, mesmo sendo pela manhã e tendo dormido tão bem. Passa a mão pelo rosto áspero pela barba a fazer.

Escova os dentes. Pára. Olha-se novamente ao espelho com a escova presa à boca.

Não sabe o que vê, realmente; se é sua fisionomia ou o rosto de Scully refletido no espelho. Tudo está a confundir-se no seu cérebro. Uma chuveirada sobre a pele certamente o fará sentir ânimo, pensa e assim faz.

X x x x x X

Dana dirige seu carro sob o trânsito livre.

Ainda bem, pensa, pois seu desejo mais premente é chegar a seu apartamento o mais rápido possível. Necessita fazê-lo o quanto antes.

Já está bem próximo ao seu prédio. Estaciona o carro. Entra em casa.

Joga sobre a mesa as chaves, enquanto vai retirando o casaco e colocando-o sobre uma cadeira.

Apesar da manhã intensamente fria, sente-se quente por dentro; parece-lhe que sua temperatura combina com o calor que corre por seus pensamentos tão ardentes.

Um longo e profundo suspiro escapa-lhe do fundo do peito.

Repentinamente sente os olhos encherem-se de lágrimas. Sente-se triste por causa do amigo. Mulder!

Tão só, tão infinitamente só! Alquebrado. Triste.

Havia lhe feito companhia por algumas horas, assim como ele lhe havia feito também quando precisava. Mas sabe que ambos necessitam-se um do outro. E por esse motivo ela sente-se infeliz agora, tanto quanto Mulder o está, tem certeza disso.

Entra no banheiro. Retira toda a roupa. Olha-se ao espelho.

Vê o semblante um pouco abatido. Pequenas e discretas bolsas sob os olhos denotam cansaço. Dormira mal, afinal. Viera-lhe o sono, porem não está acostumada a se acomodar toda uma noite num sofá, apenas.

Resolve entrar no chuveiro.

Fecha os olhos, enquanto a água tépida derrama-se-lhe sobre o corpo. Não se move. Deixa apenas que a água vinda em jato purifique seu corpo e quem sabe também a mente.

Após alguns minutos sai do banho; veste-se.

O telefone toca.

É o celular no bolso do casaco.

- Scully...?

Um frio de prazer percorre-lhe as fibras do corpo ao ouvir o chamado.

Fecha os olhos, extasiada, atenta...

- Estou aqui, Mulder. - diz, quase num murmúrio.

- Você dormiu bem?

- Claro. - pensa um pouco - Mulder... desculpe-me... saí assim sem falar com você...

- Não tem problema...

Pareceu a Dana que ele iria terminar a frase censurando-a, porem ele não o fez.

- Scully...? - volta a chamar.

- Sim?

- Sabe que dia é hoje?

- Sábado...!

- É... vamos fazer alguma coisa...

- Alguma coisa...?

- ... juntos?

Dana está com o fone no ouvido aguardando suas palavras, embebendo-as uma a uma, enlevada, embevecida, apaixonada. Aguarda em silêncio.

Mulder deitado com os pés no alto do encosto do sofá, por sua vez espera virem através do fone as palavras dela.

Ambos permanecem aguardando as palavras do outro.

Necessitam-se. Mas apenas esperam.

- Mulder... - ela sussurra.

- O que...?

- O que você quer fazer?

- Ir dar um passeio por aí...

- Com esse frio todo?

- O que tem isso? Eu te aqueço!

Pronto! Ai, que essa frase mexera com Dana lá bem no fundo dos seus sentidos!

E como deseja que ele a aqueça!

Mas apenas esboça um sorriso.

Ele do outro lado também sorri pelas palavras que proferira .

O silêncio entre ambos permanece.

Um e outro sentem que há palavras para serem pronunciadas, palavras que necessitam ser faladas, extravasando-lhes as almas cansadas de tanto esperar.

Vários segundos ainda se passam.

- Mulder... por que sair nesse tempo, com esse frio aí fora?

- Ora, Scully, afinal de contas não basta ficar o tempo todo só com uma arma às mãos...!

- Sei disso...

- E minhas mãos servem para tantas outras coisas!

Dana sente-se incomodada com as palavras dele. Novamente aquele frêmito de prazer remexe nos seus sentidos. Adora- o Ama-o Precisa dele sob todos os pontos de vista.

Existe, porem, um sinal vermelho no trânsito de suas emoções que a faz imediatamente parar e impedi-la de aceitar todas as palavras que ele lhe fala.

Ainda com o fone aos ouvidos ouve-o o ruído da respiração de Mulder do outro lado.

- Te apanho em uma hora. Combinado?

- Tudo bem, Mulder. Eu aguardo você.

- Tchau, lindinha!

- Tchau... - responde Dana, quase sem voz.

Ele é a sua felicidade. Ele a deixa cheia de desejos e a faz sentir-se mais mulher, mais desejosa de estar nos seus braços quentes, esquecer o frio, as tristezas.

Apenas viver!

X x x x x X

No quarto de hotel de um luxo esplendoroso, cortinas com seus bandôs bordados em repuxados de vermelho forte, sanguíneo. Os móveis num estilo antigo, imitando peças do século passado, tapetes de fibras longas ladeando a grande e larga cama de colunas sustentando um teto e um cortinado à volta a servir-lhe de decoração.

A música orquestrada e suave inspira um ambiente romântico.

Na mesa baixa a bandeja contendo a champanhe no balde de gelo, as taças de cristal.

Ele coloca a champanhe borbulhante nas taças, oferecendo uma delas à sua acompanhante, que beberica a espumante e dourada bebida; ela passa a ponta da língua sobre os lábios, olhando para ele fixamente, num gesto sensual.

- Há quanto tempo te espero! - ele diz.

- Verdade? - indaga, quase num gemido.

- Você sabe que sim. Há muito tempo! - fita-a amorosamente.

- Vou tentar acreditar nisso. - ela dá uma risada e depõe a taça sobre a mesa.

- Por que você sempre me diz algo que me faz sentir-me tão frustrado?

- Ah, não exagere, bem! Não é verdade!

Ele aproxima-se.

Ela que é sua amiga, companhia de todas as horas, procura sempre levá-lo na brincadeira, quando o vê falar de seus sentimentos.

- Bem, eu acho que lhe avisei que não podemos passar muitas horas aqui! - lembra.

- Eu não esqueço nunca as coisas que me fala e, na maioria das vezes...

- São desagradáveis! É isso que quer dizer?

Ele joga-se sobre um suntuoso divã. Coloca a cabeça entre as mãos. Em silêncio.

Ela aproxima-se. Senta-se junto a ele, aconchegando o corpo ao dele, insinuante.

- Hum, não fique tão cismado assim! Eu gosto de você, realmente. Que melhor prova pode ter do que eu estar aqui com você? Não está vendo?

Toma-lhe a mão e coloca-a na direção dos botões de sua blusa, fazendo-o abri-los um a um.

Entreabre os lábios.

As mãos dele vagueiam pela intimidade de seus seios e aproxima os lábios para depositar naquela boca que a ele se apresenta o beijo sôfrego que o abrasa neste momento.

Os dois, enlouquecidos pelo desejo, deixam seus instintos seguir à frente.

Já não mais podem limitá-lo.

Está forte demais aquele vontade de entregar-se um ao outro, unir suas carnes vibrantes, seus corpos ardentes. Serem somente um só ser num deslumbrante ato de amor.

Não mais querem deixar que as palavras desagradáveis lhes venham à mente.

Necessitam agora, tão somente deixar vir à tona seu desejo de um ato de amor há tanto tempo guardado no sentimento de cada um.

A suave luz acesa no abajur de cúpula dourada, dá um toque de sensualidade ao quarto de hotel. E no ambiente vibrante de sentimentos românticos, ecoa os gemidos de prazer do casal que se entrega ao amor naquela tarde prazerosa.

Após algum tempo aquelas horas de prazer os havia deixado abatidos, cansados.

Mas estão felizes.

Nada falam.

Os lençóis desarrumados cobrindo-os, esparramam-se metade pelo chão, caindo pelas beiradas da cama.

Ele olha para os vidros da janela.

Os pequenos flocos de neve batem contra a superfície lisa do vidro, como se fossem migalhas de isopor.

Dirige o olhar para ela, adormecida ao seu lado.

Acha-a linda. Ama-a tanto!

Um terno sorriso desenha-se em seus lábios, mas no coração abate-o o sentimento de que ela não o ama tão intensamente como deveria ser.

E isso o deixa mal.

Mas por que não deixar para lá o sentimento de frustração?

Agora, neste instante, não estão juntos ali a entregar-se com paixão?

X x x x x X

À semi escuridão do ambiente ela examina-lhe o perfil sensual; sempre o faz porque gosta, adora apreciar o que lhe atrai tanto: os olhos verdes dele às vezes acinzentados; adora sua boca de lábios grossos; venera esse nariz agudo, chamativo que a faz ter desejo de beijar sempre; depositar seus lábios bem ali, sobre o nariz e entre os olhos.

Amá-lo num beijo assim, que nada tem de sensual, mas de uma forma pura, sem igual.

Sente agora que o braço dele está em torno de seus ombros.

Ele, por sua vez, dirige o olhar para sua companheira ao lado.

Ama-a, tem certeza e isso vem de há longo, longo tempo.

Deseja beijá-la vorazmente, sempre foi o seu sonho.

Um dia, talvez. Quem sabe?

Porque até agora somente a demonstração de afeto e carinho ela lhe quis demonstrar.

- Scully... - murmura - o que está achando?

- Bom... não sabia que esse filme tinha cenas tão tórridas pra se ver!

- Não lhe sugere nada? - tem um tom de malícia.

Ela o olha. Naquela pouca luz percebe aqueles olhos esquadrinhadores sobre si.

- E o que sugere a você?

- O que você está vendo entre duas pessoas que se amam...

- Ela não o ama, certamente...

- Demonstrou que sim.

- É claro que não! Não reparou como é fria com ele? Apenas seguiu seu instinto de fêmea!

Mulder sorri e dá uma guinada na cabeça, levando-a para trás.

- Puxa, Scully, você usa cada termo tão...

- Shiiiiiiiii !

Alguém os repreendera no salão de projeção.

Conversavam já em tom quase audível e isto incomodou os demais espectadores do cinema.

As luzes acendem-se.

O THE END é exibido na tela. Termina a primeira sessão.

Algumas pessoas levantam-se para ir fora do salão de projeção.

Mulder e Scully ainda permanecem, a fim de esperar a segunda sessão do filme.

- Quer sair um pouco? - ele quer saber.

- Sim. Vamos.

Mulder a ajuda. Vão até o saguão.

Ele compra bombons. Entrega a ela o pacote.

Distraidamente Scully tira o chocolate da embalagem.

Nota que Mulder a observa atentamente.

- Quer me falar alguma coisa? - pergunta.

- Meu olhar demonstra isso?

- Hum, hum... - ela assente.

Retira o bombom do invólucro.

Vê, surpresa o feitio da guloseima.

- Ah, Mulder, tem o feitio de um coração!

- Gostou?

- Você viu antes de comprar ou foi por acaso?

- Pode estar certa de que não faço nada por acaso, Scully.

Ela não sabe o que argumentar.

Mordisca o bombom.

- Huuuumm... gostoso! Prova!

Oferece a ele o chocolate.

- Não, Scully, só quando voltarmos à sessão.

Segura-lhe o braço para conduzi-la até as escadas a fim de subirem às poltronas no andar superior.

Acomodam-se.

É reiniciada a exibição do filme.

As cenas desenrolam-se diante de seus olhos.

No lugar em que se encontram agora, poucos espectadores se pode ver. Muitas poltronas estão vazias.

Scully sente-se gostosamente bem ali, num dia de folga, junto de Mulder.

Nota-lhe a respiração ofegante; ele lhe parece ansioso e tanto quanto ela, está certa disso. Quando estão muito próximos sentem-se desejar um ao outro.

Não com aquele desejo apenas carnal, mas aquela sensação tranqüila de bem estar de saberem-se docemente atraídos um pelo outro, como é atraída a abelha pela flor, como o mel do amor aflorando seus corações, nos sentimentos, no olhar, na boca...

Dana sente que Mulder toca seu ombro, segurando-a por trás da poltrona. E aperta um pouco os dedos, fazendo pressão sobre os ombros dela .

Ela olha-o de soslaio.

Nem conta as vezes que lançara em direção dele um olhar de reprovação para coisas mais simples possíveis, como um toque sobre seu ombro, por exemplo. Porem, com o passar do tempo esses pequenos gestos de ternura da parte dele passaram a fazer parte do seu dia a dia.

E sente neste instante um toque mais forte dele. Seu coração dá um salto.

"Ai, meu Deus! Neste ambiente propício aqui em que estamos, assistindo essa quente relação entre o casal na tela, nos faz despertar os sentidos e Mulder já começou a sentir isso!"

- Mulder...? - não desvia o olhar da tela à sua frente, fingindo prestar atenção no filme.

- Sim, Scully? - ele também não desvia o olhar.

- Toma. - ela fala, oferecendo-lhe um bombom, retirando-lhe o invólucro e coloca o chocolate entre os lábios de Mulder.

Ela em seguida retira o papel de outro bombom e o coloca na sua própria boca.

- Scully...? - ele ri discretamente.

- Fale mais baixo! - sussurra, olhando à sua volta.

- Agora podemos gritar até, Scully. Aqui em cima não tem ninguém junto de nós.

- O que você queria dizer?

- Nada... - ele cala-se então.

Continuam a saborear os bombons.

Mulder dirige o rosto para ela, aperta-lhe os ombros, aconchegando-a mais para si.

- Está engraçado... - comenta.

- Não acho, Mulder ! - sussurra - É um tremendo drama esse filme!

- O ruído da nossa mastigação... - diz ele, encostando a cabeça na dela, rindo discretamente.

- Eu não acredito! Você é demais! Que coisa, Mulder!

- E o seu bombom é crocante!

- Como sabe?

Estão muito próximos um do outro. As bocas quase unidas.

- Scully... ele murmura e procura-lhe os lábios.

Ela o recebe com o amor que está intenso dentro de si. E corresponde ao beijo dele.

Sentem-se um ao outro no gosto do chocolate, no gosto da saliva. Sentem o cheio característico de cada um exalando-lhes das narinas.

Mulder aperta-a mais pelos ombros, aconchegando-a para si, enquanto ela apoia a mão no peito arfante dele.

Ali estão se tocando, se sentindo, se amando...

Não como o amor explícito da tela do cinema, mas aquele amor que não aflora à vista de qualquer um. É um amor contido, puro. E, em suma, o que lhes havia reservado o destino que os unira num verdadeiro e sublime amor.

"Os dados do destino sempre

caem bem nas mãos de Deus."

Sófocles