3 – Parentes em parênteses
Cinthia sentiu outro solavanco e apareceu atrás do muro dos fundos da sua casa, que por ser divisa com um parque era bem escondido dos olhos trouxas. Pelos seus cálculos deviam ser duas da tarde no Brasil. Ela deu a volta no muro, mas percebeu que havia esquecido a chave antes de sair.
"Certas coisas não mudam nunca." Ela apertou a campainha e esperou uma voz falar através do interfone.
- Quem é? – ela ouviu a voz de sua mãe através do aparelhinho.
- Eu! Voltei!
Cinthia nunca se identificava quando usava o interfone de casa; era a sua maneira de ser reconhecida. Era um pouco estranho, mas era por coisas assim que ela não era uma trouxa.
O portão abriu sem que ninguém precisasse ir até lá, e Cinthia subiu os degraus que davam para a porta da frente. Mas estava trancada. Antes que sua mãe precisasse destrancar a porta, Cinthia fez o rápido feitiço allorromora e entrou. Mas ela não esperava ver o que viu na sala. Marcelo, o namorado de sua irmã, e Ana, a recém descoberta namorada de seu irmão estavam em casa, provavelmente por um convite de almoço de sua mãe para comemorar o Ano Novo. Geralmente a mãe de Cinthia convidava amigos (e futuros genros e noras) um ou dois dias depois do Ano Novo porque todos gostam de passar essa data com a família ou em alguma festa. Simone e Ismael, os seus irmãos, também estavam lá e a cumprimentaram desejando um Feliz Ano Novo. Se os cálculos de Cinthia estavam certos, Isabela, a namorada do seu irmão mais velho, Alexandre (ou Tio Ale, para os familiares pentelhos mais chegados) também devia estar em casa.
- Cinthia! Gostou de passar o Ano Novo na casa da sogrinha? – perguntou a sua mãe sorrindo, vindo ao encontro dela. Cinthia não gostava quando a família começava a pegar no pé, e a sua mãe e o Ismael eram mestres nisso.
- Foi bem legal. A Molly é bem legal, e o pai dele também. Quase todos os irmãos dele também estavam lá.
- E você conseguiu passar pela provação de todos? – perguntou Simone.
- Eu acho que sim. Bem, vou guardar a minha mala e já volto.
Cinthia subiu as escadas o mais rápido que pôde sem parecer que estava correndo. Tinha esquecido como a sua irmã (seis anos mais velha que ela) também gostava de pegar no pé dos outros como troco por terem pegado no pé dela, dizendo que ela e Marcelo teriam pelo menos uns oito filhos, e que um deles ia se chamar Giuseppe e outro Marcelo Junior, só porque ele era descendente de italianos.
"Eu nunca mais abro a minha boca."
Quando estava voltando para a sala, Cinthia perguntou pelo irmão mais velho (onze anos mais velho que ela), e a sua mãe disse que ele havia ido para a casa da namorada. Eles já estavam namorando a sete anos e dois meses! Cinthia sabia que seu irmão era muito acomodado para avançar no relacionamento, e a namorada dele parecia não se importar muito com isso. Sorte a dele! Se bem que até agora ele não havia saído da casa dos pais. Cinthia achava que isso era acomodação demais para uma pessoa de vinte e nove anos. Ela não queria ficar como ele.
Todos estavam na sala conversando, Cinthia, a mãe, o pai, e os outros quatro. Lá pela hora do lanche (acompanhada de bolo mármore, café e chimarrão Ela mora lá no Sul, no Paraná. Vocês esperavam o quê?), a campainha tocou. Como Cinthia já estava de pé e a caminho da cozinha para pegar outro pedaço de bolo, a sua mãe pediu que fosse ver quem era.
- Quem é? – ela perguntou pelo interfone.
- Adivinhe! – respondeu uma voz familiar, em inglês, mas Cinthia achou aquilo muito estranho.
- Jorge?! O que você está fazendo aqui? – ela perguntou, em inglês também.
- Olha, é muito esquisito falar com uma caixinha no muro. Será que eu podia entrar para explicar?
- Tá, espera um pouquinho.
Cinthia não apertou o botão para abrir o portão, pegando a chave para ir lá. Respondeu rapidamente a pergunta de seu pai quando passou pela sala, dizendo o nome de Jorge. Quando ela abriu o portão ficou surpresa ao ver que ele trazia uma mala.
- O que você está fazendo aqui? – perguntou ela novamente.
- Eu vim provar para você que eu não sou tão imaturo quanto você acha.
- Eu não acho que você seja imaturo – respondeu ela fechando o portão atrás dele. – Só um pouco... um pouco...
- Imaturo.
- É. Só um pouquinho – ela disse meio constrangida, começando a subir a escada. – Mas você sabe que é você é assim.
- É por isso que eu estou aqui. Já que você não acredita no que eu disse antes, talvez isso te convença de que eu sei ser adulto.
Cinthia já havia aberto a porta de entrada e estava com um pé para dentro de casa, mas Jorge colocou a mala no chão e tirou uma caixinha do bolso. Cinthia ficou vermelha e pensou "Agora não!", mas não conseguiu dizer isso.
- Você me daria a imensa honra de ser a mulher mais importante da minha vida para todo o sempre? – ele disse com uma reverência, sorrindo e abrindo a caixinha de veludo negra, revelando um bonito anel dentro. Cinthia engasgou.
Mas não foi preciso que ela falasse nada. Todos os que estavam na sala ouviram a proposta e Simone, Ana e a senhora Laiz fizeram um sonoro "Uhuuu" daqueles de seriados americanos. Jorge olhou surpreso para Cinthia, mas continuava sorrindo (talvez fosse porque ela havia ficado vermelha, mas ele quase sempre estava sorrindo). Ele passou pelo pequeno hall e deu de cara com os seis ocupantes da sala. Cinthia vinha logo atrás dele e preferiu ficar escondida pela altura dele.
- Se eu soubesse que tinha telespectadores teria arranjado alguns efeitos especiais – Jorge disse se recuperando da surpresa. Cinthia ainda estava encolhida atrás dele.
- Finja que não estamos aqui – disse a mãe de Cinthia rapidamente, abanando a mão no ar. – Continuem. Nós não ouvimos nada.
- Acho melhor irmos lá fora – Cinthia disse ainda muito vermelha, puxando Jorge pela mão até o quintal sem olhar para o rosto dos parentes. A mala dele havia ficado totalmente esquecida no tapetinho de boas-vindas, e a porta continuava aberta.
O quintal da casa de Cinthia parecia um mini jardim botânico, mesmo não sendo muito grande. Laiz, a mãe dela, tinha um "dedo verde", e enchera o quintal de flores, arbustos, árvores frutíferas e ainda um banco de madeira para poder apreciar aquela paisagem confortavelmente.
Cinthia se sentou no banco, ficando um pouco rígida, mas Jorge se sentou a seu lado e deitou a cabeça em seu colo, começando a brincar com uma mecha do longo cabelo dela. Cinthia continuou olhando para frente, pensando.
"O Ismael vai ficar me lembrando disso por um mês. Não, é muito pouco. Um ano no mínimo! Pensando bem, acho que isso é uma daquelas coisas que se lembra até no funeral da pessoa, ou seja, no meu!"
Risadas altas vindo da casa tiraram Cinthia daqueles devaneios inúteis, e ela sentiu que Jorge havia parado de mexer em seu cabelo. Ela olhou para baixo e surpreendeu um olhar avaliador vindo dele.
- Será que aquela pergunta foi tão difícil que nem uma mestra em Aritmância como você não consegue responder?
- Primeiro, eu não sou uma mestra em Aritmância. Segundo, a resposta é um pouco óbvia, não acha? – ela disse colocando a mecha de cabelo atrás da orelha impacientemente, vendo um sorriso se formar no rosto dele. – Eu quero me casar com você, mas... acho que é um pouco... precipitado.
- Pelo menos eu tenho maturidade para saber com quem eu quero passar o meu futuro. E o Garra e a Emplumada vão se casar daqui a um mês e você acha que nós estamos sendo precipitados?!
- Bem... você tem que admitir que eles são um pouquinho impulsivos, e nós não somos eles. Pode ser normal para você que os bruxos formem uma família já quando acabam a escola, mas por toda a minha vida (especialmente nos últimos meses) eu vi que os trouxas são menos trouxas que os bruxos nesse assunto. Claro, nem todos são assim, mas a maioria...
- Como assim? – perguntou Jorge, interrompendo-a.
- Eles se preocupam em formar uma vida antes de se casar, sabe, se firmar no emprego antes de formar uma família. Isso evita um bocado de problemas como... como...
Cinthia mordeu o lábio. Não queria continuar para não ofender Jorge, mas ele sabia o que ela ia dizer e se sentou no banco, falando por ela.
- Ter um bando de filhos sem poder sustentá-los direito? Como a minha família?
Agora não havia nenhum traço do sorriso anterior no rosto dele, apenas fria compreensão. Cinthia ficou um pouco receosa em continuar, e até um pouco assustada, mas precisavam esclarece aquilo de uma vez por todas.
- Agora você entende porquê eu estou tão "lenta", exatamente o quê eu estou tentando evitar? O caráter das pessoas não muda só porque algumas têm um pouquinho a mais de regalias que as outras, mas eu acho que seria mais prudente esperar um pouco. Não concorda? – ela acrescentou a pergunta com uma certa incerteza na voz. Para a sua surpresa e alívio, Jorge sorriu.
- Você está com medo da "tradição Weasley", não está?
- Bom, é, é mais ou menos isso. – Cinthia não sabia explicar direito o que era, mas as palavras de Jorge se encaixavam bem com o que ela sentia. – Mas nem tudo na "tradição Weasley" é ruim. Todos são legais, isso não se pode negar.
- Eu nego – ele disse fechando a cara e evitando olhar para ela. – Você se esqueceu de um Weasley que não merecia ter esse sobrenome, e que faz de tudo para os outros não saberem que é nosso parente.
- O Percy... eu me esqueci mesmo...
- Tudo bem – Jorge disse rapidamente, balançando a cabeça para tentar esquecer também o próprio irmão. – Ele não é realmente um Weasley.
- Não fale assim! Por mais que você não goste do fato dele ter ficado do lado de Fudge, o Percy ainda é seu irmão, tem o mesmo sangue que você e faz parte da sua família. Vocês precisam esperar ele abrir os olhos para a verdade. Pode demorar, mas o pessoal do Ministério está cada vez mais sujeito à versão de Dumbledore depois que alguns dementadores foram vistos fora de Azkaban.
- Papai acha que ainda não foi o suficiente – Jorge disse meio resignado.
- Realmente, o caso foi muito bem abafado, mas acho que algumas pessoas estão começando a perder a confiança em Fudge.
- Como você sabe tanta coisa?
- Bem... é, bem... isso é meio lógico, não? Aqueles dementadores foram vistos por várias testemunhas e o Fudge não conteve o relato delas a tempo. E a explicação que ele deu não foi muito convincente. Inspeção de segurança, humpf! Quem é que acredita?
- Você e a sua lógica... Você devia trabalhar com ela, podia ser muito útil.
- Mas eu vou. O meu emprego no Ministério inglês está garantido justamente por causa disso.
Jorge a olhou meio curioso, meio desconfiado, e Cinthia sabia que cedo ou tarde essa pergunta viria:
- Que trabalho é esse exatamente?
- Não é nada – ela disse rapidamente. - Só um carguinho no mesmo andar que o seu pai. Vou começar no final do mês, assim que voltar para a Inglaterra.
- Você? No Departamento de Cumprimento das Leis Mágicas?
- Eu nunca comentei nada? Bom, de qualquer jeito, eu prefiro me firmar por lá para depois marcarmos uma data, OK? – "Prefiro também voltar a falar sobre isso do que explicar o meu emprego" pensou ela.
- OK, isso eu posso agüentar. Ah, bem lembrado! – Jorge tirou novamente a caixinha do bolso e a abriu de frente para ela. – Você ainda não me respondeu do jeito tradicional. Você quer... bem, você já sabe a pergunta.
- É lógico que eu quero!
Jorge revirou os olhos ao ouvir a palavra "lógica" novamente, mas tentou disfarçar. Ele tirou o anel da caixinha e o colocou no dedo dela. Cinthia sentiu o rosto corar um pouquinho desta vez mas, se isso é possível, foi por se sentir a pessoa mais feliz do mundo! Ela olhou atentamente para o anel, que parecia muito antigo apesar de bem cuidado, com um diamante discreto em forma de losângulo e pequenas pedras turquesa-clara e esmeraldas em volta das duas pontas, todas lapidadas com extremo cuidado. Conhecendo a "tradição Weasley", Jorge não poderia ter comprado aquele anel nem com todos os galeões que conseguira em Hogwarts somados aos lucros das encomendas dos logros.
- Aonde você achou um anel tão bonito assim? – perguntou ela voltando a olhar para Jorge.
- Era da avó de mamãe.
- Então isso é uma jóia de família! É muito valiosa para vocês – Cinthia disse bastante admirada. – Devia ser dada ao Carlinhos, já que ele é o mais velho.
- Não exatamente. Ele realmente gosta do trabalho que tem, e quase nunca sai daquela reserva de dragões. Mamãe não curtiu muito a idéia de deixar esse anel em um dedo escamoso, sabe. Ela também não bota muita fé em Gui e Fleur, acha que não vão muito longe. O Fred foi um pouco lento e azarado na minha opinião, e o Roniquinho ainda tá cheirando a fralda pra pedir a Hermione em casamento. Como eu fui mais esperto e pedi antes que todos, mamãe concordou em me passar o anel. E ela gostou muito de você!
- Eu não sei o que dizer... - Cinthia corou diante do último comentário de Jorge. Ela não achava que tivesse passado uma impressão tão boa assim a ponto de receber uma herança tão valiosa da Sra. Weasley. Nem pensar direito ela conseguia, quanto mais falar direito, e repetindo: - Eu realmente não sei...
- Isso eu posso resolver por você.
Jorge colocou os seus lábios nos dela no que prometia ser o começo de um beijo apaixonado, mas uma voz vinda da casa fez com que eles se virassem para ver quem a chamava.
- Cinthia, entre um pouco para lanchar. O empadão está acabando e você nem viu a cor.
A cabeça do pai de Cinthia estava para fora da janela da cozinha, e ela acenou indicando que já ia entrar.
- Ele não tem nenhum senso de inconveniência – ela disse sorrindo, ao mesmo tempo em que a cabeça do seu pai ficou fora de vista.
- Engraçado... eu acho que já vi uma outra pessoa assim...
- Muito engraçadinho, realmente – ela disse torcendo o nariz, sabendo que ele estava falando dela. – Vamos, aposto como minha mãe comprou o empadão na Cravo e Canela. É uma confeitaria ótima!
- Você não se importa que eu experimente o meu docinho antes do salgado, não é?
Antes que ela desse uma resposta, Jorge deu o longo beijo apaixonado que queria ter dado antes, fazendo Cinthia se arrepiar com o simples toque dele. Antes que se perdesse muito no beijo, Cinthia o fez dar uma pausa.
- É melhor entrarmos, ou eles vão gritar de novo.
- Deixe que gritem...
Dessa vez ele deu um beijo rápido (em comparação com o outro) e mais calmo, se levantando em seguida. Jorge ofereceu a mão para ela se levantar como um perfeito cavalheiro, e a acompanhou até a casa.
Mas a cozinha não era muito grande e chegou a faltar cadeiras para todas as oito pessoas. Rodnei (o pai dela) já estava quase saindo para a sala para pegar mais duas cadeiras quando Jorge fez algo ao mesmo tempo burro e meio inteligente.
- Não se preocupe com isso – ele disse puxando a varinha do bolso, conjurando duas cadeiras em pleno ar que caíram com um baque leve no chão da cozinha.
Toda a família de Cinthia havia se acostumado com ela fazendo mágicas no tempo em que passou em casa, e Marcelo e Isabela já sabiam também que ela era uma bruxa. Mas Ana, a namorada de Ismael, ainda não sabia. E nem devia ter sabido tão cedo.
Mas para a surpresa de todos, que estavam estáticos, a primeira a falar foi ela.
- Legal! Em qual escola você estudou?
- Hã... Hogwarts... - Jorge não podia ter deixado de notar o silêncio mórbido entre os outros, e sabia que com certeza ele havia feito alguma coisa errada.
- Você... sabe...? – começou Cinthia sem querer dizer muito.
- É claro! Eu estudei em Tapiruam! Seu irmão sempre me disse que você era um pouquinho esquisita, então eu já suspeitava que você devia ser bruxa.
Cinthia olhou zangada para Ismael ("Dizendo que eu sou esquisita, hein!"), mas ele estava ocupado demais para ver isso, olhando surpreso para Ana.
- Você nunca me contou que era... uma bruxa.
- E faz alguma diferença?
Quem perguntou foi Cinthia, que não suportava quando era discriminada por uma ou outra coisa, mas Ana olhava para Ismael como se fosse ela quem havia perguntado. Debaixo até dos olhares reprovadores de Dona Laiz, ele encolheu os ombros, um pouco arrependido de ter deixado aquilo escapar.
- Bom, não. Mas eu queria ter sabido disso antes. Assim eu podia ter sido mais cuidadoso com as piadinhas.
- Se eu não te azarei até agora, pode ficar tranqüilo – disse Ana sorrindo docemente. – Eu não me vingo dos outros por qualquer coisa, e só os azaro quando estão dormindo.
Cinthia, Fred e Ana riram, mas obviamente os outros não haviam entendido a sutileza de uma piada bruxa. Agora que este pequeno detalhe havia sido revelado (graças à vontade de se exibir de Jorge) eles puderam apreciar aquele delicioso empadão de frango Não consigo deixar de rir quando escrevo essa palavra. É involuntário! com um assunto extra para a conversa.
Em dado momento, Simone não pôde deixar de notar no anel faiscante que Cinthia estava usando, sendo que ela não era muito de usar anéis. Ela teve que explicar, e ficava agradecida quando Jorge a ajudava falando alguma coisa engraçada. Cinthia estava feliz, muito, muito, muito feliz!
Mas sabia exatamente o que sua mãe estava pensando, apesar dela demonstrar verdadeira alegria por ela. Foi ela quem dera todos os conselhos trouxas sobre vida para Cinthia, e aquilo ia contra alguns extremamente básicos. Mas ela não se importava com isso. Cinthia iria seguir os outros conselhos se pudesse, mas havia certas coisas que ela tinha que fazer por si mesma, e nem sempre podia seguir um roteiro programado.
