Capítulo 11 – Fuça-fuça inútil
N/A adiantada: Eu prevejo em minha bola de cristal acrílico rachada que esta capítulo será interessante em questões geográficas, que a leitor se cansará da falta de ação inicial e que a texto renderá umas três ou quatro vezes mais que a capítulo anterior. Que Merlin esteja com vocês! Beijo, tchau e amém! (O espírito de uma falsa vidente alemã sai do corpo da escritora com ar de superioridade, enquanto a garota volta zonzamente para seu computador e começa a digitar em um impulso suspeito de criatividade.)
- Eu não acredito que tivemos que comprar três chás diferentes! – Fred disse, escandalizado. – E os preços aumentaram desde que fomos para o Brasil, não é, Jorge?
- Ora, não é minha culpa – Cinthia disse, enquanto pagava o kit-Suíça de chás de línguas na loja. – Se eu não estivesse de licença, o escritório pagaria as despeças, mas não dói tanto tirar dois galeões do bolso para cada kit.
- E são quatro línguas – Aline disse, examinando a caixinha com os saches de chá. – Alemão, francês, italiano e… romanche?
- Aposto como nem vamos usar esse último – Jorge disse.
- Nunca subestime a utilidade das coisas – Cinthia disse, andando para fora da loja, sendo acompanhada pelos outros. – Agora vamos ter que aparatar até Berna.
- Tem certeza de que não tem um meio mais seguro? – Jorge disse, se lembrando que Cinthia reprovara da primeira vez no teste de aparatação.
- Não podemos usar a rede de flu, meu chefe seria avisado. Chaves de portal são demoradas de se conseguir, e uma viagem de vassoura seria extremamente desconfortável, mesmo com um feitiço amortecedor.
- Bem… - Aline pensava em falar alguma coisa, mas estava extremamente relutante. Ela sabia que era perigoso aparatar uma distância tão grande e não queria nem arriscar, mas a sua idéia não era boa tampouco. – Nada, deixem pra lá.
- Agora diga – Cinthia disse. – Qualquer idéia é útil.
- Bem… - Aline ainda hesitou.
- Ora, vamos! – Jorge disse. – Desembuche!
Aline soltou um suspiro e disse enfim: - Um dos meus colegas do curso de medicina mágica disse que tinha um tapete mágico, conseguiu por um bom preço com um tal de Ali Bashir. Ele diz que nunca usou, mas eu não acredito muito. – Antes que eles dissessem "Que ótima idéia!", ela acrescentou ligeira: - Mas isso seria quebrar umas dez leis do Ministério, sem dizer que poderíamos ser vistos facilmente por trouxas. Vocês sabem que tapetes mágicos foram banidos da Grã-Bretanha, estão nos Registros de Objetos Enfeitiçados Proscritos. São ilegais.
- Quem se importa? – disseram Fred e Jorge juntos.
- Isso pode nos dar problemas sérios – Cinthia disse pensativa enquanto andavam de volta para a loja. – Se nos descobrirem, estamos fritos.
- Não acredito que você está preocupada com isso quando a idéia foi da Mini Minerva – Fred disse.
- Eu não queria ter tido essa idéia tampouco, mas não quero arriscar uma aparatação até a Suíça – Aline disse.
- Mas é a única opção que temos se quisermos continuar com nossas cabeças no lugar – Cinthia disse. – Aline, tem como você falar com esse seu amigo para nos emprestar o tapete? Diga a ele que… sua família veio te visitar e ficaram interessados, afinal eles são trouxas. Não tem nenhum perigo.
- Tá legal. Hoje é segunda, então só vou poder falar com ele à tardinha, depois das aulas.
- Quanto mais cedo, melhor. Vamos arrumar as malas enquanto isso. Levem pouco peso, apenas o necessário. Quero chegar lá o mais cedo possível.
Todos concordaram, e Aline voltou para o apartamento para arrumar suas coisas. Cinthia e Jorge voltaram para a pensão, e Fred foi para a loja. Cinthia aproveitou para deixar algumas tigelas extra de ração para Nina, a sua gata, já que não sabia quanto tempo ficariam fora. Os gêmeos deixaram a loja fechada por toda à tarde, já que não valia a pena deixá-la aberta por apenas uma hora ou duas.
Passando das seis horas, Aline apareceu na loja com um embrulho grande e uma mala, e os gêmeos a ajudaram a se descarregar.
Eles desenrolaram o tapete, que dava confortavelmente para dez pessoas, o que seria bom para acomodar as malas, mas ainda tinham um problema. A cor predominante era o bege, mas havia vários desenhos em todos os tons de verde, vermelho e roxo.
- Como esperam que passemos despercebidos? – lembrou Aline. – Teremos que voar alto, acima das nuvens se não quisermos ser vistos. Mesmo sendo noite, aposto como essa coisa colorida vai chamar a atenção de muita gente.
- Eu sei de um feitiço que pode ser útil – Cinthia disse. – Mas seria bom irmos para uma parte retirada do vilarejo. Ainda há o risco de nos verem decolando.
Eles enrolaram o tapete novamente e saíram carregando as malas até a entrada do vilarejo, onde havia poucas casas por perto. Saindo da estrada, Cinthia pediu para que desenrolassem o tapete e colocassem as malas em cima, gravando bem suas posições. Ela puxou a varinha e a posicionou em cima da mala mais alta, pronunciando claramente:
- Delusions!
Uma espécie de gosma transparente começou a escorrer da varinha dela, envolvendo as malas e escorrendo pelo tapete. Quando parou, os objetos pareciam ter absorvido a gosma, pois essa desaparecera e eles podiam ver a grama através de suas coisas.
- Feitiço desilusório – Cinthia disse, sem dar mais explicações. – Vou ter que fazer isso na gente também.
Os outros assentiram com acenos de cabeça, e Cinthia executou o feitiço um a um, fazendo por fim em si mesma. Era uma sensação engraçada. Parecia que haviam quebrado um ovo em suas cabeças, gelado, e em seguida suas vestes e peles estavam da cor do ambiente, como se fossem camaleões. Não estavam realmente transparentes, mas estranhamente coloridos. Só alguém que prestasse muita atenção poderia vê-los.
- Vamos então – Cinthia disse. – Todos conseguem ver o tapete, certo?
- Cuidado para não deixar uma nádega para fora – Fred disse, se sentando de pernas cruzadas no tapete.
Cinthia foi à frente com Jorge, e Aline e Fred ficaram mais para trás, cuidando das malas. Cinthia ordenou "suba" para o tapete, e eles levantaram vôo para o céu azul-veludo, onde as primeiras estrelas já despontavam alegremente.
Depois de ganharem altitude e seguirem para o leste por alguns minutos, Cinthia pediu que Aline lhe passasse sua maleta, separada da mala, de onde ela tirou (com certa dificuldade por causa do feitiço desilusório) um mapa e uma bússola. Depois de executar um feitiço para desencanta-los, os outros puderam ver que seus pontos estavam indicados no mapa, e que a bússola indicava a direção que deveriam pegar, e não o norte.
Cinthia explicou que o mapa indicava a localização dela, e mostrava o lugar que ela ordenasse, desde apenas uma cidade até o mundo inteiro. Por enquanto mostrava a Europa, e era só o que precisavam ver. Quando estivessem perto de Berna, ela faria o mapa mostrar apenas a Suíça, e depois só precisariam de detalhes sobre as ruas da cidade.
O tapete se movia pouco mais rápido que uma vassoura, o que indicava que levariam de quatro a seis horas de viagem. Decidiram fazer a viagem por fora do país a uma distância segura da costa, ou passariam quase por cima de Londres se fizessem uma linha reta. Não demorou para que atingissem o mar que separava a Grã-Bretanha do continente, e puderam diminuir a altitude. Era muito frio perto das nuvens, e mesmo sendo praticamente verão, isso não fazia diferença à noite. As águas estavam levemente agitadas, e um vento empurrava-os para a esquerda, desviando-os levemente do curso. Cinthia mantinha a bússola sem o feitiço ilusório para poder se corrigir periodicamente.
Depois de duas horas de viagem, as águas se tornaram mais calmas e o vento diminuiu, permitindo que eles descessem até ficarem a poucos metros da água. Devia ter passado pouco das nove horas da noite, e eles apreciaram a vista do mar e do céu estrelado sem serem incomodados pelo sono.
Com a proximidade das praias do continente depois de passarem o Passo de Calais, Cinthia fez o tapete subir novamente para as nuvens, evitando que algum trouxa (ou até algum bruxo do governo) os vissem em um tapete mágico. A maioria dos países Europeus também haviam banido aquele artefato mágico, com a exceção da Albânia, Grécia e Iugoslávia, e era bom que eles não se arriscassem muito.
- Já chegamos? – perguntou Fred como uma criancinha, e Cinthia balançou a cabeça.
- Calculo ainda umas três ou quatro horas de viagem – ela disse. – Agora estamos passando pelas praias da Bélgica, perto de Ostende, de acordo com o mapa. Vamos ter que diminuir a velocidade um pouco por causa das concentrações urbanas trouxas nas proximidades. Vamos ficar ainda uma hora na Bélgica, depois seguimos pela França e logo vamos chegar à Suíça.
- Ou seja, não estamos nem perto – simplificou Jorge.
Cinthia deixou escapar um bocejo, mas estava muito frio para dormir, e ela precisava continuar guiando o tapete. Aline também bocejou, e ela se deu conta de que devia ser por volta de dez horas.
- Vocês podem dormir. Eu aviso quando estivermos chegando perto – Cinthia disse.
- Não quer que eu fique no controle do tapete a partir daqui? – ofereceu Jorge.
- Não, está tudo bem. O mapa só obedece a mim, e eu sei identificar as áreas trouxas e bruxas. Pode dormir.
- Pelo menos vamos ficar um pouco mais aquecidos – Aline disse, e em seguida conjurando cobertores para os quatro. Assim que saíram de sua varinha, o tecido ficou camaleônico como eles, poupando o trabalho de deixa-los desilusionados também.
Fred, Jorge e Aline se acomodaram, tendo espaço suficiente para se deitarem encolhidos já que a bagagem ocupava pouco espaço. Aline ainda fez um feitiço de fixação para que eles não caíssem do tapete enquanto cochilavam, e logo pegou no sono. Ela devia estar mesmo cansada de nervosismo para dormir tão rápido. Fred também pegou no sono depois de se revirar algumas vezes, não gostando da sensação de fazer isso enquanto voava. O tapete era muito mais confortável que as vassouras, mas ele não se acostumava com a idéia de dormir voando, ainda mais quando estavam a quase duzentos quilômetros por hora a uma altitude absurdamente alta.
Cinthia se enrolou no cobertor, mas continuou sentada para espantar o sono. Depois de algum tempo conseguiu ficar acordada sem dificuldade, afinal, insônia não era nenhuma novidade para ela. Mas ao olhar para trás, viu que Jorge ainda estava com os olhos abertos enquanto os outros já dormiam, e Fred ocasionalmente soltava um ronco.
- Não consegue dormir? – ela perguntou, sabendo muito bem o que o mantinha acordado.
- Tenho medo de que você durma na direção – ele disse, obviamente brincando. – E que eu saiba, trouxas sempre voam com um co-piloto naquelas coisas parecidas com pássaros gigantes.
- Então fique aqui do meu lado.
Jorge se sentou ao lado dela, cuidando para não balançar muito o tapete. Cinthia consultou mais uma vez o mapa, agora desencantado a todo instante para poder consulta-lo. Jorge espiou por cima de seu ombro, vendo o pontinho vermelho (que eram eles) se mover lentamente na superfície do papel em meio a infinitas linhas verdes e azuis que se misturavam. Ele identificou o trecho de países que apareciam no mapa, França, Bélgica, Holanda, Alemanha, Suíça e Luxemburgo, e ainda com umas pontinhas da Itália perto da borda. Passando por uma cidade chamada Mons agora, mas era pouco povoada.
- Por que algumas partes estão mais esverdeadas e outras mais azuis? – ele perguntou, apontando para o pontinho que indicava Mons, que estava mais esverdeado que a capital belga.
- São áreas de magia. Quanto mais esverdeado, maior é a porcentagem de bruxos no local, e quanto mais azul, mais trouxas. Veja – ela disse, arrastando a ponta da varinha pelo mapa até a ponta noroeste, e as linhas começaram a se mover para mostrar a ilha da Grã-Bretanha. – Aqui está Hogsmeade – ela apontou para o extremo norte da Inglaterra, revelando que aquele mapa localizava as áreas bruxas imapeáveis para os trouxas. – Veja como o ponto do vilarejo está verde-limão. É porque é inteiramente bruxo. Já o ponto de Londres está para um azul-piscina escuro, o que indica que tem cerca de oitenta por cento de trouxas.
- Incrível! – Jorge disse. – Onde você conseguiu esse mapa.
- No escritório – ela disse com um sorriso travesso, e Jorge teve certeza de que o mapa não deveria ter saído de lá durante a licença dela. – Vamos passar perto de Charleroi em uma meia hora, mas acho que estamos numa altitude boa – disse, consultando o mapa. – Mesmo assim vou tentar desviar um pouco. Não há quase nenhum bruxo nessa cidade.
Ela ordenou o tapete para virar um pouco mais para o sul, mas a mudança foi quase imperceptível, mesmo acompanhando no mapa. Cinthia tentava fazer uma linha reta, e desviava sempre o mínimo possível dos vilarejos e cidades por que passavam, mas isso já os atrasavam alguns minutos.
Jorge a abraçou, ajeitando o cobertor dele para envolver os dois, mas Cinthia insistiu para que ele fosse dormir, ou que pelo menos tirasse um cochilo.
- De jeito nenhum. E perder a oportunidade de ver as estrelas com você durante uma excursão pela Europa? Não vamos ter outra oportunidade parecida.
Cinthia apoiou a cabeça no ombro dele em resposta, e ele também inclinou a cabeça sobre a dela. Aquilo a lembrou nitidamente de um desenho que assistira quando criança, Aladim, e ela não conteve uma risada.
- O que foi?
- Ah, nada não. Só me lembrei de uma coisa. Besteira.
Jorge ficou acordado com ela por todo o trajeto, perguntando uma hora e outra por qual cidade estavam passando e olhando no mapa a porcentagem bruxa do lugar. Sempre perguntava a porcentagem para Cinthia, mesmo que já estivesse se acostumando com as cores, e fazia isso principalmente para espantar o sono.
Saíram da Bélgica e logo passaram por Charleville, uma vila francesa. Depois de alguns minutos viram a oeste as luzes apagadas de Verdun, e mais ao sul sobrevoaram a cidade Nancy. Cinthia comentou que era um nome muito bonito, e nessa hora Jorge balançou a cabeça para espantar o sono, concordando com ela e negando em seguida ao pedido dela para que fosse dormir. Meia hora depois só passaram por uma cidade, Épinal, até sobrevoarem Belfort.
- Essa é a última cidade francesa pela qual vamos passar – informou Cinthia.
- Acordo os outros?
- Não. Ainda vamos passar por um trecho da França antes de entrar na Suíça. Vamos passar ainda por Biel antes de chegarmos a Berna. Acordamos os dois depois que passarmos Biel.
Era incrível como precisaram ajustar a altitude a cada quinze minutos depois que se afastaram da costa. Cinthia calculava estarem a mais de mil metros do nível do mar, sendo que eles estavam ainda mais altos para evitar serem vistos.
Ainda estava escuro quando entraram no território suíço, e Jorge acordou Fred e Aline assim que passaram de Biel. Eles resmungaram e se espreguiçaram, mas continuaram levemente sonolentos.
- Já chegamos? – perguntou Fred, esfregando os olhos e soltando mais um bocejo.
- Quase – Cinthia disse, totalmente desperta. - Logo vamos poder ver as luzes de Berna a nossa frente. Vou procurar um lugar para pousarmos antes de entrar na cidade.
Ela colocou a ponta da varinha sobre o mapa em cima do ponto de Berna, e a imagem foi se aproximando em um zoom incrivelmente nítido, como se fosse dia no desenho do mapa. Agora havia apenas a cidade e seus arredores desenhados no pergaminho, assim como Aare, o riu em "U" que cortava a cidade, e Cinthia procurou por uma concentração de habitações bruxas.
- Tem um parque perto dessas casas – ela disse, indicando a parte oeste da cidade, fora da barriga do rio. - Se pousarmos lá não vamos chamar muita atenção, ainda mais que aqui deve ser mais de uma da madrugada por causa do fuso horário.
- Sorte nossa que não choveu no caminho – Aline disse, ajeitando um pouco seu cobertor.
- É, mas viemos de encontro a algumas nuvens de chuva – Jorge disse apontando para cima, indicando uma nuvem escura vindo do sul da cidade. – É melhor encontrarmos um hotel para descansarmos. Não me importo de que seja um hotel trouxa, desde que tenha camas.
- Eu concordo – Cinthia disse, soltando enfim um bocejo.
Eles desceram numa das trilhas do parque, cuidando para não engatar o tapete nas árvores. Cinthia desfez o feitiço desilusório, e dessa vez foi como se algo viscoso e morno escorresse sobre eles, mas era só impressão. Ficaram aliviados ao se verem novamente nas texturas e cores normais, enrolando o tapete em seguida. Todos pegaram suas malas e foram andando para a saída do parque, sempre se guiando pelo mapa de Cinthia.
Havia um hotel trouxa na quadra seguinte, de modo que o tapete que carregavam não atraiu suspeitas do atendente. Apenas suas roupas e a hora lhe pareceu suspeito, mas por sorte eles ficavam abertos vinte e quatro horas. Quando ele perguntou se queriam pagar a diária antes ou depois foi que se lembraram que só haviam trazido galeões, e disseram que não sabiam quanto tempo iriam ficar (o que era também verdade) e que pagariam depois. Alugaram três quartos e foram dormir, mas Cinthia insistiu para acordarem cedo no dia seguinte.
Levantaram às oito horas (já no fuso horário da Suíça), e Cinthia estava bocejando quando desceram para tomar café. O hotel era bom e limpo, apesar de simples, e o café da manhã não tinha muita coisa diferente dos outros hotéis. Voltando para o quarto, Cinthia conjurou uma chaleira para fazerem os chás de línguas, assim poderiam se deslocar melhor para a cidade. Apesar de Berna ficar mais perto da fronteira com a França, ela achou melhor fazer o Chá de Alemão, pois além de vir mais pó dessa língua no kit, era também a mais falada na Suíça.
Eles deixaram as chaves no balcão e saíram, trazendo poucas coisas da bagagem. Depois de andarem a uma boa distância do hotel, Cinthia parou e tirou o mapa do bolso e o consultou por um instante.
- Eu odeio não saber onde estou – ela comentou baixinho.
- O que fazemos agora? – perguntou Aline. – Tem alguma pista de onde podemos conseguir informação?
- Nem a mínima – ela disse, ainda olhando no mapa. – Mas antes teremos que trocar um pouco do dinheiro bruxo por francos suíços, por isso estou procurando o Gringotes daqui. Vou trocar só um pouco mais que o suficiente para pagar o hotel.
- Mas deixe que a gente paga a nossa parte – Fred disse.
- É. Depois você nos passa a nossa diária em galeões – apoiou Aline.
- Certo. Seria bom que achássemos alguma loja bruxa por aqui. Tem uma casa de penas e pergaminhos perto da entrada do Gringotes, e podemos ir lá para não chamar a atenção dos trouxas e ir para o Gringotes. Fica perto do rio que corta a cidade. - Cinthia guardou o mapa e olhou para cima, soltando um gemido desanimado ao ver o céu cinza-chumbo. – Essa nuvem de chuva está me preocupando. Vamos logo.
Eles desaparataram em frente ao balcão da loja, interrompendo uma fila de pessoas que fazia suas compras. Depois de receberem alguns avisos (e xingos) para tomarem mas cuidado na hora de aparatar, saíram apressados dali.
Ao saírem, perceberam que a entrada dessa loja era bem discreta. Parecia quase uma casinha espremida entre dois grandes prédios, sendo um desses o próprio Gringotes. Havia um aviso na porta do banco que dizia que estava abandonado. A entrada, então, devia ficar nos fundos.
Mas não havia como chegar aos fundos do prédio.
- Ótimo! É isso que dá ir para outro país – Aline disse, dando uma pancadinha irritada na placa de abandonado da porta. – O sistema deles é todo diferente. Já foi esquisito ir do Brasil para a Inglaterra, e agora temos que solucionar os mistérios da Suíça também.
Mas assim que ela disse o nome do país, a porta se abriu esperando que eles entrassem. Aline olhou para os outros ainda com a mão no ar, totalmente petrificada.
- Não fui eu que quebrei, eu juro.
- Ah, vamos entrar – Fred disse passando na frente dela.
Os outros três o seguiram e a porta automaticamente se fechou atrás deles. Apesar de ser camuflado por fora, o Gringotes era quase idêntico a sua filial inglesa, com a exceção de que o aviso ao lado da entrada estava escrito em alemão.
Depois de trocarem o dinheiro que precisariam para pagar umas duas diárias no hotel e ver que nenhuma mudança de ares poderia fazer com que os duendes ficassem mais amigáveis, os quatro saíram do banco e procuraram algum canto em que não tivesse muitas pessoas. Já passava das nove e as ruas estavam movimentadas.
Eles pararam perto do portão de uma casa e Cinthia tirou o mapa do bolso outra vez. Ela murmurou para que ele indicasse os lugares marcados e alguns pontinhos vermelhos pipocaram no pergaminho, sendo que eles estavam indicados por um pontinho roxo agora.
- Nomeie-os – ela disse, e os nomes dos lugares apareceram em letras minúsculas ao lado dos pontos.
- Por onde começamos? – perguntou Jorge.
- Eu diria que pela parte de dentro da curva do rio. Tem mais pontos conhecidos pelos aurores em que podemos conseguir algumas informações de bruxos realmente baixos. Seria bom que nos espalhássemos para cobrir mais terreno…
- De jeito nenhum – Aline disse. – De nós quatro, você é a única que sabe fazer essas coisas de detetive e falar com gente perigosa. Nenhum de nós ia conseguir qualquer informação que prestasse.
Cinthia sorriu de leve, se lembrando de que não estava com a sua equipe de investigação e porque queria que eles tivessem ficado na Inglaterra. Mas agora era um pouco tarde para isso.
- Você está certa. Bem, vamos começar por aqui então – ela disse apontando para um bar bruxo do outro lado da cidade. – Sempre existem clientes regulares em bares, assim como barmans que trabalham lá pela vida toda. Clientes regulares geralmente não são bruxos corretos e logo seu nome se espalha pela boca dos outros clientes regulares e do barman. Temos que bancar o tipo de pessoas que não podem deixar de ouvir a conversa dos outros, OK? Acha que conseguem aparatar pra um lugar desconhecido de maneira discreta? – Cinthia disse se lembrando da loja de penas e pergaminhos.
- Nós sempre fizemos isso – disseram Fred e Jorge.
- Não parece tão difícil – acrescentou Aline.
- Ótimo! Vamos aparatar do lado de fora, não parece uma rua muito movimentada.
Eles aparataram do lado de fora do bar, e não havia problemas em serem vistos porque ninguém poderia querer passar por lá. O lugar ficava em uma ruela estreita, excessivamente suja e mal cuidada, e a fachada do lugar estava num estado tão decadente quanto.
- Agora eu sei porque o crime não compensa – Fred disse. – Eles não ganham dinheiro suficiente nem para dar um trato nesse lugar. Que tipo de clientela vocês acham que tem aí dentro.
- Gente muito estranha, com certeza – Aline disse dando uma espiada pela janela suja, mas quase não pôde ver o que tinha do outro lado. – Você acha que pode ter algum Comensal aí dentro?
- Shhh! Não falem isso alto em alemão ou inglês. Seria suspeito. E… ah, deixa pra lá.
- O que é? – perguntou Jorge.
- Bem, teríamos que parecer um pouquinho menos arrumados, mas eu não estou afim de estragar a minha blusa.
- Mulheres – Fred fingiu espirar, mas não disfarçou muito bem.
- Vamos logo, estamos perdendo tempo.
Eles entraram no barzinho mal cheiroso, e foi só quando se sentaram em uma mesa perto do balcão foi que viram o motivo do mal cheiro. Havia um homem em trapos dormindo no fundo do bar quase caindo da cadeira. Havia até algumas moscas o acompanhando e zunindo a sua volta, mas nenhum dos outros cinco clientes estavam sentados perto dele.
- Acho que vou ficar enjoada – Aline disse.
- Pois eu já estou – Cinthia disse tentando não fazer cara de nojo. – Vamos ficar aqui até as onze se não conseguirmos nenhuma informação útil antes disso. Não tenho muita esperança de que consigamos ouvir alguma coisa a essa hora, mas como aqui também servem lanches talvez apareça mais gente.
- Não vamos ter que pedir nada, vamos? – perguntou Jorge, se lembrando da lanchonete de Bristol.
- Infelizmente. Ei! – ela se virou para o barman sem se levantar. – Uma água, por favor.
Eles ficaram alguns minutos esperando que algum dos clientes falasse alguma coisa, mas eles não se conheciam e não havia conversa nenhuma no bar além da deles. O único som além dos passos do barman e suas vozes foi o do abrir e fechar da porta quando três dos outros bruxos saíam.
Perto de dez e meia dois homens entraram e se sentaram estranhamente perto do homem rodeado de moscas. Eles começaram a falar baixo, e os quatro não podiam ouvir o que estavam dizendo.
- Droga! É claro que eles iam sentar longe dos outros se não quisessem ser ouvidos. Devíamos ter ficado perto do trapo humano.
- Eu já sei o que pode resolver isso – Jorge disse remexendo em um dos bolsos. – Eu e Fred costumávamos usar para escutar as conversas de mamãe e papai antes de entrar para o Clube da Srta. Asinhas. E também para saber o que eles não queriam falar na nossa frente.
- Foram tempos fáceis antes de mamãe descobrir as Orelhas Extensíveis – acrescentou Fred.
- Orelhas Extensíveis? – Aline disse, que estava quase dormindo de tanto tédio, mas agora havia ficado desperta.
- É – Jorge puxou um barbantinho cor-de-carne do bolso e o mostrou às duas. – Achei que podia ser útil na nossa missão de resgate e peguei alguns antes de sairmos da loja.
- Você é um gênio! – Cinthia disse admirada por não ter pensado naquilo antes.
- Não é nenhuma novidade.
- Eu tive uma idéia. Me dê a Orelha Extensível. – Jorge entregou o barbante e Cinthia olhou em volta para ver se o barman não estava prestando atenção. Ela executou o mesmo feitiço que tinha usado para deixá-los com aparência de camaleões e o barbante ficou da cor da sua mão. – Assim ninguém vai ver que estamos ouvindo a conversa.
Ela colocou uma ponta no ouvido e a outra foi se esticando até a dupla que havia entrado a pouco tempo. Só um observador atento poderia dizer que havia um barbante ali, ainda mais que o chão sujo e poeirento servia de ótimo disfarce. O rosto de Cinthia se iluminou enquanto ouvia a conversa, mas foi apenas por um breve momento. Ela puxou o barbante e o guardou no bolso enquanto os homens continuavam conversando.
- Eles estão falando de uma briga de caranguejos de fogo que vai ter hoje à noite. É uma atividade ilegal, mas não estamos aqui pra isso.
- Não vamos nem avisar as autoridades locais? – perguntou Aline.
- O lugar que eles mencionaram está marcado no mapa. Não me surpreenderia se fossem pegos no flagra.
Eles esperaram mais dez minutos, e já estavam pensando em sair quando entrou mais um rapaz, estranhamente jovem e arrumado para estar ali. Ele se sentou em uma das banquetas do balcão, perto da porta, e pediu só uma salsaparrilha fumegante. Ele sabia o nome do barman, o que indicava que ele era um cliente regular ou um amigo do barman. Tanto um como o outro poderia ter informações interessantes, e Cinthia usou mais uma vez a Orelha Extensível.
- E então? Pronto para o turno de vigília? – disse o barman.
- Ah, nem me fale. Tenho que faltar o trabalho pra bancar a babá por oito horas. E não vou poder receber nenhuma coruja enquanto estiver lá. Vai que o escritório quer ver se já estou bem da gripe e tenta me procurar?
- Ossos do ofício.
- É. O ruim é que eu nem sei onde fica o lugar, só que é na cidade. Você sabe onde é, Joe?
- Não, eu não fui designado para nenhum turno. Mas o velho Tenembaum passou por aqui e disse pra você encontrar ele no Picadinhos Picadilli na hora do almoço. Disse que vai te passar as informações de onde é o lugar e os cuidados que precisa ter com a encomenda.
- Como se eu precisasse me preocupar com três bichos presos numa caixa.
Os dois começaram a conversar sobre amenidades, trabalho e coisas do tipo, e Cinthia recolheu a Orelha Extensível, olhando cautelosa para ver se ninguém do bar havia visto. Os outros estavam esperando que ela contasse o que havia visto, mas ela balançou a cabeça de leve pedindo que esperassem. Deu um tempo, viu o barman Joe e o homem conversarem mais um pouco e se levantou, pagou pela água e saiu com os outros. Eles continuaram andando pela ruazinha, aproveitando o pouco movimento para conversar em tom normal.
- O que você ouviu? – perguntou Jorge.
- Descobriu onde eles estão? – quis saber Aline.
- Calma. O rapaz que entrou lá com certeza está envolvido no caso do Douglas. Ele devia estar no trabalho, mas tem que fazer um serviço extra em um lugar incomunicável e falou algo como bancar a babá de três… suponho que estivesse falando dos três aurores.
- E onde fica o lugar? – perguntou Fred.
- Ele não sabe. Duvido até que faça idéia do nome. Mas vamos descobrir isso ao meio-dia. Ele vai encontrar um tal de Tenembaum em um restaurante chamado Picadinhos Picadilli. Agora temos que achar o tal restaurante e conseguir mais informações. É onde vão passar a informação.
Cinthia puxou o mapa e olhou atentamente para todos os pontos marcados, mas enrolou o pergaminho despontada.
- É um lugar limpo. Não tem como saber pelo mapa.
- E como a gente acha esse lugar, então? – perguntou Aline.
- Bom, podemos ampliar rua por rua no mapa, procurando uma placa com o nome Picadinhos Picadilli…
- Ah, é. Sabe quantas ruas Berna deve ter, sendo uma capital? – Fred disse.
- Ou podemos sair perguntando por aí. É a nossa melhor opção. E temos menos de uma hora pra achar o lugar.
- A gente podia aparatar do mesmo jeito que fizemos com o bar – sugeriu Jorge.
- Não, acho melhor não. Vai que tem trouxas por perto? E como é um estabelecimento comercial, não podemos aparatar do lado de dentro. Temos que ser muito cuidadosos.
Os quatro entraram na loja bruxa mais próxima, mas o rapaz com crise de acne que atendia no balcão nunca havia ouvido falar do restaurante. Foram para a próxima loja, na quadra seguinte, mas a atendente também não sabia. Perguntaram para muitos bruxos, e até para alguns que passavam nas ruas, mas ninguém sabia dizer onde ficava o restaurante Picadinhos Picadilli. Naquela parte da cidade, havia poucas lojas bruxas, e sempre bem afastada uma da outra. Eles tinham que andar um bom bocado para ir até a próxima, e perderam pelo menos dez minutos com uma bruxa que achava que sabia falar alemão e acabou confundindo ainda mais os quatro.
Já passava um pouco de meio-dia quando resolveram ir para uma parte mais bruxa da cidade.
- Espera só um instante – Aline disse parando no meio do caminho, fazendo os outros esbarrarem nela. – Eu não acredito que não pensamos nisso antes!
Ela correu até a esquina da rua enquanto os outros a seguiam, bastante confusos, e entrou numa cabine telefônica. Aline pegou a lista de telefones que havia ali e começou a folheá-la freneticamente.
- Aqui! "Picadinhos Picadilli, rua Gourt Brooks, nº 67". Por isso ninguém das lojas sabia onde ficava, é um restaurante trouxa – ela disse mostrando a lista telefônica aos outros.
- Eu achei que Comensais tivessem aversão a lugares trouxas – Jorge disse.
- E tem, mas que melhor lugar para despistar um auror? Muito espertos – Cinthia disse. – Agora que sabemos onde é, basta ver um local discreto por perto… - ela puxou o mapa novamente e ampliou a rua Gourt Brooks, percorrendo a varinha pelo pergaminho até achar um beco a umas três casas do restaurante. – Aqui deve servir. Vamos que já estamos vinte minutos atrasados.
Eles aparataram para o beco estreito, e logo saíram para a rua sentiram que o vento estava ficando forte.
Encontraram o restaurante fácil, fácil. Era muito chique e arrumado, limpo, grande e extremamente movimentado. Um lugar perfeito para desaparecer no meio da multidão e passar relativamente despercebido quando se é um bruxo.
Mas assim que eles entraram, muitos fregueses que estavam sentados perto da porta se viraram para olha-los. As vestes deles se destacavam perfeitamente naquela massa trouxa arrumadinha. Não foi menos difícil para eles avistarem dois bruxos conversando em uma mesa do fundo. Infelizmente, não havia nenhuma mesa disponível perto deles, e os quatro tiveram que sentar perto da janela.
Pelo menos o restaurante parecia servir comida comestível, e por isso eles não pensaram duas vezes quando o garçom perguntou o que iriam pedir. Enquanto esperavam a comida e várias pessoas que passavam do lado de fora do restaurante olhavam torto para eles, Cinthia tirou novamente a Orelha Extensível do bolso, percebendo que a havia esquecido desilusionada, o que era bom já que não poderiam usar magia no meio de trouxas.
O barbantinho foi se esticando até a mesa dos supostos Comensais da Morte, desviando de cadeiras, mesas e pernas, fazendo o caminho mais discreto. Cinthia teve que parar no meio do caminho quando um garçom quase passou por cima da Orelha. Assim que chegou em baixo da mesa dos dois, ela parou para ouvir esperançosa.
Mas o garçom chegou bem na hora com as bebidas deles, e Cinthia apoiou o cotovelo na mesa e a cabeça na mão para disfarçar o barbante, pegando seu copo com a outra mão. O garçom se afastou da mesa resmungando alguma coisa em francês, mas Cinthia não perdeu tempo com isso e ouviu logo o que os dois Comensais estavam falando. De onde estavam, dava para ver que o almoço deles já estava quase na metade, e eles torceram poder ouvir alguma coisa importante.
- Quer dizer que o nosso turno começa às duas horas? – Cinthia ouviu a voz do bruxo que estava no bar, e logo em seguida a do que se chamava Tenembaum, mais grave e rouca.
- É, isso mesmo. E não se atrase, os outros não vão gostar. Também não é bom chegar muito cedo, eles devem estar querendo terminar logo o turno deles.
- Dá pra pelo menos levar as palavras cruzadas do jornal, né? Eu não vou agüentar fazer nada por oito horas seguidas.
- Você pode respirar e, no máximo, pensar enquanto estiver de guarda. Nenhuma distração é recomendada ou permitida. Você vai ficar com uma imagem bem ruim pro Lorde das Trevas se demonstrar tédio nas missões.
- Está certo. Vou estar lá então uns dez minutos mais cedo.
- Perda de tempo, eu só vou aparecer na hora zerada. Mas como você tem o costume de se atrasar todas as poucas coisas importantes que faz, é melhor tentar ir mais cedo mesmo.
- Você podia agir mais como meu pai ao invés de criticar tudo o que eu faço.
- E você podia agir mais como meu filho ao invés de ser um fracassado.
- Caracas! – Cinthia sussurrou para si mesma, esquecendo onde estava.
O garçom apareceu outra vez, trazendo os pratos que eles haviam pedido. Cinthia percebeu que ele havia achado estranho a cara surpresa dela, mas não podia se preocupar com aquilo agora. Tentou continuar ouvindo a conversa dos Comensais pai e filho enquanto fingia estar interessadíssima na comida, mas os outros começaram com as perguntas por causa da exclamação dela.
- O que foi? – perguntou Jorge.
- O que você ouviu? – perguntou Aline.
- Shhh! Já perdemos metade da conversa. Não podemos perder o resto!
Mas sua tentativa de ouvir alguma coisa foi frustrada, pois uma freguesa passou por onde a Orelha Extensível passava e acabou arrastando o barbante com sua saia longa e pesada. Depois de recolher esperançosamente parte da Orelha para que a mulher não tropeçasse ou notasse o fio, Cinthia o conduziu até a mesa dos dois Comensais, mas percebeu que havia perdido uma boa parte da conversa. Seu pato recheado continuava intocado no prato, enquanto os outros se esforçavam para fazer o mínimo de ruídos ao comer, desnecessariamente.
- Já ouvi muitos dos seus sermões quando estava em casa! Você podia pelo menos me dar uma folga agora que estamos trabalhando juntos.
- Isso não é um trabalho, é uma vocação. Se você não agüenta as críticas, terei o maior prazer de fala-las durante o nosso turno de vigia. Acho que teremos tempo suficiente para todas elas. Ou seria melhor marcar mais oito horas?
- Eu não preciso agüentar seus insultos aqui, agora, ou depois! – Cinthia ouviu uma cadeira se arrastando e Fred, a sua frente, comentar "Ele está se levantando. Por que está se levantando?". – Você não precisa falar comigo durante o turno. Pode fingir que eu não existo, como sempre fez. Seria a primeira vez que você me faria um favor, pai.
- Segunda – disse o homem enquanto os passos do filho se afastavam. – Você nunca teria sido aceito no nosso meio se não fosse com a minha ajuda. Ingrato – ele acrescentou baixinho -, ainda me deixa a conta para pagar.
- Droga! – Cinthia deu um puxão, frustrada, para recolher a Orelha Extensível. Era melhor deixa-la desiludida, só em caso de precisar usar outra vez.
- Conseguiu a localização? – perguntou Aline, mas com a voz já sem esperança.
- Não. Mas esses dois, pelo jeito, vão vigiar os aurores das duas da tarde às dez. Não podemos perde-los de vista… ou melhor, já perdemos um. Não podemos perder esse, ou nunca vamos saber onde estão guardando os aurores.
- Por que o outro saiu sem terminar de almoçar? – perguntou Fred. – Ele não foi comprar veneno ou coisa do tipo, foi? – Aline olhou assustada para ele, e em seguida para Cinthia.
- Ah, não. Briga de família. Não quero nem saber como vão conseguir passar oito horas juntos num lugar sem comunicação externa.
- Bem, isso não é da nossa conta – Aline disse. – É bom então que você coma rápido, pois ele já está almoçando há mais tempo que nós. Uma boa alimentação impede o estresse e o cansaço, algo que não é raro quando se faz uma investigação dessas.
- Falou a ex-supernutrida que costumava ter ataques de fúria – brincou Fred.
- Recomendações de uma futura medibruxa! – Aline disse pausadamente.
- Ah, não estou com muita fome – Cinthia tentou desviar a atenção de Aline para que ela não tivesse um "ataque de fúria" no meio de um restaurante trouxa. – Não quero revoltar muito meu estômago.
- É, você não estava muito bem de manhã – Jorge disse.
- O que você tem? – perguntou Aline, esquecendo completamente de um Fred que ainda estava achando engraçado o próprio comentário de peso.
- Eu acordei enjoada. Mas deve ter sido muito vento gelado no rosto, por causa da viagem no tapete, sabe. Teve uma vez que eu fiquei assim lá no Brasil depois de ficar muito tempo do lado de fora da casa olhando a estrelas, numa noite com vento. É só ficar quietinha e esperar passar, como diria o meu pai.
- Se você quiser eu posso preparar uma infusão simples de ervas.
- Não precisa. Passou logo de manhã. E temos que seguir o Sr. Tenembaum ali, tá lembrada? E vamos torcer para que ele goste de fazer exercícios, ou não teremos como segui-lo se ele aparatar. Ele tem tempo de sobra até as duas, por isso podemos almoçar tranqüilos, mas temos que sair antes dele para não atrair suspeitas.
Por volta de uma e quinze, quando o Sr. Tenembaum estava tomando o cafezinho, os quatro já estavam fechando a conta e saindo do restaurante, e Cinthia percebeu um olhar de esguelha do garçom que os atendeu. Teve quase certeza que ele os achara malucos.
Do lado de fora eles precisaram fechar os botões das vestes, pois o vento estava muito mais forte que quando entraram no restaurante. Era um vento que bagunçava os cabelos das moças e prenunciava chuva na certa. Aline disse que, se precisassem, ela sabia de um feitiço que os faria repelir a água, afirmando que nenhum trouxa iria notar no meio da chuva se eles estavam secos ou não.
Não demorou muito para que o homem saísse de dentro do restaurante, também apertando o casaco ao redor do corpo, e andasse pela rua apressado depois de dar uma olhada para o céu cinzento. Cinthia, Aline, Fred e Jorge o seguiram o mais discretamente que podiam, sempre fingindo estar interessados em alguma loja ou qualquer outra coisa quando o homem ameaçava virar para trás – o que não aconteceu.
Quando o homem parou, eles acharam que haviam sido descobertos, mas ele apenas se virou para o lado e entrou em uma loja de utilidades mágicas, sem nota-los. Aliviados, Cinthia sugeriu que olhassem a vitrine do outro lado da rua, assim poderiam ver no reflexo quando ele saísse. Como era uma loja de roupas femininas, Aline e Cinthia não tiveram dificuldade em fingir interesse mesmo sendo roupas trouxas (chegando a ficar verdadeiramente interessadas), e Fred e Jorge não tiveram dificuldade nenhuma em fingir que estavam com tédio.
Demorou uns vinte minutos para que o homem saísse de lá (para o grande alívio de Fred e Jorge) com os bolsos estufados. As ruas ali estavam quase sem movimento, em parte pela ameaça de chuva e em parte pela própria região. Ele pegou o menor caminho para atravessar uma das pontes que ligavam as margens do rio, passando por pouquíssimos trouxas. Ali eles não poderiam fingir se interessar por alguma coisa que não fossem as águas agitadas pelo vento. A ponte estreita, apenas para pedestres, parecia antiga pela falta da barra de segurança na maior parte de sua extensão. Não é à toa que não tinha nenhuma pessoa por perto.
- Seria bom que ele fosse logo para o tal esconderijo K9 – Aline disse baixinho enquanto entravam na ponte, o Comensal já no meio da mesma. – Eu estou tremendo de frio e não quero pegar a chuva que está pra vir.
- Eu acho que ele sabe que está sendo seguido, ou não teria dado tantas voltas antes de passar por aquela loja – Cinthia disse, sem ouvir as reclamações de Aline.
- Eu não ligo, desde que ele encurte logo essa perseguição.
Como se o homem tivesse ouvido o que Aline falou, ele parou e se virou para os quatro. Automaticamente, eles pararam, mas Cinthia ainda deu uns passos insistindo para eles agirem normalmente. Aquilo não pareceu nada normal para o bruxo, e ele puxou a varinha antes que os outros pudessem fazer o mesmo.
- Transferus Grapihorn! – ele bradou da outra ponta da ponte, e depois de um forte estampido da varinha, um enorme arpéu se materializou entre eles, púrpuro-cinzento com uma corcova nas costas e com dois chifres longos e afiados, apontados ameaçadoramente na direção deles. Depois de patear um pouco o chão, o animal começou um meio galope na direção deles.
- Merda…
- O que a gente… – começou Fred.
- Pulem!
Eles pularam na água, mas o animal continuou sua corrida desenfreada para o centro da cidade, quebrando tudo que era baixo o suficiente para alcançar. O Comensal já havia aparatado para outro lugar, enquanto os quatro tentavam não ser levados pela correnteza do rio. Eles alcançaram uma escadinha ao lado da ponte, ofegantes, encharcados e sem Comensal da Morte para seguir.
- Eu nunca vou pular da ponte se os outros disserem que é legal, porque eu sei que não é – Jorge disse.
- Você não podia ter tido uma idéia mais bruxa como "aparatem"? – Fred disse, saindo da água.
- Foi a primeira coisa que me ocorreu – Cinthia disse num tom de desculpas, ajudando-o a subir. – E nenhum feitiço estuporante ia funcionar naquele bicho.
- E agora eu posso dizer que estou congelando de frio – Aline disse ainda mais irritada que antes, que de longe era a que estava com o casaco mais fresco deles. – Por favor, vamos voltar para o hotel. Não vai dar pra seguir aquele Comensal mesmo.
- Não podemos deixar aquele arpéu solto no meio de uma cidade trouxa – Cinthia lembrou, subindo a escadinha até a ponte.
- É, imagine a confusão que já não deve estar lá na rua – concordou Jorge.
- Mas molhados, assim?
- Não temos tempo para passar no hotel, Aline. Quanto mais demoramos discutindo o excesso de água nas nossas vestes, mais memórias teremos que apagar.
Não foi difícil seguir o rastro do arpéu, pois vários hidrantes haviam sido destruídos (e consertados pelos quatro bruxos) no caminho, além de placas de sinalização, caixas de correio trouxa e carros estacionados. O bicho já havia passado por umas cinco quadras quando eles finalmente o alcançaram, encurralado em uma rua sem saída, e nada mais, nada menos que dezesseis trouxas o viram. Tiveram que desconjurar o bicho, o que foi rápido considerando o pânico deles para faze-lo sumir logo, mas demoraram quase três horas para encontrar todos os trouxas que o haviam visto e alterar a memória deles longe dos outros, e ainda tentar convence-los de que o que viram era um rinoceronte que fugira de um circo que estava de passagem na cidade. E não foi nada fácil, pois a aparência deles certamente não parecia a de quem capturava animais fujões de circo, e sim de aberrações de circo que haviam saído da banheira.
- Esse foi o último – Fred disse, acenando para um velhinho que andava meio torto pela rua. – Eu nunca fui muito bom nesse feitiço, então acho que ele vai gastar muito dinheiro em bananas pelas próximas semanas, mas vai ficar legal.
- Podemos ir para o… atchim!… hotel agora? – Aline disse, literalmente tremendo de frio.
- Me chame de louca se eu disser que não – Cinthia disse, também tremendo.
Os quatro aparataram para a entrada do hotel, lembrando que tinham que pegar as chaves no balcão. O recepcionista estranhou as roupas molhadas deles, já que ainda não tinha começado a chover.
- Pegaram chuva no caminho?
- É, lá pelos lados do rio – Jorge respondeu apressadamente.
Aline foi a primeira a subir para o quarto, e a primeira coisa que fez foi tomar um banho quente, e foi a última a sair dele. Cinthia ganhou de Jorge no pedra-papel-tesoura e usou o banheiro primeiro, mas foi bem rápida. Precisava mandar as informações que conseguiu para Tonks, apesar de não serem muito úteis para o caso dos aurores raptados.
"Espero que pelo menos eles consigam prender os dois Tenembaums, porque não descobri mais nada" ela pensou, enquanto escrevia uma rápida carta a Tonks, Jorge cantarolava no banheiro e a chuva começava a cair do lado de fora.
Assim que Jorge terminou o banho, eles foram ver como Fred e Aline estavam. Aline abriu a porta do quarto com uma cara bastante abatida.
- Acho que esdou resbriada.
- Não é pra menos! Como é que pode uma medibruxa sair com um casaco tão fino num frio desses?
- Eu dão vi a brevisão do tembo. Atchim!
- Ai, ai. Deixa eu te ajudar a secar o cabelo.
Ela e Aline entraram no quarto, seguidas de Fred e Jorge, e se sentaram na cama. Cinthia murmurou um feitiço para fazer sair ar quente da varinha e começou a escovar o cabelo da amiga. Ela devia ter sido mais cuidadosa, então não ia ter que se sentir culpada também pela saúde dos amigos. Mas como ela poderia saber? Era a primeira vez que fazia uma perseguição.
A última coisa que ela queria era que Aline ficasse doente. Já não bastava estarem tentando resgatar Douglas das garras dos Comensais da Morte, ainda teria que se sentir culpada por ter deixado Aline doente. E tinham até o dia seguinte para descobrir onde ficava o esconderijo K9, e eles não sabiam o que ia acontecer depois disso.
- Sabe, os aurores devem ter feito mais progresso que a gente há esta hora – Fred disse. – Não seria bom entrar em contato com a Tonks para ver o que eles já sabem?
- Ah é. Eu já escrevi uma carta pra ela – Cinthia tirou o pergaminho do bolso. – Será que um de vocês dois pode ir até o correio e pegar uma coruja?
- Eu vou – Jorge disse, pegando o envelope das mãos de Cinthia e aparatando em seguida.
- Aonde nós vamos procurar por pistas depois? – perguntou Fred.
- Nós não vamos mais sair nesse tempo – Cinthia disse. – Não enquanto a Aline não melhorar desse resfriado.
- Eu sou abrendiz de bedibruja, esqueceu? – Aline disse se virando para ela. – É só você be bassar a binha maleta que eu logo fico belhor.
- Mas mesmo assim você vai precisar repousar por algumas horas. Eu sei que esses remédios bruxos para resfriados funcionam tão rápido quanto canja de galinha da vovó.
- Hah, eu dunca parei na câba quando era criança e begaba um resbriado, dão é agora que bou fazer isso.
- Quanto mais rápido você sarar, mais rápido podemos voltar a investigar. Por isso, trate de seguir as recomendações médicas que você daria para outra pessoa.
Aline fechou a cara, mas em seguida concordou: - Tá certo. Bas vocês bodem condinuar a fazer todas essas coisas divertidíssibas sem mim, enquanto eu fico aqui no hodel be recuberando da gribe, deitada confortabelmende na binha cabinha.
- Não precisa esculachar também, né – Fred disse.
- Ora, se eu vou ficar sem fazer dada, eu tenho que fazer barecer que é bor um bom botivo.
- Pronto – Cinthia disse, se levantando e colocando a escova de Aline no lugar. – Agora vá se deitar que eu mesma pego o seu remédio pra gripe. Nós não vamos a nenhum lugar com um tempo desses.
- Eu dão breciso be deitar. Be sinto ótiba!
- Falando desse jeito, qualquer um acredita – Fred disse, sarcástico.
Cinthia colocou a mão na testa de Aline, mas a tirou rápido como se tivesse levado um choque.
- Você está queimando em febre e ainda diz que se sente ótima?!
- Dá, eu bosso estar com um bouquinho de dor de cabeça – ela confessou -, bas dão estou tão bal assim – ela mentiu.
- Deixa eu ver – Fred também colocou a mão na testa dela, olhando espantado para ela. – Você vai ser uma péssima medibruxa. Não consegue nem diagnosticar uma febre alta em você mesma.
Aline sentiu uma tontura só de ficar sentada e fechou os olhos, colocando a cabeça entre as mãos para não perder o equilíbrio.
- OK, OK. Vocês ganharam. Só me vejam logo uma canja, porque isso ainda funciona melhor que o remédio que eu aprendi a fazer no curso.
- Fred, vai ver na recepção se eles podem trazer isso no serviço de quarto.
- Mas não é pra isso que servem esses aparelhinhos trouxas chamados telefones?
- Então vá telefonar do seu quarto.
- Por q… ah, tá certo.
Fred saiu do quarto para que Aline pudesse trocar de roupa e entrar debaixo das cobertas. Como ele não gostava nem um pouco dos telefones, foi mesmo até a recepção pedir pela sopa. Jorge voltou pouco depois da sopa ser entregue no quarto de Aline, sendo avisado que ela não estava bem.
Já era tarde, e eles todos pediram o jantar pelo serviço de quarto. Aline quis que eles continuassem conversando com ela, mas como ela precisava descansar, os outros voltaram para os seus quartos. Não queriam deixar ela sozinha no hotel, e não tinha muito que eles pudessem fazer à noite com uma chuva de verão dessas tampouco. A única opção deles era esperar pela resposta de Tonks, que poderia vir no dia seguinte… ou não.
N/A: Nossa! Eu não achei que esse capítulo ia acabar desse jeito. Bem, espero que estejam gostando dos problemas cabeludos que estou colocando na fanfic. Eu, particularmente e parcialmente, estou adorando, porque eu sei os motivos para colocar cada um dos problemas, huahauhauhauhau! Vejam qual é a resposta da Tonks, quando ela chega, se a Aline se recupera e se os aurores são resgatados, tudo isso no próximo capítulo, onde você não escolhe o final!
