Capítulo 17 – Uma última turbulência
No dia seguinte, Douglas recebeu uma coruja do chefe dos aurores dizendo que ele estava de licença por duas semanas para se recuperar dos últimos acontecimentos. Provavelmente Quim e Ian também haviam recebido cartas iguais. Mas Aline precisou voltar às suas aulas no curso de medibruxaria, por mais que quisesse ficar em casa e cuidar de Douglas.
- Aline, eu vou ficar bem. Agora vá para a aula que você já está muito atrasada na matéria por minha causa.
- Eles separaram os resumos das aulas que eu perdi. Você vai ficar bem mesmo? Eu odeio te deixar sozinho depois do que você passou.
- Sério Aline, eu vou ficar bem. E não foi tão ruim assim. Eles não nos incomodaram muito, e como tínhamos que continuar vivos, o pão que eles nos davam todo dia não era tão velho ou duro como você está imaginando. De vez em quando até tinha uma sopa aguada.
- Você fala como se não fosse grande coisa.
- E é melhor pensar assim, ou eu vou acabar um auror amargurado e sedento por vingança. Você não quer isso, não é mesmo?
- Claro que não! Mas é que você vai ficar sozinho aqui e...
- Se eu ficar entediado eu vou até a loja dos gêmeos. Agora pare de se preocupar tanto, senão você vai chegar atrasada para a aula.
Aline olhou para o relógio, e Douglas estava certo; faltavam apenas dois minutos para as aulas do seu curso começarem. Ela olhou mais uma vez para Douglas, e depois para o relógio, e para Douglas novamente. Ela andou até ele o abraçou e beijou como se nunca mais fosse fazer isso novamente, apesar de ter durado menos que um minuto.
- Eu te amo! E não saia sem deixar um bilhete.
- Sim, mamãe – ele falou, sem soltar a cintura dela. Aline sorriu um pouco mais calma e aparatou para o curso de medibruxaria ainda pensando se não era uma boa idéia levar Douglas junto com ela.
E, na Pensão do Grindylow Perneta Empalhado, um casal estava tendo uma conversa parecida, apesar dos papéis estarem trocados.
- Eu ainda não acredito que o Farfield me deixou voltar para o trabalho – Cinthia disse, trocando de roupa muito feliz. - Eu estava esperando uma nota de demissão, e não uma condecoração por ter ajudado os aurores. Foi uma condecoração de civil, mas mesmo assim valeu a pena ver a cara do Farfield me dizendo pela lareira que os três chefes da sede dos aurores haviam decidido aquilo. Aposto metade dos logros da loja como ele foi contra a condecoração.
- É, isso foi realmente... - Jorge começou em um tom pouco animado, mas Cinthia estava tão distraída e alegre que mal o ouviu.
- E vocês também receberam condecorações, afinal, nós quatro trabalhamos juntos. Provavelmente eles vão entregar as medalhas ainda hoje via coruja.
- Ah, legal. Eu estava mesmo querendo aumentar a minha coleção inexistente de medalhas.
Cinthia passou a cabeça pela gola da blusa e viu que Jorge estava com uma cara estranha. Ele parecia estar feliz por ela, mas também um pouco aborrecido.
- Tem alguma coisa errada com você. Eu nunca te vi tão amuado e rabugento.
Jorge se virou de lado e cruzou os braços, olhando para ela com o canto do olho. Ele não queria se explicar, mas acabou falando diante do olhar analítico de Cinthia.
- Eu... eu acho melhor você tirar uma licença até... até o bebê nascer. Pode ser muito perigoso para ele, ainda mais se você continuar pegando missões fora do escritório como essa.
Cinthia olhou incrédula para Jorge, mas poucos segundos depois sua expressão se abrandou. Ela não falou nada, apenas deu um sorriso condescendente.
- Até a hora do almoço, Jorge – ela disse, dando um beijo na bochecha dele.
- Ei, você ouviu o que eu disse? – Jorge perguntou, se virando para ela atônito.
- Sim, eu ouvi. Está tudo bem, eu te entendo – ela disse em um tom excessivamente amável. - Até mais, amorzinho.
Cinthia deu um sorriso e dasaparatou para o Ministério da Magia, deixando Jorge extremamente confuso e sozinho.
- Ah, essa é a última vez que ela me deixa falando sozinho. – E em seguida ele aparatou para o Ministério também, decidido a seguí-la.
Jorge chegou bem em tempo de ver ela no final do átrio, parando perto da fonte. Mas aquela não era mais a antiga fonte dos Irmãos Mágicos, com os dois bruxos, o centauro, o duende e o elfo doméstico. Ela tinha três níveis de mármore branco, e vário jatos de água que caiam na parte de cima, se torcendo e mudando de cor com se dançassem. Também havia umas sete ninfas, fadas da mesma textura da água, que brincavam na fonte, mudando os jatos de direção ou as suas cores.
Foi um tanto trabalhoso ter que desviar dos bruxos que aparatava ou chegavam das lareiras para o trabalho, mas Jorge parou atônito de andar na direção de Cinthia quando viu o motivo que a fizera parar: Jonathan Harper. Uma onda de ciúmes se apoderou de Jorge, mas ele não conseguia andar até eles. Estava simplesmente paralisado com a cena.
Jorge apenas ficou observando os dois conversarem, o que não durou apenas cinco minutos. Quando ele viu os dois se abraçando, Jorge teve o ímpeto de ir até lá e separá-los, e quem sabe até socar Jonathan, mas um bruxo acabou aparatando bem na sua frente, impedindo que ele avançasse. Depois de quase soltar um palavrão, Jorge viu os dois se despedindo e andou decidido até Cinthia.
Mas outra vez ele parou de andar a alguns metros dela, vendo ela virar para a fonte e pegar três sicles do bolso, fechando os olhos. Ele esperou até que ela fizesse o desejo para a fonte, vendo as ninfas se afastarem quando Cinthia jogou os sicles na água. Depois do susto, as sete ninfas ficaram muito animadas e começaram a dançar em volta das moedas. Jorge aproveitou que Cinthia estava distraída e finalmente chegou perto dela.
- O que você desejou? – ele perguntou baixinho, controlando a voz para não parecer que havia visto ela falando com Jonathan.
- O que você está fazendo aqui? Você veio aparatando? Oh, você devia pelo menos ter usado a entrada de visitantes.
- Eu prometo que saio em cinco minutos, se você me contar o que desejou para a fonte – ele disse com a voz controlada, mas Cinthia percebeu que ele estava um pouco alterado.
Ela deu uma rápida olhada para a fonte, e percebeu que as ninfas haviam parado de dançar em volta do seu dinheiro para escutá-los, sentadas na beirada da pedra. Ela virou o rosto novamente para Jorge, que ainda esperava ela responder.
- O primeiro desejo foi para que o bebê nascesse saudável, o segundo foi para que a gente conseguisse comprar aquela casa em Hogsmeade logo, e o terceiro... - ela soltou um suspiro antes de responder – bem, o terceiro foi para que você parasse de me tratar como se eu estivesse doente, e não grávida, e para que parasse de agir de um jeito tão machista.
- Eu, machista? De onde você tirou uma idéia dessas? – ele disse, aumentando de leve o tom da voz.
- Puxa vida, eu não sei – ela disse em um tom sarcástico, mas mantendo a voz baixa para não atrair a atenção dos outros. - Será que foi porque você prefere que eu fique em casa limpando e cozinhando a exercer a minha profissão, ou porque você quer que eu fique em casa usando essa gravidez como desculpa? É, você tem razão, eu devo estar imaginando coisas. Oh, e aposto como você não me viu conversando com o Jonathan agora a pouco.
- É, eu vi você abraçando aquele idiota sim! E não me diga mais nada, eu não quero nem saber o motivo.
- Aquele idiota é meu amigo – Cinthia ainda falava baixo, mas os seus olhos já estavam marejando de raiva e mágoa. – E ele só me abraçou para dar os parabéns pelo bebê. Tá vendo, é justamente disso que eu estou falando! Parece que você não confia em mim, você fica todo desconfiado quando me vê sozinha com outro homem.
- Se eu fico enciumado, não é minha a culpa.
- Eu não acredito nisso! Você é ainda mais machista do que eu imaginava! – Cinthia falou aquilo mais alto do que era recomendado, e algumas das pessoas que estavam no átrio pararam para observar os dois. – Até parece que nós nunca saímos da escola! Você continua o mesmo piazão infantil que sempre foi!
- Se é isso o que você acha, eu vou parar de te importunar! De agora em diante eu não ligo a mínima para o que você faz!
- Já estava demorando! – ela respondeu, e em seguida Jorge aparatou para a pensão sem dizer mais nada.
Cinthia olhou em volta, e os bruxos e bruxas se puseram a andar como se não tivessem visto nada. Sentindo-se derrotada, magoada e com raiva, Cinthia se sentou na beirada da fonte encarando o nada. Depois de alguns segundos pensando, ela levantou a cabeça, enxugou as lágrimas que nem tiveram tempo de escorrer de seus olhos e pegou um dos elevadores para o segundo andar, indo direto para o escritório.
- Como assim ela não vai vir? – Fred perguntou ao irmão perto da hora do almoço, que continuava com a cara amarrada desde manhã.
- Eu não sei se ela vem ou não, mas é provável que ela não venha – Jorge disse, odiando ter que falar aquilo.
- OK, qual foi a besteira que você fez dessa vez?
- Por que é que quem faz a besteira sou sempre eu? – Jorge disse furioso, se sentando em uma das cadeiras da cozinha enquanto Fred via distraidamente o que tinha dentro da geladeira.
- Bem, considerando o histórico de vocês, só consigo imaginar essa opção.
- E eu achei que você ia ficar do meu lado. Você é meu irmão gêmeo, droga!
- Não é por isso que eu sou bobo também. Agora pare de resmungar e fale o que aconteceu, antes que a Aline e o Douglas cheguem para almoçar.
Muito a contra gosto, Jorge contou que havia seguido Cinthia até o trabalho, viu ela conversando com aquele maldito Harper e que tiveram uma discussão no meio do Ministério da Magia.
Fred ia fazendo o almoço enquanto prestava atenção no que o irmão dizia, mas depois de quase se queimar pela distração resmungou alguma coisa como "agora eu sei porque mamãe queria tanto um elfo doméstico" e colocou a mão debaixo da água da torneira.
- Você não me ouviu, não é mesmo?
- Ouvi tudinho. E, sinceramente, você bancou o palhaço. – Jorge fez um muxoxo que Fred entendeu apenas o sentido. – É, palhaço mesmo. Depois dessa briga, com quem você acha que ela vai querer almoçar? Com o noivo "machista" ou com o amigo super educado e gentil, que vai ter o maior prazer em confortá-la e ouvi-la?
- Ah, ela não faria isso. Ela não iria almoçar com ele – Jorge disse bastante incrédulo, mas por dentro estava um pouco assustado de que aquilo fosse verdade.
- Ah, ela faria sim – Fred disse, desligando a torneira. – Você é que não iria almoçar com ele. Mas eles se conhecem desde que estavam no Brasil, não se pode competir com uma amizade tão longa. E já que você é meu irmão, vou ser sincero: você é mesmo machista e ciumento.
- Falou aquele que quase matou o Harper num jogo de Quadribol por causa de ciúmes e que não consegue manter um relacionamento firme há anos.
- Pelo menos eu não engravidei nenhuma mulher e depois a fiz me odiar.
Jorge apenas baixou os olhos, não esperando ouvir uma resposta daquelas vindo de Fred.
- Isso foi golpe baixo – ele disse meio rouco, e Fred falou no mesmo tom baixo:
- Você que começou.
Jorge soltou uma leve risada pelo nariz, falando com um ar resignado:
- Com uma coisa que ela disse eu concordo: isso está ficando infantil demais.
- É, ela sempre soube julgar as pessoas.
Jorge ficou calado diante do que Fred dissera, pensativo, e o irmão continuou fazendo o almoço também em silêncio. Aquela frase ficou ecoando na cabeça de Jorge como uma mosca chata que nunca vai embora quando se tenta dormir, e ele sentiu a culpa crescer em seu peito lentamente.
"Ele está certo. A Cinthia sempre soube julgar as pessoas. Mas... se ela sabia que eu era... assim" Jorge não queria admitir nem em pensamento que era machista e extremamente ciumento, e orgulhoso, mas no fundo sabia que era, "por que ela não me deixou antes? Ou ela é muito tolerante, ou... Bah! Por que é que só ela pode estar certa? Se ela sabia, não devia ter me provocado indo falar com aquele idiota, muito menos ter me tratado como uma criança quando eu sugeri que ela pegasse uma licença. Eu me preocupo porque o trabalho dela é perigoso e ela vem com quatro pedras na mão achando que eu quero prender ela em casa. Quem está causando problemas aqui é ela! Droga, as mulheres complicam tudo!"
(N/A: E esse último pensamento não foi nem um pouco machista, né?)
Pouco tempo depois, Aline e Douglas aparataram na loja para almoçar com os gêmeos. Fred tentou não tocar no assunto, sabia que o irmão preferia pensar sozinho naquilo, mas depois de ter que explicar a Douglas e Aline que Cinthia não pôde almoçar com eles por ter tido contratempos no trabalho, Jorge não conseguiu mais tocar na comida. Ele deu uma desculpa qualquer e se retirou com o estômago embrulhado, não querendo ter que falar naquilo de novo.
Quando estava passando pela entrada da loja para subir as escadas, reparou que algumas cartas e embrulhos pequenos bem finos entrando pela portinhola do correio. Havia uma carta e um embrulho para ele, Fred e Aline, e Jorge abriu a que era endereçada para ele. Era a tal condecoração por terem ajudado tanto os aurores no resgate de Douglas, Quim e Ian, e dentro da caixinha havia uma pequena medalha dourada em forma de chapéu cônico com alguns dizeres atrás.
Mas aquilo não ajudou em nada para melhorar o seu humor. Qualquer coisa que viesse do Ministério o fazia lembrar de Cinthia e da briga, e do quanto ele estava zangado. Ele simplesmente deixou a correspondência dos outros no balcão da loja para que pegassem mais tarde e subiu a escada batendo o pé e bufando, decidido a se concentrar nos logros para não ter que pensar em Cinthia.
Depois que Jorge saiu da cozinha, Aline e Douglas lançaram olhares indagadores a Fred, mas ele hesitou em falar.
- Eu nunca vi o Jorge desse jeito. Aconteceu alguma coisa enquanto eu não estava? – Douglas perguntou, e os dois contaram tudo o que aconteceu durante ausência dele.
A gravidez de Cinthia era uma novidade para Douglas, assim como o trabalho dela. Mas ele não teve tempo para processar essas informações muito bem, porque Fred falou logo da briga que ela e o irmão tiveram dentro do Ministério, e tanto Aline quanto Douglas não soltaram nenhum comentário enquanto ele falava.
- Esses dois arranjam cada briga – Aline disse quando ele terminou, balançando a cabeça em tom de desaprovação. – E depois nós dois é que somos os cabeças-duras – ela apontou para si mesma e Douglas, e Fred teve que se segurar para não rir.
- Olha, eu estou no clima para fazer piadinhas medonhamente sinceras, por isso não me dêem tanto espaço para fazê-las.
- Será que dava pra você se concentrar um pouquinho no Jorge e na Cinthia? O assunto é sério.
- Tá, foi mal, Aline. Eu só acho que a gente devia deixar os dois resolverem e não tocar no assunto. Eles estão bem grandinhos para isso.
- É, mas nenhum dos dois vai querer dar o braço a torcer, e vai ser a gente que vai ter que agüentar um falando do outro depois.
- Você devia ser psicóloga de casais. Aposto como você já está imaginando alguma coisa para fazer os dois se entenderem outra vez.
- Pra falar a verdade, não.
- Puxa, agora eu fiquei realmente espantado – Douglas disse, olhando para ela.
- Eu até concordo com ela quando ela diz que o Jorge é um pouco imaturo, mas eu acho que é uma idéia melhor deixar que os dois se resolvam sozinhos. Se demorar muito, daí a gente interfere.
- Mas ela também foi um pouco exagerada quando chamou ele de machista e ciumento – Douglas disse. - O Jorge nunca ia tentar prendê-la em casa de propósito.
- Pode até ser, mas ela se magoa fácil, e a gravidez deve estar deixando ela um pouco mais sensível também. Acho que o que faltou foi um pouco de explicações por parte dos dois.
- Eles são dois orgulhosos, isso é o que eles são – Fred disse, e os outros não puderam deixar de concordar com ele.
Quando Jorge voltou para a pensão bem depois do entardecer, ele constatou que Cinthia não estava lá. Aquilo era um pouco estranho, já que ela costumava voltar antes que ele, a não ser que estivesse fazendo hora extra. Mas Jorge sabia que ela ainda não havia voltado por causa dele, e isso o deixou incomodado.
Depois de dar muitas voltas pelo quarto vazio, de suspirar trezentas e vinte e duas mil vezes e de entreter Nina, a gatinha supercrescida, com uma Orelha Extensível, ele desistiu de esperar por Cinthia para conversarem e foi se deitar sem realmente conseguir dormir, pois passava pouco das dez da noite.
Foi só quando o relógio indicou quinze para as onze que ele ouviu o som característico dela aparatando na sala. Ela entrou no quarto e, sem ter realmente um bom motivo, Jorge fingiu que já estava dormindo. Ele ouviu ela entrar silenciosamente no quarto, abrir a gaveta de pijamas, pegar um lençol ou cobertor no armário e tirar o seu travesseiro da cama. Jorge ouviu ela voltar para a sala e fechar a porta do quarto com cuidado para não acordá-lo.
Aquilo era o cúmulo! Jorge se sentou na cama e pensou em chamá-la para ir dormir lá com ele, mas então mudou de idéia. Se ela queria dormir no sofá desconfortável e bancar a infantil dessa vez, ele não ia impedi-la. Deitou-se novamente, puxando o lençol com uma certa violência para descontar um pouco da raiva, mas aquilo só o deixou mais zangado por ter descoberto os próprios pés.
No dia seguinte, eles também não tiveram tempo de se ver. Cinthia aparatou para o Ministério muito antes de Jorge acordar, e também não foi almoçar com os gêmeos na loja como sempre fazia. Para contrabalançar, Aline e Douglas combinaram de sempre se encontrarem na hora do almoço, para não perderem o contato. Eles combinaram que na próxima semana eles almoçariam em Londres, onde Aline e Douglas estavam morando, e, como que para dar um empurrãozinho, pediram que Jorge avisasse Cinthia. Ele concordou a contra-gosto, mas avisou Cinthia com um bilhete, que ele deixou em cima do travesseiro dela no sofá.
Cinthia voltou mais tarde que Jorge outra vez, e viu o bilhete dobrado em seu travesseiro. Por alguns segundos luminosos ela pensou que Jorge estava tentando pedir desculpas, mas depois de ler o bilhete ficou ainda com mais raiva dele. Aquela guerra do silêncio estava chegando ao cúmulo da teimosia, e ela escreveu uma resposta no verso do bilhete, seguindo o exemplo dele: "muito obrigada pelo aviso". Até a sua letra expressava o sarcasmo naquelas palavras.
E com a chegada da manhã, a rotina dos dois se repetiu, e Jorge não ficou surpreso que ela tivesse respondido com um bilhete. Mas ele se arrependeu de não ter dado o aviso pessoalmente, por mais banal que fosse. Sentia falta da voz dela, sentia falta de estar perto dela. Por mais que estivesse zangado com as acusações dela (que, ele começava a admitir, eram em boa parte verdade), ele não podia deixar de amá-la, e qualquer briga merecia ser resolvida pela pessoa que se amava. Mas o orgulho ainda falava muito alto, sufocando o arrependimento e a saudade, e Jorge não ia deixar que ele falasse mais baixo.
Como era sexta-feira, Cinthia saiu do escritório bem mais tarde, até levando um pouco da papelada para casa. Mas ainda era cedo para voltar para a pensão, por isso ela foi para onde ia depois do trabalho nos últimos dias: O Três Vassouras. No primeiro dia de briga, ela passou o almoço sim com Jonathan, e pôde constatar que ele não tinha mais aquela queda que tivera por ela em Hogwarts e que isso o tornava uma companhia ainda mais agradável. Mas os outros almoços ela teve que passar com os seus colegas de trabalho para se atualizar no que havia acontecido enquanto ela estava fora do escritório. Ficou até um pouco feliz e surpresa quando eles lhe contaram que Farfield fora a favor da sua condecoração desde o começo, mas aquilo não foi o suficiente para elevar o seu humor.
E como nas últimas noites, Cinthia ficou no Três Vassouras ouvindo a música do jukebox e pensando no seu relacionamento com Jorge. Muitas vezes ela sentiu vontade de voltar correndo e pedir desculpas por ter exagerado ao julgá-lo. Aquela gravidez a deixava com os humores um pouco estranhos. Mas em seguida ela se lembrava que, mesmo tento exagerado ao chamá-lo de machista, não deixava de ter um pouco de razão. Ele continuava tão infantil quanto era em Hogwarts, e Cinthia chegou a se perguntar se aquilo não seria um problema para criarem o bebê. Ela também se considerava um tanto imatura para ter filhos, se lembrando que, pouco antes de começar a namorar Jorge, sonhava em ter seu primeiro filho com o homem que amasse, mas apenas aos vinte e oito anos. Vinte anos era, decididamente, muito cedo para ela ter essa responsabilidade.
Agora, com a briga, Cinthia podia pensar com clareza em todas as conseqüências daquela gravidez, e também em todas as medidas que deveriam ser tomadas.
No quarto dia da guerra de silêncio, nenhum dos dois precisava ir trabalhar já que era sábado, e Jorge pensou que finalmente eles iam, no mínimo, ter que olhar para a cara um do outro. Mas se enganou. Apesar do sono que sentia pelas noites mal dormidas no sofá, Cinthia acordou cedo, bem antes de Jorge acordar. Nina reclamou antes que ela saísse, já que os dois a deixaram sozinha por um longo tempo e não haviam dado muita atenção para ela desde que voltaram, mas Cinthia resolveu isso com uma tigela de peixe fresquinho. Enquanto trazia o prato da gata da cozinha na pensão, Cinthia pensou em voz alta:
- Acho que vamos ter que nos mudar, Nina.
A gata apenas ronronou alto de felicidade, totalmente alheia ao que Cinthia havia dito. Cinthia fez mais um pouco de carinho nela e saiu, pensando no quão simples a vida de um gato era, e considerou seriamente viver como um guaxinim, a sua forma de animaga, para sempre.
Ela não tinha exatamente um lugar para ir, e não queria visitar Aline, já que a amiga certamente ia acabar falando na briga. Depois de dar algumas voltas por Hogsmeade, ela aparatou para o Beco Diagonal. Fazia um bom tempo que ela não ia lá, já que não precisava mais comprar livros para a escola, e seria um bom lugar para se distrair e, quem sabe, até fazer algumas compras.
Jorge ficou muito zangado quando acordou e viu que Cinthia já havia saído da pensão. Ele resolveu trabalhar o dia inteiro no aperfeiçoamento dos logros, já que não tinha nada melhor para se distrair. Não queria falar com ninguém que não fosse a Cinthia, e dessa vez resolveu esperá-la acordado.
Quando Cinthia voltou para a pensão, ela nem precisou entrar no quarto para pegar as suas coisas, que já estavam todas na sala. Era quase meia-noite, e ela se trocou para dormir. Mas nos últimos dias ela estava tendo dificuldades para pegar no sono, seus pensamentos não permitiam. Foi assim, olhando para o teto e com a gata em seu colo, que Jorge a encontrou quando saiu do quarto. Ele deu a volta no sofá, mas Cinthia não chegou nem a mexer a cabeça.
- Você devia ir dormir na cama, é mais confortável – ele disse, não conseguindo falar logo de cara o que realmente queria.
- Eu estou perfeitamente bem aqui – ela disse, se virando de costas para Jorge e encarando o encosto do sofá. Nina deu um resmungo e pulou do sofá, indo ver se não tinha algum entretenimento melhor no quarto. – Volte a dormir.
- Eu estava esperando você chegar para podermos conversar – ele disse, ficando surpreso ao perceber que não havia mágoa na sua própria voz, apesar da atitude dela. Descobriu que aquela conversa não feria o seu orgulho no final das contas.
Cinthia ficou em silêncio por um longo momento, tentando tomar coragem para o que iria dizer, mas Jorge esperou pacientemente que ela falasse alguma coisa. Ele reparou na respiração dela subir e descer rapidamente debaixo do lençol, até que ela finalmente parou e pegou fôlego.
- Eu quero cancelar o casamento.
- O quê...? – a voz de Jorge saiu tão fraca que ele achou ter apenas pensado aquilo. Seu choque foi tão grande que ele se sentou na mesinha de centro, incapaz de continuar em pé. Cinthia se virou lentamente e se sentou no sofá para ver a reação dele, mas estava com lágrimas nos olhos. – Por quê...?
- Eu realmente sinto muito, Jorge – ela disse com a voz muito rouca, e os olhos vermelhos eram uma indicação de que aquelas palavras haviam doído mais nela do que nele. – Eu te amo, de verdade, mas nós não podemos continuar desse jeito. Vai ser impossível criarmos esse bebê juntos se tivermos outras brigas como essa. Dói demais.
- Mas nós não vamos ter outra briga como essa, eu juro! – ele disse num tom quase desesperado. Nunca havia imaginado que as coisas pudessem ficar tão sérias, e agora todos os motivos que os levaram a brigar não pareciam tão importantes assim.
- Não prometa coisas que não vai poder cumprir. E não faça essa cara, você sabe que vai ser impossível não brigar outra vez pelo que nós brigamos.
Jorge não podia acreditar no que ela estava dizendo. Ela estava certa, aqueles problemas nunca seriam resolvidos, mas ele simplesmente não iria desistir sem tentar achar uma solução.
- Nós podemos nunca conseguir mudar a nossa personalidade, isso é verdade, mas podemos melhorar o nosso temperamento. Eu vou sempre me preocupar demais com você por causa do seu trabalho, sim. Eu também vou sempre ter ciúmes dos outros caras que falam com você porque você é uma mulher linda, inteligente e não existe outra igual no mundo, isso é verdade. Mas eu não vou mais insistir que você desista do seu trabalho ou das suas amizades. Isso eu posso prometer!
- Ah, Jorge... - algumas lágrimas rolaram pelo rosto de Cinthia, e ela apoiou a cabeça nas mãos. – Eu queria poder acreditar nisso, eu queria mesmo. Mas você sempre vai pensar que seria melhor se eu não fosse detetive, se eu não tivesse as amizades que tenho, e eu ia sempre ver aquele olhar de desgosto no seu rosto. Eu não consigo conviver com isso. Essa superproteção é sufocante. Eu ia me sentir presa numa gaiola de ouro.
Cinthia respirava rapidamente, ainda escondendo o rosto nas mãos, e Jorge se sentou ao seu lado e a abraçou forte, balançando-a de leve.
- Eu não vou mais olhar com desgosto para isso. Eu entendo agora que essa é a sua vida, que você é feliz assim. E já que você é feliz, eu não tenho motivos ou direitos para achar que tem alguma coisa errada na sua vida.
Jorge encostou a cabeça de Cinthia em seu ombro, afastando algumas longas mechas cor-de-mel do rosto dela. Mais algumas lágrimas escorreram pelas suas bochechas, que ela insistia em enxugar teimosamente. Jorge se inclinou para pegar a varinha dela que estava na mesinha ao lado do sofá e conjurou um lencinho, oferecendo-o a ela.
- Você acha mesmo que vamos conseguir evitar outra dessas brigas homéricas? – ela disse, enxugando as lágrimas com o lenço. Dessa vez havia mais esperança do que ceticismo na sua voz.
- Eu acho que a pergunta certa é se o nosso amor é maior que qualquer briga, e se vamos sempre conseguir fazer as pazes e não agir como dois orgulhosos teimosos depois.
Cinthia soltou o ar pelo nariz no que lembrava uma risada leve. Era incrível a maturidade com que Jorge estava agindo agora. Ele estava tentando salvar a relação deles enquanto ela jogava tudo para o alto por causa de uma turbulência. Era engraçado ver os dois em papéis trocados, e aquilo fez Cinthia acreditar outra vez que eles poderiam criar aquele bebê juntos e serem bons pais, que era a sua preocupação maior.
- Eu acredito na gente – ela disse, meio respondendo a pergunta de Jorge, meio pensando alto. Jorge a abraçou com mais força e deu um beijo na sua testa.
- Eu também. – ele disse, e acrescentou depois de um tempo: - É melhor irmos para a cama agora, já está ficando tarde.
- Espere só mais um pouco. Eu não quero quebrar essa sensação mágica – Cinthia disse, aninhando sua cabeça no ombro de Jorge e fechando os olhos.
- E que sensação é essa? – ele perguntou num tom baixinho para não quebrar a tal sensação mágica, pois ele podia senti-la também.
- É o nosso amor.
Os dois sorriram, sabendo que aquela sensação nunca iria acabar. Eles logo pegaram no sono, e dormiram melhor que em qualquer uma das últimas noites, pois estavam envoltos pelo amor que sentiam um pelo outro.
(N/A: Eu não quero me gabar, mas eu simplesmente ADOREI o final desse capítulo! Vou deixar os comentários por conta de vocês. Por favor, façam comentários e nos mandem e-mails! Nós realmente queremos saber o que todos os nossos leitores acharam desse capítulo. )
