Sten Akre Tes Filias
By Nix e Mari Marin

Capítulo IV – Confronto

A cortina da janela da casa de Shina ondulava ao sabor de uma brisa calma naquela manhã, ora deixando, ora não, passar um tímido feixe de claridade para o interior. A luz prolongava-se ao longo de uma linha, indo repousar no verde dos cabelos da Amazona no final, a tranquilidade do momento em nada denunciando os acontecimentos que se desenrolavam do lado de fora. Shura olhava serenamente não só para os reflexos dourados que brincavam nos cabelos daquela a quem amava, mas também para a sua expressão absolutamente pacífica enquanto dormia.

O silêncio que enchia o ambiente foi quebrado pelo barulho de alguém a bater na porta. Shina logo acordou e mexeu-se, anunciando que tinha a intenção de se levantar para atender a quem quer que fosse. Mas Shura protestou suavemente.

– Deixe que batam, cariño, deixe...

– Desculpe Shura, mas tenho compromissos com esse Santuário. Se batem em minha porta a essas horas da manhã, é porque deve ter acontecido algo – disse, enxugando o sono dos olhos e depois vestindo um hobbie e pondo a máscara. – Por favor, não saia daí Shura, – pediu ao amante antes de se dirigir à porta.

Ao abrir deu de cara com Marin, que não perdeu tempo com cerimônias e começou abruptamente a falar. Pelo meio da sua primeira palavra retirou a máscara com a urgência. Afinal, seu rosto não era segredo para a amiga e precisava olhá-la nos olhos.

– Shina, finalmente atendeste essa porta! Tens que me ajudar, não sei mais o que fazer! As coisas complicaram-se!

– Calma, Marin... – disse a outra, alarmada pela agitação da Amazona de Águia. Saiu para o degrau da entrada, batendo com a porta atrás de si, mas o estado de nervos de Marin fez com que não se atentasse ao fato de Shina não a ter convidado para entrar. – Diz-me, o que se passa?

– Preciso encontrar o Shura, fazes idéia de onde ele esteja?

Shina também havia retirado sua mascara e agora tinha uma expressão preocupada. Não era seu desejo esconder da amiga que Shura estava ali, afinal há muito que não existiam segredos entre elas, mas antes precisava saber ao certo o que estava acontecendo.

– Marin, acalma-te primeiro. Por que queres tanto encontrar o Shura?

– Quero saber quais as suas intenções. Preciso convencê-lo a não aceitar o desafio! – Respondeu imediatamente a amazona, tomando como certo que Shina já estaria a par de todos os últimos desenvolvimentos.

– Desafio? Que desafio? – A amazona queria desesperadamente acreditar que a brisa lhe tinha pregado uma peça e que não ouvira corretamente.

– Sim! Aioria o desafiou para um duelo de cavaleiros!

Shina sentiu um calafrio subir-lhe a espinha ao perceber que aquilo que mais temia tinha realmente chegado. Mal havia dormido na noite anterior com a possibilidade de que as coisas com Aioria se complicassem em mente. E agora, precisamente no momento em que havia descoberto um novo amor, corria o risco de perdê-lo. Pensar nisso, fazia-a sofrer de uma forma que surpreendia a si mesma.

– Fala baixo! – Sussurrou alarmada, exibindo uma expressão de temor, temor que Shura tivesse escutado tudo. Elas tinham que fazer algo, e rapidamente!

– O quê...? Só estamos nós du... – As palavras morreram-lhe na boca. Tal como a fugaz esperança de Shina de ainda ser possível contornar a trágica situação, quando percebeu o que certamente se devia estar a passar agora mesmo...

– Então Aioria fez isso!

A porta da casa de Shina se abriu, e Marin não pode disfarçar sua surpresa ao deparar-se com o Cavaleiro de Capricórnio e descobrir que ele tinha estado ali o tempo todo.

– Pensei que ele faria isso... – Confirmou Shura, deixando um sorriso repleto de ironia dançar em seus lábios, enquanto as duas mulheres permaneciam enraizadas no local, absolutamente sérias.

– E o que vais fazer, Shura? – Marin perguntou primeiro, mas Shina teria feito a mesma pergunta logo que a pontada de desespero que recaíra sobre ela, algo que lhe era completamente estranho, se tivesse esbatido.

– Que achas que vou fazer? Não tenho opções, o teu namorado me desafiou, ruiva. O que achas que posso fazer a não ser enfrentá-lo? – As palavras de Shura eram bastante mais incisivas aos ouvidos das duas amazonas que as escutavam do que a entoação que ele lhes dava. O Cavaleiro de Capricórnio parecia... resoluto, mas não agressivo.

– Porque não tentas conversar com ele, Shura, fazê-lo ver a loucura disso tudo! – Pediu a Amazona de Cobra, mas bem sabia que era inútil. Isso era exatamente o que tinha acontecido no dia anterior, e nada de bom daí viria.

– Queres dizer... me desculpar? – Mais uma vez um pequeno sorriso irônico aparecia em seus lábios. – Sabes bem que não farei isso, cariño. Se Aioria espera que eu me desculpe, é bom que ele saiba que o que o espera é o gume da minha excalibur!

– Pois era o que devias fazer Shura! – Exclamou Marin com a raiva a subir-lhe o sangue cada vez mais, coisa rara de se ver em se tratando dela. – Se Aioria te matar, terás morrido por culpa da tua teimosia e orgulho! Eu o absolvo disso! Agora, se tu o matares... não irei deixar por isso mesmo. Estás avisado desde já. Se algo acontecer... se algo acontecer a Aioria... eu te mato Shura! Te mato nem que tenha que usar dos métodos mais vis!

Dizendo isso, a Amazona deu as costas ao casal, pronta para sair dali, final na sua decisão. Cerrou os punhos com força. Então era assim que as coisas iam ficar? Não havia mais nada a fazer? Faltava uma hora, uma hora apenas... jamais conseguiria convencer Aioria a desistir. E Shura também se mostrava irredutível. Como sentia ódio desse homem agora, tanto que estava a ponto de dar razão a Aioria. Porém, odiando ou não Shura, não negava para si mesma que estaria feliz se no final daquele dia fosse ele a estar morto.

Antes de ir, olhou uma última vez para trás e seus olhos castanhos encontraram-se com os verdes de Shina. Estavam em lados opostos agora. As grandes amigas de outrora, se viam obrigadas a torcer uma pela infelicidade da outra, afim de proteger aquilo que mais amavam... Com esse pensamento, Marin partiu.

ooooooooooooooooooo

Chegado o meio-dia, era difícil constatar uma presença faltosa no coliseu. À excepção da Deusa Athena, todos estavam ali. Aioria acabara de chegar à frete do campo de treinos, onde a estrada para o coliseu se iniciava, e caminhava até onde estavam os outros, tomando nota da figura de Shura seguindo-o não muito atrás. Sua armadura e os cabelos dourados reluziam ao sol. Em outro momento, Marin o acharia lindo assim, mas estava abalada demais para pensar em algo do tipo. Vê-lo vestido assim, para lançar-se em uma luta inútil, que poderia levá-lo a uma morte sem propósito... A caminhada até à areia onde se defrontariam os cavaleiros pareceu-lhe uma marcha para o cadafalso e quando atingiram esse destino final, uma estranha mistura de nervosismo, medo e conformação apoderou-se dela.

Tinha que fazer sua última tentativa. Diante daquele povo todo, no centro da arena, ela pôs-se no caminho do seu Leão Dourado. E quando estavam frente a frente, Marin arrancou a maldita máscara de seu rosto. Agora só existiam eles.

– Aioria. Já sabes o que penso disto, não sabes?

– Estás errada. Vingar meu irmão é minha obrigação.

– Tanta coisa já aconteceu, Aioria...

– Não quero saber da encenação que Shura tem feito esses anos todos! Um homem que teve sangue frio para matar o melhor amigo merece a morte. Não há saída para esse homem.

– Estás tomado pelos teus sentimentos, Aioria. A razão não justifica as tuas ações... – Comunicavam por mais do que palavras. Não havia um obstáculo entre os dois, era como se partilhassem uma só mente. E no entanto, não havia como atingir o consenso e unir os extremos que cada um deles ocupava.

– Marin! Vens com essa ladaínha novamente? Não quero mais brigar contigo!

– E eu, não pensas em mim? E todas as promessas que me fizeste de que ficarias ao meu lado... para sempre... de que seriamos felizes! Tua vingança é mais importante do que isso? Me fala, se algo te acontecer... Que farei sem ti?

– Estás te preocupando à toa. Irei matá-lo!

Não que Marin ainda tivesse esperanças de convencê-lo a desistir quando começou aquela conversa, mas agora, definitivamente, não havia nada mais a acrescentar. Teria que ver seu homem caminhar para um destino incerto. Talvez o visse morrer hoje. Talvez Aioria fosse morrer diante de seus olhos nos próximos minutos e ela só poderia assistir.

Em silêncio, a ruiva fitou os olhos cheios de determinação do seu amado e, sem pensar duas vezes, esqueceu mesmo que estavam sendo observados por toda aquela gente, pousou seus lábios sobre os dele para aquele que talvez fosse seu último beijo.

Aioria não deixou que Marin aprofundasse demasiado o beijo. Sabia que deixar-se tomar por sentimentos destes tão próximo de uma batalha era insensato. Desencostou os lábios dos dela, permanecendo de resto com a sua face apenas a milímetros de distância do rosto descoberto da Amazona, de leve, beijou-lhe na testa, e então lhe dirigiu um sorriso confiante. Queria acalmá-la, transmitindo-lhe a segurança que sentia, mas aquele sorriso não tranqüilizou nem um pouco a amazona. Com o coração dilacerado, ela o viu se afastar, temendo que o excesso de confiança fosse o erro fundamental que o levaria à morte.

– Estás pronto, Cavaleiro?

A asperidade do seu tom percorreu os metros separando os dois oponentes e, antes de lhe responder, Shura olhou para a sua bela amazona, que fizera o mesmo que Marin e fora acompanhá-lo.

– Pronto quando tu estiveres, Aioria.

Por seu lado, as palavras saíam-lhe suavemente, como alguém resignado, sem outra opção a não ser enfrentar o que o destino lhe reservara. Queria ver o rosto de Shina uma última vez, seguro de que a visão lhe daria todas as forças que necessitaria, mas a Amazona dos olhos verdes estava ainda demasiado apegada a costumes antigos para tirar a máscara em público.

Shura virou-se para encarar Aioria, tomando uma pequena nota mental para mudar isso assim que pudesse... se pudesse. O outro acabava de beijar Marin na face e começava a voltar-se também.

– Como é que queres fazer isto? – Não podia deixar de perguntar, embora soubesse a resposta bem demais. Caminhavam os dois, lado a lado, até às marcações no solo onde tantos outros combatentes se tinham posicionado no passado para iniciar um duelo.

– Até que um de nós tombe! – Clamou Aioria, acendendo o seu cosmo e tornando visível uma aura dourada à sua volta.

Shura imitou-lhe as ações, embora com menos entusiasmo do que aquele que gostaria de ter tido. Era assaltado por pensamentos que nunca pensou ter numa altura em que estava prestes a lutar pela sua honra e vida. "O tempo muda tudo... Ainda há uns dias era como um segundo irmão para Aioria e hoje devo defrontá-lo, matá-lo se a oportunidade se apresentar, para continuar vivo! Ainda ontem lhe respondi ao desafio e esta luta só não tomou lugar então por causa da Marin... Hoje, sinto-me enojado pelo que tenho que fazer. Perdoa-me Aioria, perdoa-me Aioros, mas não posso morrer agora que tenho a Shina. Matar-te-ei se puder!"

A sagrada armadura de Capricórnio reluziu ao Sol do meio-dia, quando Shura desferiu o primeiro golpe. Excalibur cortava o ar em direção a Aioria, certeira e pronta a decepá-lo. Apenas um rasto de areia seguindo-a pelo ar indicava a sua deslocação.

No entanto, Aioria não era conhecido como 'o mais veloz dos Cavaleiros' em vão e desviou-se no último instante sem dificuldades acrescidas. Sorriu para Shura, mostrando um semblante distorcido por raiva e ódio.

– É só disso que és capaz, Shura? Ora, abreviemos o combate e usemos as nossas técnicas secretas de uma vez. Não há qualquer razão para deixarmos que isto se arraste por mais tempo do que o necessário, não achas?

Na platéia, Marin ficou tensa ao ouvir o sarcasmo na voz do seu amado. Há muito que ela não o via tão enfurecido. Talvez só quando era um garoto, odiando a tudo e a todos à sua volta como forma de defender-se do ódio que os outros lhe depositavam. Angústia estava esculpida em sua face, que naquele momento não se preocupava mais em cobrir.

Ao seu lado, Milo de Escorpião não desviava os olhos da arena. Era raro vê-lo com uma cara tão grave, o que só demonstrava a culpa e remorsos que sentia. "Por que tinha eu que concordar com Aioria? Sou um imbecil, o Camus tem razão..." Só agora parecia entender a seriedade da situação. Quando pudera fazer algo para impedir tudo aquilo, tremeu diante da pergunta de Aioria. "O que faria no lugar dele afinal?" Agora pensava que o melhor seria ter mentido, tê-lo reprovado, mesmo sabendo que provavelmente faria o mesmo. Ao final daquela luta um dos seus amigos morreria e ele não havia feito nada para impedir.

A temperatura ambiente pareceu descer alguns graus à medida que todos os olhares se fixavam no par do centro da arena e cada um desses dois juntava o seu cosmo, erguendo-o ao nível máximo dos cavaleiros de ouro.

Shura olhava Aioria, na esperança de encontrar alguma fraqueza na pose defensiva dele, mas não havia ali a menor falha. "Nada, ensinaste-o bem, Aioros." Tão-pouco os olhos de Aioria se despregavam de Shura. Tornara-se um Leão atento, concentrado em apanhar a sua presa. Foi impossível dizer qual dos dois foi o primeiro a agir.

Uma luz intensa concentrou-se na palma da mão direita de Aioria ao mesmo tempo que Shura baixou o braço com o ataque mais poderoso de que era capaz.

– PELA GARRA DO LEÃO!

– EXCALIBUR!

Os dois golpes varreram a areia num vendaval de energia e encontraram-se precisamente no centro do coliseu, grelhas de luz cortante concentrando-se num único feixe de luz que ligava os punhos dos dois. O impacto foi forte demais para que os Cavaleiros permanecessem nas suas posições e tiveram que cravar os pés na areia para se manterem de pé. Quatro riscos, paralelos dois a dois e terminando nas botas polidas das armaduras, marcavam presença diante de cada Dourado. Mas nem isso os fez parar.

Mal a onda de choque passou, os Cavaleiros tornaram à carga e lançaram um novo ataque. Ambos haviam recuperado simultaneamente, o combate era demasiado equilibrado para se poderem tirar conclusões sobre o que poderia resultar dali.

Desta segunda vez, os golpes não simplesmente chocaram, mas fizeram frente um ao outro, as intensidades iguais. Dois jatos de incandescente luz dourada saíam dos punhos dos Cavaleiros, encontrando-se numa esfera de energia no centro. A massa desta crescia a cada segundo que passava, aumentando também o brilho com o assimilar de tanto e tão poderoso cosmo.

Ela sugava as energias dos Cavaleiros, e Leão e Capricórnio viram-se a fraquejar, tentando agora ao mesmo tempo conter a explosão que certamente resultaria da libertação da esfera. Por esta altura, o clarão era tão forte que já ninguém nas bancadas suportava observar o que se passava na arena, cegados pela intensidade da luz que se libertava.

Então a explosão inevitável aconteceu. Os que assistiam, cegados pela luz, mal podiam ver o que se passava. Alguns foram tomados por uma enorme expectativa, enquanto outros sentiram o desespero invadi-los por completo.

Quando a nuvem de poeira começou a dissipar-se, Marin, Shina e os demais puderam ver, com algum alívio no caso das duas amazonas, que nenhum golpe fatal havia ainda sido desferido com sucesso. Ambos os combatentes encontravam-se estendidos no chão, mas claramente vivos e em condições de continuar.

Aioria foi o primeiro a se levantar. Talvez porque seu poder fosse realmente superior, ou talvez porque no outro faltasse a convicção que nele sobrava. E esse não era o único sinal que evidenciava que a luta pendia para o lado do Cavaleiro de Leão.

Shura se ergueu com dificuldades, o sangue escorria-lhe pelo corte na cabeça que se havia reaberto e agravado com a violência com que estava a ser tratado. O lado direito da sua face estava já tingido a vermelho e coberto de areia. Aioria também sangrava no supercílio e pelo nariz, se bem que não com a mesma fluência que o espanhol.

Ambos estavam ofegantes e ambos se olharam sem trocar uma palavra, todo e qualquer comentário de escárnio ou ódio para lá das suas mentes. O Leão parecia ameaçar atacar novamente.

A tensão do momento era tamanha que poucos se aperceberam dos dois vultos que se aproximavam ao longe. Em momentos apenas, as figuras ficaram mais nítidas e já se podia notar que se tratava de um homem e de uma mulher. Apenas Shaka, Kamus e Mu os tinham visto e reconhecido, mas não podiam acreditar em seus próprios olhos. Foi então que uma voz ecoou pela arena, declarando a sua presença.

– É inacreditável! – Todos sem exceção dirigiram suas atenções para o dono daquela voz e a mulher ao seu lado. – É a segunda vez que eu tenho que impedir que esses dois se matem! Já estou ficando de saco cheio disso!

Todos olhavam boquiabertos para a figura que agora caminhava sobre as duas pernas na direção de Aioria. Com exceção de Shaka, que podia compreender melhor do que qualquer outro ali os mistérios da vida e da morte, o restante estava incrédulo. Mas os mais absolutamente incrédulos eram com certeza Aioria e Shura.

O Cavaleiro de Leão observava imóvel o homem que se aproximava de si. Com uma expressão que lembrava a de uma criança ao deparar-se com algo realmente surpreendente.

– A- Aioros...? – crocitou, franzindo o cenho.


Continua...