Sten Akre Tes Filias
By
Nix e Mari Marin
Capítulo V – Compreensão
– Não faças essa cara, não é a primeira vez que apareço para ti depois de morto. Até quando terei que interromper meu descanso eterno para vir te impedir de fazer besteiras, hem, Aioria?
– Besteiras? – Aioria passara de estupefato a intrigado, mas a possibilidade do irmão desaprovar a sua atitude rapidamente fez com que se irritasse. – Não concordas que eu vingue tua morte? Não concordas que eu mate teu algoz? És mesmo tu, Aioros?
– Pff, também ficaste indignado da outra vez... – O sorriso e ligeireza com que despachava cada conclusão a que Aioria chegava só tornava ainda mais estranho aquilo que o Cavaleiro de Sagitário tinha para dizer.
– Outra vez?
– Vocês não se lembram, mas por quase um ano estivemos juntos no mundo dos mortos. Antes que Athena ressuscitasse aqueles que morreram na última Guerra Santa. E lá chegaste a saber da verdade sobre a minha morte, Aioria, e por pouco não se instaurou um duelo até à morte entre cavaleiros no além! Ridículo, hahahaha!
– Estás rindo? Ficaste doido, meu irmão? – Aioria não encontrava maneira de se agarrar ao que estava acontecendo e àquilo que estava a ouvir. Aioros também não lhe facilitava as coisas, lançando um olhar esperto de zombaria fraternal.
– Não vais dizer... ahh, como é que foi mesmo?... "Perdeste tua honra de cavaleiro... Não! De homem?", como da outra vez?
– Pensei em dizer, mas não vou ofender tanto ao meu irmão. Ainda duvido se estou mesmo a falar com ele...
– Ora, deixa de tolices, Aioria! – Aioros adoptou por fim um semblante sério, deixando as brincadeiras para trás. – Não reconheces o cosmo do teu irmão?
– Aioria, – a mulher que permanecera em silêncio até agora resolveu pronunciar-se. – Não há dúvida de que este é Aioros, tu devias saber isso melhor que ninguém. É melhor que o escutes. Trazê-lo aqui foi a única alternativa que encontrei para impedir essa tragédia entre os meus cavaleiros.
– Atena... perdão, mas há momentos em que as coisas não podem ser resolvidas pacificamente como sempre gostaria... – Os eventos mais recentes haviam deixado Aioria desorientado e com falta de paciência, como o tom contido que dirigia à deusa que servia o demonstrava plenamente. Shura não parecia partilhar dessa agitação, remetendo-se porquanto a um papel de observador.
– Este não é um desses momentos, Aioria. – Aioros então aproximou-se mais. – Meu irmão, – disse com carinho – se alguma vez eu te disse que não aprovava alguma atitude que tomavas, se fui duro contigo, foi porque o momento exigia que eu o fosse, para que tu pudesses ver a razão. Mas agora, as palavras que quero te dizer são as mesmas que te disse quando nos encontramos no mundo dos mortos... e que infelizmente esqueceste.
« Eu tinha-te dito que pude ver de longe o teu sofrimento nesse Santuário, dominado pela maldade de Ares... e eu vi como sozinho te tornaste um dos mais poderosos entre os cavaleiros de Athena, contra tudo e contra todos! E não só és poderoso, como também um dos mais nobres homens que pisa esta Terra. És o maior orgulho que tenho na vida e na morte, meu irmão!
Uma lágrima involuntária escorreu dos olhos azuis do Cavaleiro de Leão. Ele estendeu a mão para tocar o ombro do irmão, mas seus dedos o atravessaram. Estava intangível como um fantasma, mas a imagem era sólida, como se realmente tivesse voltado aos vivos.
– Eu queria muito poder abraçar-te meu irmão... – Aioros sorriu tristemente para Aioria e depois olhou para a ruiva que estava a poucos metros de distância deles e fez um sinal para que se juntasse a eles. Marin obedeceu.
– É a primeira vez que vejo teu rosto, – disse-lhe ele. – Acredita, não fico espiando quando não devo. Ainda mais a mulher do meu irmão.
O comentário fez com que Marin e Aioria sorrissem.
– És linda, Amazona de Águia, com todo o respeito. Cuida desse meu irmão que às vezes precisa de uns puxões de orelha.
Ele então começou a afastar-se dos dois.
– Aioros! Espere! – Reagiu o Leão, não querendo separar-se dele assim tão rapidamente.
– Ainda não estou de saída, só preciso falar com outra pessoa agora... – assegurou-o Sagitário e logo continuou em direcção ao Cavaleiro de Capricórnio.
Shura fitou o seu velho amigo, esperando que ele falasse e temendo ao mesmo tempo as palavras que este lhe podia ter para dizer. Aioros também o encarou por alguns segundos. Estava sério. E depois...
– Estás bem ferrado, hem, Shura! Hehe!
– Não voltaste dos mortos para tirar sarro com a minha cara, pois não? – Fazendo um ruído como quem acha a questão irrisória, a sua postura rígida esvaiu-se tão rapidamente que nem um balão perfurado.
– Não. Voltei para salvar tua pele mesmo, – completou tranquilamente.
– Aioros, eu... – Shura não tinha a certeza do que queria dizer, se era para dar explicações sobre a forma como tinha agido para com o irmão do melhor amigo se para se desculpar das ações de há mais de uma dezena de anos atrás. Mas não teve de se adiantar muito, pois Aioros estava a abanar-lhe a cabeça, deixando-o saber que não precisava de ouvir nada.
Fazia-o com um sorriso compreensivo e confortante, algo que todos que o haviam conhecido em vida sabiam reconhecer e apreciar. Era um seu gesto característico que deixava qualquer um com uma sensação de bem-estar e à-vontade.
E Shura compreendeu também.
Não havia ressentimentos, não havia necessidade de explicações. Nada se interporia no caminho da amizade entre estes dois, pois Aioros estava consciente de tudo o que se passara naquele fatídico dia, anos atrás, e não o responsabilizava.
Eram amigos, e amigos continuavam. Mas eram também Cavaleiros de Atena, e isso significava que eram homens sujeitos a situações extremas, situações que poriam em causa a ética e sanidade do comum dos mortais. E a única coisa que tinham para os manter coesos, para manter unida a vasta comunidade de Cavaleiros que habitava o Santuário – cada um extraordinário e único à sua maneira, diferentes entre si ao ponto da incompatibilidade – era a vontade e segurança de Atena.
Inquestionável por necessidade, o maior crime que qualquer Cavaleiro poderia cometer era renegar à divindade que jurara proteger. Desobedecer ao Sacerdote, por consequência, era outro crime igualmente gravoso.
O único crime que Shura cometera, se deveras se poderia considerar crime, foi o de ter somente a força de um humano à sua disposição para cumprir uma missão que transcendia essa frágil espécie. Cumprira as ordens que lhe tinham sido dadas – não tivera a omnisciência de um deus para perceber que o Sacerdote não era quem aparentava, nem tivera força suficiente para ver para além da revolta que sentira quando lhe disseram que um companheiro que lhe era tão chegado tinha cometido a pior das traições e tentado assassinar Atena, então acabada de encarnar como um pequeno e inocente bebé.
O próprio fato que o cargo do Sacerdote pudesse ter sido corrompido pelo inimigo, só atestava à falibilidade humana dos cavaleiros. Aquela era a única altura em que o santuário era realmente vulnerável – quando a deusa não estava entre eles e a humanidade estava entregue a si mesma até que ela voltasse. E Ares sabia disso tão bem quanto soube aproveitar a sua chance para possuir o Cavaleiro de Gémeos Saga.
Lágrimas escorriam livremente pela face de Shura, e um sorriso que não via a luz do dia há mais de uma dezena de anos contradizia a tristeza que as lágrimas faziam supor. Shura queria dizer a Aioros que lhe estava profundamente agradecido, queria-lhe jurar que nunca mais cometeria erro semelhante, que continuaria a olhar pelo seu irmãozinho como fizera antes deste incidente ter ocorrido, mas mais uma vez... não era preciso. Aioros compreendia. Ele tinha a certeza que sim.
– Tinha saudades desse teu sorriso idiota... Sempre me conseguiste pôr a chorar que nem uma mulher, maldito!
– Haha! Essa é uma variação gira em relação à última vez... não te vais pôr a pedir o meu perdão ou algo assim, meu caro Shura?
– Contenta-te com o que tens agora... e nem sonhes que te vou dar ainda mais essa satisfação! – O espanhol recuperara o controlo dos seus olhos e limpava agora apressadamente as lágrimas. Aioros acenou afirmativamente a cabeça com um ar sabedor. Sim, ele compreendia.
– E agora, se me dás licença, há umas quantas coisinhas que queria te dizer... – retomou rapidamente o ar de jocosa seriedade com que chegara. – Em relação àquela amazona... – aproximou-se do ouvido do espanhol para mais ninguém ouvir o que tinha para lhe confiar, e quando se afastou, ambos estavam a rir. Depois, com um último olhar de camaradagem, voltou para junto do irmão, que observara a troca silenciosa com curiosidade.
– Bem...
Os penetrantes olhos cinzentos do cavaleiro arqueiro percorreram a multidão ali reunida até avistar os outros Cavaleiros de Ouro, reunidos à frente do resto. Seus olhos cruzaram-se brevemente com os de Saga. Este era outro com quem tinha assuntos a acertar, mas agora não havia mais tempo, talvez numa outra oportunidade. Deixaria ao geminiano a ideia de que enquanto tinham estado mortos, assim como Aioria e Shura, também ele havia já tido a sua oportunidade de dizer para Aioros as coisas que sempre pensou em dizer se um dia voltassem a se encontrar.
O Cavaleiro de Sagitário voltava-se novamente para seu irmão.
– Chegou o momento de ir...
Aioria olhou para Atena, talvez esperando da Deusa algum sinal de que teriam mais tempo, mas só obteve o silêncio consensual. Sabia que pedir-lhe para ressuscitar o irmão, o único Cavaleiro a quem ela não dera uma segunda chance no final da Guerra e precisamente o primeiro a ter dado a vida por ela nas primeiras manifestações da mesma, era algo que estava fora de questão por se tratar de um acontecimento tão antigo. As repercussões podiam ser imprevisíveis. Portanto, nada mais havia a fazer senão continuar a viver, com o pequeno consolo, porém, de que ao menos o seu irmão sempre estaria a observá-lo, onde quer que ele estivesse.
– Aioria, com certeza já te disseram muitas vezes que uma das tuas maiores forças, e consequentemente, uma das tuas maiores fraquezas também, é o fato de seres tão impulsivo e tão passional em relação ao que é importante para ti. Não te direi para pôr essa maneira de agir de lado, pois isso seria roubar-te aquilo que faz com que sejas a pessoa que és, mas... irmão... há mais na vida que o preto e o branco, e se há momentos em que és incapaz de te aperceber da quantidade de outras cores que existem à tua volta, volta-te para os teus amigos e para as pessoas em quem confias e ouve o que eles têm para te dizer, em vez de deixares que esse teu sangue quente te cegue a razão...
– Aioros, chegou o momento – A voz de Atena, protetora e protegida dos Cavaleiros, interrompeu docemente a conversa entre os irmãos. – Lamento que não haja mais tempo.
Aioros acenou energeticamente e virou-se mais uma vez para o irmão, uma nova urgência a faiscar-lhe nos olhos, agora que sabia que estes momentos de reencontro estavam prestes a terminar.
– Aioria, procura controlar o teu temperamento. Mesmo que não consigas, o fato de teres tentado far-me-á o irmão mais orgulhoso de todo o submundo! Não que já não seja, claro... Voltaremos a encontrarmo-nos! Felicidades!
– Adeus, irmão... – murmurou, sabendo que a figura que desaparecia em frente aos seus próprios olhos ouviria cada palavra que dissesse. Pouco a pouco, as mãos deixaram de ter forma distinta, depois os braços e pernas, e finalmente o resto do corpo esbateu-se, dando lugar ao cenário que existia atrás dele.
Seus ouvidos haviam captado os conselhos do irmão, mas a verdade é que não se sentia capaz de os seguir. Talvez noutra altura, com mais calma, pudesse analisar melhor o recado do Sagitário e repensar as suas atitudes, mas de momento nada estava claro, seus pensamentos pareciam mais confusos do que nunca.
A primeira coisa que o leonino fez foi olhar de relance para Shura. O Capricórnio estava sendo amparado pelo abraço da bela Amazona de cabelos verdes, e ele não pode evitar que lhe viesse à memória a conversa que haviam tido poucos dias antes, quando eram só dois camaradas voltando de uma noitada e falando de mulheres, de Shina especificamente. Então afinal aqueles dois haviam se entendido! Se a situação fosse outra, Aioria não teria contido um sorriso maroto.
No entanto, a seriedade de tudo quanto se passara mantinha-se. E seria impossível exigir a Aioria que pusesse tudo isso para trás de si sem mais nem menos. Por ora, o facto de que a lembrança daquele momento de camaradagem ressurgira, era o bastante para sinalizar que o ódio se dissipara. Talvez só o tempo pudesse fazer com que algum dia voltassem às boas, mas a verdade era que a motivação sanguinária de Aioria sumira como a névoa, junto com seu irmão... e agora o que restava era um rodopiar de ideias desconjuntas e, acima de tudo, um enorme vazio em seu peito.
Desviou o olhar e encontrou Marin do seu lado. Seus olhos azuis procuraram os olhos castanhos dela, e eles estavam lá como sempre estiveram. Prontos para juntar os pedaços daquele coração partido.
Aioria intentou dizer algo, mas ela o impediu com dois dedos em seus lábios, e tremeu a cabeça negativamente, deixando que o ligeiro sorriso em seu rosto falasse por ela. Depois o abraçou com força, como se quisesse envolver assim a sua dor. Foi o suficiente para que ele entendesse que ela não queria ouvir desculpas. Ela não precisava, estava feliz por tê-lo vivo e nada mais importava.
FIM
