Beijos Desequilibrados
Capítulo X – Nevasca

Disclaimer : Como o "espírito" do Shaka conseguiu escrever uma mensagem para Athena, ainda mais com sangue servindo de tinta – já que o corpo dele foi "desintegrado" ? Mais um mistério do homem mais próximo de Deus...

Saint Seiya pertence a Masami Kurumada, Toei Animation, etc. Sou apenas mais uma maluca que se aproveita dos coitados dos cavaleiros... '

Amelie Bertaux, Althea, as gêmeas, Lótus, Catarina e Joseph são criações minhas.

- # - # -

Kamus estava sentado numa poltrona de avião. Observava as nuvens pela janela enquanto ouvia uma música pelos fones de ouvido. Stairway To Heaven, do Led Zeppelin. Vendo as nuvens assim, sentia que, de fato, precisava construir a sua "escada para o paraíso". Mas parecia ser impossível fazê-lo. A melodia suave da música embalava seus pensamentos melancólicos sobre os acontecimentos recentes.

- # Flashback # -

Kamus corria, vencendo a distância entre os templos de Escorpião e Aquário. O vento soprava forte e grossas lágrimas deslizavam em seu rosto marcado pela dor profunda que sentia. Como pudera ser tão tolo em acreditar em Miro ! Era lógico quetudo não passaria de uma conquista ! Agora deveria colher o fruto amargo que plantara com suas doces ilusões.

Passou por Capricórnio deixando um Shura completamente estupefato. Entrou em casa como um raio e se trancou no quarto. Tinha sangue seco em ambas as mãos e o rosto muito inchado de tanto chorar. Soluçava. Mas as lágrimas simplesmente não desistiam de cair de seus olhos ! Lembrou-se de Althea com tristeza.

"Sinto muito, Althea... Mas eu lhe disse que ia prometer algo impossível... A felicidade não foi feita para mim. Você não conseguiu enxergar isso e eu acabei perdido no mundo da fantasia, de onde fui brutalmente arrancando. Miro é um estúpido que não merece o amor de ninguém. Ele e Amelie se mereciam !"

Foi até o banheiro e lavou o rosto e as mãos. Gostaria que aquela água limpasse também a sua alma, mas era impossível. O amor que sentia por Miro estava impregnado em cada canto do seu corpo e de sua alma. Enxugou-se e retornou ao quarto. Tentava segurar as lágrimas que ainda fugiam de seus olhos. Abriu a gaveta do criado-mudo e encontrou um papel do Grande Mestre.

"Sibéria ! Eu preciso ir para a Sibéria ! O convite do Grande Mestre ainda está de pé e não há nada mais que me prenda aqui. Vai ser bom, passarei muito tempo longe do Santuário, poderei espairecer. E enterrar este amor maldito no fundo daquele mar congelado." . Pegou um papel e uma caneta e escreveu um bilhete ao Grande Mestre.

Grande Mestre do Santuário de Athena,

Eu, cavaleiro de ouro Kamus de Aquário, decidi aceitar a sua proposta de treinar o menino Isaac na Sibéria. Gostaria de partir o mais rápido possível, para não dizer imediatamente. Aguardo uma resposta.

Kamus de Aquário.

Foi até a cozinha com o papel em mãos e entregou para a serva, dizendo-lhe para voltar com uma resposta. Esperou impacientemente na biblioteca, aquele Santuário parecia-lhe insuportável agora. Pouco tempo depois, a serva retornou com um papel em mãos e entregou a Kamus, que foi até o seu quarto ler. Deu um leve sorrisojunto a lágrimas que ainda caíam.

Cavaleiro de Ouro Kamus de Aquário,

Intriga-me o teu pedido súbito, mas fico feliz em ver que tu desejas treinar o garoto. Tu partirás para a Sibéria ainda hoje, num vôo às dezesseis horas.Retornarás periodicamente ao Santuário para que me informes sobre tuas atividades. O menino estará a tua espera em Kohoutek(1). Boa viagem.

Grande Mestre.

Levantou-se rapidamente e pegou algumas malas guardadas. As malas em que trouxera suas roupas da Sibéria para a Grécia. Começou a colocar seus pertences rapidamente, de maneira organizada, porém deixando no quarto uma bagunça irreconhecível. Continuava chorando, mas tinha certeza de que aquilo logo passaria.

Depois de feitas as malas, foi até o banheiro e tomou um longo banho. Trocou-se e se arrumou. Fez bandagens nos machucados de ambas as mãos, provocados por suas longas unhas. Pegou outro papel e escreveu um breve bilhete. Saiu e encontrou sua serva na cozinha.

"Garota, eu irei fazer uma longa viagem, voltando de vez em quando." – Kamus foi categórico – "Quero que cuide do templo de Aquário durante todo este tempo."

"Kamus-sama, qual a duração da viagem ?"

"Não sei o tempo certo, mas não será algo breve. Qualquer coisa que precisar de uma orientação superior, procure Shaka no templo de Virgem. Estou indo agora, mas tome isso." – Ele lhe entregou o papel que escrevera – "Entregue isso a Shaka, estou contando a situação a ele."

"Boa viagem, Kamus-sama !"

"Merci."

Kamus saiu pelos fundos. Gostaria de passar mais uma vez pelo túmulo de Althea antes de partir. Tornou a pedir desculpas e a chorar. Depositou-lhe algumas flores e saiu com suas malas. Desceu pela passagem secreta e chegou nas arenas, onde um carro o esperava. Foi levado ao aeroporto e lá chegou com duas horas de antecedência. Não queria ficar mais um segundo naquele Santuário. Fez o check-in e aguardou o embarque. Partiu sem nem ao menos olhar para trás.

- # Fim do Flashback # -

Então estava Kamus no avião, sentado com suas lembranças. A melodia melancólica da música embalava o deslizar de lágrimas que ainda teimavam em cair. Não havia ninguém sentado na poltrona ao lado, mas Kamus não queria chorar. Já estava farto disto. Enxugou com suas mãos enfaixadas o líquido transparente que adornava seu rosto.

Não queria fugir mais uma vez, mas era preciso. Fugia de seu presente, indo de encontro a um passado do qual também já fugira antes. A vida era realmente irônica. Sabia que não agüentaria permanecer naquele Santuário vendo Miro todos os dias. Era um sentimento louco que tinha em seu coração... Vê-lo e não tocá-lo era demais torturante mesmo para ele, tão acostumado a viver em solidão.

Ficou pensando em como seria sua vida a partir de então. Tinha um garoto para treinar e não deveria ser azedo com ele. O menino não lhe fizera nenhum mal, ao contrário daquele grego estúpido. Mas também exigiria frieza de seu aprendiz. A mesma frieza que seu mestre lhe exigira e ele não soube demonstrar com perfeição, e que agora lhe rendia amargas memórias.

A viagem era terrivelmente longa. O vôo demorou quase doze horas – fazendo uma escala em Paris – e a distância entre Moscou e o extremo leste da Sibéria também não era das menores. Kamus estava exausto tanto fisicaquanto psicologicamente. Chegou ao vilarejo onde morara durante seis longos anos. Era incrível como certas coisas não mudavam com o tempo. Continuava sendo um lugar simples e muito pobre. Reconheceu a casa em que morava com o seu antigo mestre, que já falecera. Reconheceu também a casa onde Amelie morava. Kamusseguiu andando em direção ao local. Aproximou-se mais do vilarejo e chamou a atenção das pessoas. Elas prontamente o reconheceram e vieram saudá-lo.

"Kamus ! Seja bem vindo !" – as pessoas formaram um coro.

"Kamus, como você cresceu !" – uma mulher ruiva, de mais ou menos 40 anos, se aproximou de Kamus.

"Catarina !" – Kamus deu um sorriso.

"Venha, entre em minha casa para conversarmos ou as pessoas não o deixarão em paz."

Kamus se deixou conduzir pela ruiva até uma casa um pouco melhor, em comparação com as outras. Entraram e ela fez um sinal para Kamus se sentar. Ele obedeceu, colocando suas malas ao seu lado. A mulher fechou as janelas e acendeu velas, colocando também mais lenha na lareira que aquecia o ambiente.

"Há quanto tempo ! Seu russo não mudou de jeito nenhum." – Ela deu um sorriso e se sentou.

"Sim, faz muito tempo, Catarina."

"Por que você foi embora sem se despedir ? Pensei que ao menos viria para se despedir de Joseph !"

"Eu tinha pressa e..." – Kamus não queria tocar neste assunto.

"Não minta, Kamyu." – Kamus sorriu ao notar que ela o continuava chamando por uma maneira carinhosa – "Eu sei que foi tudo culpa de Joseph e de Amelie. Mas ele não está aqui para se desculpar..."

"O que aconteceu com Joseph ?" – Kamus pareceu surpreso.

"Joseph faleceu há um ano, Kamyu... Meu filho era um irresponsável, completamente diferente de você ! Ele foi caminhar e se perdeu admirando aquele pó de diamante(2)..."

"Morreu congelado..." – Murmurou para si. Kamus sentiu a perda daquele amigo, embora estivesse ainda magoado com ele.

"Não faça essa cara triste, Kamyu. A morte já foi superada. Superada com uma nova vida !"

"Como ?" – Kamus fez uma cara interrogativa quando viu Catarina se afastar. Ela voltou com um bebê nos braços.

"Kamyu, este é Yakoff(3), meu filhinho querido de 6 meses. Nasceu pouco tempo depois que meu marido faleceu."

"Meus pêsames, Catarina."

"Não se preocupe. Yakoff ilumina a minha vida depois de tantas tragédias. Há dois meses um navio afundou no mar da Sibéria. Parece-me que era um navio clandestino que ia para o Japão... Todos se salvaram, menos uma mulher... Mas vamos falar de você ! Por que demorou tanto para vir aqui ?"

"Não queria retornar, para ser mais exato. Mas acabei aceitando o convite. Por falar nisso, onde está o garoto ?"

"Está morando na sua antiga casa. Deve estar chegando." – Ambos ouviram batidas na porta – "Viu só ? Deve ser o pequeno !"

Catarina correu até a porta, com Yakoff nos braços, e a abriu. Um garotinho, vestindo apenas uma camisa verde, calça preta e polainas(4) entrou. Cumprimentou-a educadamente, deu um beijo no bebê e rumou até Kamus. Este o observava como se o avaliasse.

"Boa tarde, mestre Kamus. Chamo-me Isaac." – o garoto fez uma reverência.

"Bonsoir, Isaac." – Kamus deu um sorriso – "Pelo seu sotaque, você não é russo."

"Não sou, mestre Kamus. Sou finlandês."

"E está aqui há quase um mês... Foi bom, assim você pôde se adaptar ao clima, como posso ver pelas suas roupas."

"Não foi nenhum problema. Eu vivia no extremo norte da Finlândia, onde o clima é muito parecido com o daqui."

"Parfait !" – Kamus deu outro sorriso – Começaremos amanhã, sim ?"

"Tudo bem. O senhor fala de uma maneira engraçada."

Kamus deu uma risada.

"Sou francês e nunca perdi o costume... Quem sabe esta não seja a hora ? Vamos para casa ?"

"Sim !"

"Merci, Catarina. Qualquer coisa, pode me chamar."

"Tudo bem, Kamyu. Agora vá. Você ainda tem muito o que conversar com Isaac."

Kamus sorriu. Catarina sempre havia sido como uma mãe para ele. Saiu com Isaac de lado,caminhando em direção à casa. Entraram. Kamus notou que não havia um móvel em posição diferente da quedeixara quando partiu. Notou, enfim, que sentia saudades. Saudades de um tempo onde sua única preocupação eram os treinos que seu mestre lhe aplicava – tempo onde o amor e Amelie ainda não haviam entrado em sua vida. Tirou seu casaco e se sentou. Indicou para que Isaac fizesse o mesmo.

"Então, Isaac, por que você quer se tornar um cavaleiro ?"

"Quero me tornar um cavaleiro para lutar pela justiça, pelo amor. Quero proteger a deusa Athena."

"Ótimo, Isaac. Agora vamos dormir, amanhã teremos um longo dia pela frente."

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Kamus andava com Isaac ao redor do vilarejo. Fazia sol, mas a temperatura era extremamente baixa. Chegaram a um local bastante aberto.

"Isaac, quando o inverno chega, o mar da Sibéria se congela. Formam-se imensas barreiras de gelo, de dezenas de metros. Um cavaleiro tem a força necessária para destruir estas barreiras."

"Mestre, um cavaleiro também conseguiria suportar a temperatura da água ?"

"Sim,quando você setorna um cavaleiro,desenvolve uma resistência a temperaturas mais baixas. Mas não aconselharia que desse um mergulho nestas águas gélidas quando tiver força para conseguir quebrar a barreira de gelo."

"Por quê ?"

"Há um certo ponto do mar da Sibéria onde a corrente marinha muda abruptamente. Caso você seja apanhado por esta correnteza, duvido muito que terá força suficiente para vencê-la." – Kamus recomeçou a andar e Isaac o acompanhou.

"Mais adiante está a parede de gelo eterno. Ela nunca derrete, Isaac. Mas, se você for verdadeiramente um cavaleiro,conseguirá quebrá-la. Meu treinamento é extremamente rígido, Isaac. E eu quero que você me prove ser capaz de quebrar aquela parede para conseguir sua armadura."

"Eu quebrarei aquela parede um dia, mestre Kamus. E vou orgulhar muito o senhor."

Kamus deu um sorriso e bagunçou os cabelos do discípulo.

- # - # -

Kamus estava sentado à mesa, dentro de sua humilde casa. Era madrugada e Isaac dormia profundamente em sua cama. Tinha sua cabeça encostada em seus braços cruzados sobre a mesa. Pensava sobre os acontecimentos de sua vida.

Por mais que tentasse se enganar, sabia que ainda amava Miro. Sim, amava aquele maldito grego que brincara com seus sentimentos. Não conseguia parar de pensar nele, em seus beijos e seus toques. Odiava-se por se ver tão frágil somente ao pensar em uma pessoa que não merecia tamanho amor.

Sonhava com Miro todas as noites desde que chegara a Rússia. Em todos eles, Miro estava lá na manhã seguinte, diferentemente do que acontecera realmente. Em todos, Miro o amava. E, em todos eles, Kamus era feliz. Queria que Athena levasse embora estes sonhos; para ele, assemelhavam-se a pesadelos quenunca corresponderiam a realidade.

Fez, pela milésima vez, a anotação mental de que precisava esquecer Miro. Afinal, o que aquele homem tinha de especial para que mexesse consigo de tal forma ? "Ele é simplesmente o amor da minha vida. Por mais que eu tente negar, por mais que eu enterre este assunto, esta é a verdade. Mas vou provar para mim mesmo que se pode esquecer o amor de sua vida. Principalmente depois que ele te machuca tanto, te estraçalha."

Sim, seu amor estava estraçalhado. O amor é como um vaso de cristal : belíssimo, mas de uma fragilidade tal que o menor dos deslizes pode destruí-lo. Era muito difícil para Kamus acordar todos os dias sem ter Miro ao seu lado. Por mais que tentasse evitar, sempre tinha uma esperança idiota de que tudo aquilo não tivesse passado de um pesadelo e ele fosse acordar com Miro ao seu lado, sorrindo e lhe desejando um bom dia.

Recomeçara a chorar. Pensou que suas lágrimas já tivessem secado, mas se enganara. Pareciam não querer secar jamais. Soluçava freneticamente. A fraca luz vinda da única vela acesa bruxuleava, fazendo sombras fantasmagóricas na parede. Kamus se achava patético por estar daquela forma, mesmo depois de tanto tempo. Quatro longos meses. Seu fio de racionalidade o mandava dormir. Lembrou-se de uma música em francês e começou a cantarolar baixinho. Como aquela música lhe lembrava Miro ! Vencido pelo cansaço, Kamus finalmente adormeceu em cima da mesa.

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"Vamos, Isaac ! Você ainda precisa fazer mais duzentas flexões !" – Kamus gritava com o menino de sete anos.

"Sim, mestre Kamus !" – A voz do menino soava trêmula, mas decidida.

Isaac estava vestindo apenas uma calça leve, fazendo flexões num frio de – 15 ºC. O menino tinha as bochechas vermelhas, assim como o nariz. As palmas das mãos estavam roxas e o menino tremia convulsivamente. Kamus estava sentado num bloco de gelo, observando a tudo e segurando um cobertor.

Kamus deveria reconhecer que, em seis meses, Isaac progredira bastante. O menino tinha um poder e uma garra descomunais e um senso de justiça incrível. Com certeza, Isaac seria um cavaleiro maravilhoso. Quem sabe até não pudesse sucedê-lo com a armadura de ouro de Aquário ?

Continuou observando o meninoque, com um último esforço, completou as duzentas flexões restantes. A criança fez uma cara de alívio e cansaço e desfaleceu. Kamus se aproximou com o cobertor, o envolveu e o levou para casa nos braços. Deitou-o na cama e aumentou o fogo na lareira. Foi até o pequeno fogão e preparou um chocolate quente. Aquilo animaria aquela criança, afinal onde já se viu um garoto recusar chocolate ? Colocou o líquido fumegante numa caneca e se aproximou. O menino ainda tremia. Colocou a mão na testa dele eIsaac abriu os olhos lentamente.

"Tome, Isaac. Vai lhe aquecer." – Kamus estendeu a caneca.

"Chocolate quente !" – um sorriso iluminou o rosto da criança – "Muito obrigado, mestre Kamus !"

Kamus deu um sorriso.

"Mas você precisa se trocar também. Não quero que fique resfriado."

O menino deu um gole grande e se levantou, ainda trêmulo. Foi até o pequeno quarto e vestiu uma roupa seca, voltando em seguida. Sentou-se novamente e, todo feliz e satisfeito, voltou a beber o seu chocolate quente.

Ambos escutaram batidas na porta. Kamus se levantou e abriu. Era Catarina, junto com o pequeno Yakoff de um ano em pé, andando agarrado a perna da mãe que trazia uma panela nas mãos.

"Catarina e Yakoff ! A que devo a honra ?" – Kamus segurou a panela que Catarina trazia.

"Vocês sempre andam treinando, então resolvi trazer o almoço para vocês."

"Muito obrigado, Catarina." – Isaac sorriu, deixando a caneca em cima de uma mesinha de canto.

"Isaac !" – Yakoff deu um sorriso e saiu correndo – ou melhor, cambaleando – em direção ao menino.

"Pequeno Yakoff !" - Isaac colocou o menino nos braços e começou a fazer-lhe carinhos.

Kamus e Catarina conversavam animadamente enquanto colocavam a mesa. Era um almoço praticamente familiar.

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Fazia um ano que Kamus estava na Sibéria. Ele estava sentado numa cadeira em frente a lareira da humilde casa em que morava com Isaac. Não tinha muito sono e acabara por ficar acordado, lendo. "A Divina Comédia", de Dante Alighieri, escritor renascentista Escutou batidas na porta. Estranhou. Levantou-se e foi abrir.

"Senhor Kamus, desculpe-me incomodá-lo a esta hora, mas chegou uma correspondência da Grécia para o senhor." – Um rapaz completamente agasalhado estendia um envelope a Kamus.

"Muito obrigado. Pode ir." – Kamus pegou o envelope e fechou a porta.

Era a primeira carta que Kamus recebia do Santuário desde que partira. Algo lhe dizia que não iria gostar do que leria na tal carta. Rompeu o lacre do Grande Mestre, aproximou-se da luz da lareira e leu para si.

Kamus de Aquário,

Convoco-te para vires à Grécia a fim de que prestes contas do treinamento de seu discípulo Isaac. Assim que a audiência for concluída, poderás voltar à Sibéria para que continues o treinamento do pequeno. Duas passagens – uma de ida e outra de volta – estão em anexo a esta carta.

Grande Mestre.

Kamus fez uma careta. Não pretendia voltar tão cedo ao Santuário – aquele ano passara voando para si. Vasculhou o envelope e achou as passagens. Olhou a data e a hora do vôo. "O Grande Mestre enlouqueceu ! Estas passagens são para amanhã de manhã, logo cedo ! Ele deveria ter me avisado antes ! Pelo menos eu ficarei dois dias por lá... Quanto menos tempo naquela Grécia infernal, melhor.". Kamus correu até o quarto e entrou cuidadosamente. Isaac dormia como um anjo.

Foi até o guarda-roupa e tirou uma mala pequena. Colocou algumas roupas e objetos de uso pessoal. Pegou um pedaço de papel e escreveu um bilhete a Isaac, contando o que acontecera. Pela hora do vôo, ele sairia bem antes do garoto acordar. Arrumou um despertador simples, que tinha trazido da Grécia, e foi dormir no sofá. Por mais rigoroso que fosse, Isaac não merecia acordar tão cedo.

Teve uma noite de sono inquieta. Sonhava com ele. Fazia tempos que não sonhava com aquela pessoa. Acordou no meio da madrugada e desistiu de dormir. Não queria voltar a ter estes sonhos. Tinha certeza de que o pior já passara, que não amava mais aquele homem. Saiu do casebre e ficou sentado, admirando a paisagem congelada.

Ouviu o despertador tocar de dentro de casa. Entrou e o desligou. Verificou se Isaac continuava a dormir. Ressonava como um anjinho. Beijou-lhe a testa – seu instinto paternal até então desconhecido despertara – e saiu com suas malas. Foi até a casa de Catarina e encontrou a mulher acordada cuidando de um Yakoff chorão.

"Catarina ?" – Kamus falou enquanto entrava na casa.

"Ah, Kamyu ! O que aconteceu para você vir aqui tão cedo ?" – a mulher tentava embalar Yakoff, dando-lhe uma mamadeira.

"Recebi uma convocação e precisarei ir a Grécia agora pela manhã. Não tive tempo de avisar Isaac, mas deixei-lhe um bilhete, pedindo para te procurar. Volto em dois dias."

"Não se preocupe, eu segurarei as pontas por aqui."

"Muito obrigado. Preciso ir."

Kamus já ia saindo pela porta quando ouviu Catarina falar.

" Ainda não sei como vocês agüentam vestir tão poucas roupas neste frio infernal..."

Deu uma risada, fechou a porta e se foi. Refez o seu percurso de um ano atrás e pegou o vôo com destino a Athenas. Aquela viagem era por demais cansativa ! E tanto tempo disponível era um prato cheio para o aparecimento de pensamentos que Kamus preferia esquecer.

Kamus chegou ao Santuário perto do fim da tarde. Tudo continuava igual a um ano atrás. O mesmo calor insuportável, o mesmo ambiente. Vestiu sua armadura, subiu pela casa de Áries através da passagem secreta, deixou suas malas em Aquário e seguiu até Peixes. Não queria cruzar com ninguém. Apresentou-se perante os guardas e foi levado ao Grande Mestre, que estava sentado em seu trono.

"Seja bem vindo, Kamus." – a voz do Grande Mestre soou grave e rouca.

"Muito obrigado, Grande Mestre." – Kamus fez uma reverência.

"Como vai o treinamento de teu discípulo, Isaac ?"

"O garoto é muito hábil. Possui um grande senso de justiça e deseja lutar por Athena. Em um ano, posso dizer que seu progresso foi considerável."

"Pelo que me dizes, este garoto tem os requisitos necessários para se tornar um cavaleiro. Mas tenho uma notícia a te dar."

"Sim ?" –Kamus fez uma cara interrogativa.

"Dentro de uma semana chegará a Sibéria uma criança que também almeja a armadura de Cisne."

"Outro discípulo ? Mas e Isaac ?"

"Tu treinarás ambos. Aquele que for o mais qualificado receberá a armadura de Cisne com as bênçãos do Santuário."

"Quem é o novo garoto ?"

"Uma criança russa enviada por um senhor japonês chamado Mitsumasa Kido. Seja rigoroso com este menino. Mitsumasa Kido está enviando cem garotos para serem treinados em diversas partes do mundo. Não sei o que pretende se conseguir reunir tantas armaduras consigo."

"Cem crianças !" – Kamus ficou perplexo – "Mas qual é o nome do garoto ?"

"Hyoga. Um comunicado me foi enviado e ele deverá chegar de navio no mar da Sibéria, aproveitando a estação do verão."

"Shaka não tem nenhuma opinião a respeito deste Mitsumasa Kido ?"

"Não. Isso é muito estranho, mas ainda não aconteceu nada de anormal. Qualquer coisa, comunica-me imediatamente."

"Sim, Grande Mestre."

"Isso é tudo. Sei que pode parecer pouco, mas quero que venhas regularmente à Grécia. Pode se retirar e não precisas mais vir aqui até sua partida."

"Com sua licença." – Kamus fez uma nova reverência e saiu.

Ainda não acreditava que o Grande Mestre o tinha mobilizado às pressas para dizer coisas sem importância ! Bufando, retornou a Aquário, onde sua serva loira tinha lhe preparado um banquete de boas vindas.

"Esta comida está com uma cara muito boa." – Kamus deu um leve sorriso e se sentou.

"Por quanto tempo vai ficar aqui, Kamus-sama ?"

"Só até amanhã. Como estão as coisas por aqui ?"

"Está tudo em ordem, do jeito que o senhor pediu."

"Pois bem, que continue assim."

Kamus terminou sua refeição e foi para a parte de trás do templo. Sentou-se à sombra de sua árvore e ficou olhando o túmulo de Althea, enquanto as cores vivas do ocaso pintavam o céu grego. Que saudades ele tinha daquela menina ! De seus cuidados e atenções... Mas tudo se fora, como tudo irá um dia. Aproximou-se do túmulo e depositou-lhe uma flor.

"Althea, minha querida... Apesar de estar enterrada nos fundos do templo de Aquário, não irei mais vê-la. Há certas coisas que devem ficar para trás e não devo ficar perdido em lembranças, vivendo delas. Mas apenas quero que saiba que jamais te esquecerei. Adeus."

Deu um beijo na lápide, se levantou e saiu. Seguiu pela passagem secreta novamente até chegar em Virgem. Queria falar com Shaka, não sabia exatamente o motivo. Camuflou seu cosmo e entrou no templo. Viu Shaka meditando em posição de lótus e sorriu consigo. "Há coisas que realmente não mudam...". Shaka franziu as sobrancelhas.

"Kamus ?"

"Sim, Shaka. Sou eu." – Kamus se revelou e ficou de frente ao indiano – Sempre adivinhando as coisas...

"Eu não acredito ! Voltou de vez ?"

"Não. Vim apenas prestar contas. Volto amanhã à tarde."

Shaka se levantou e rumou até Kamus.

"Venha, tome um chá comigo. Quero que me conte a respeito de seu discípulo !"

"Sempre querendo saber de tudo..."

Shaka ignorou o comentário e seguiu até a sala de jantar, onde Lótus estava servindo um chá para o mestre. Assim que viu que Shaka tinha companhia, preparou xícara e prato para Kamus também.

"Vamos, me conte. Como estão as coisas na Sibéria ?"

"Estão bem, Shaka. Meu discípulo é bastante competente. Só que eu vou receber outro garoto."

"Da Fundação Kido, certo ?" – Shaka sorveu um gole de chá.

"Exato. Você não tem nenhum palpite a respeito deste tal Mitsumasa Kido ?"

"Não... Mas deve haver algum motivo muito forte para alguém querer reunir tantas armaduras consigo, não acha ? Você parou de usar expressões em francês... Estava acostumado..."

"Não tinha sentido em misturar idiomas." – Kamus bebeu o chá levemente adocicado.

"Kamus, por que você foi embora sem avisar a ninguém ? Apenas me deixou um breve bilhete !"

"Shaka, não quero discutir este assunto."

"Bem, se esta é a sua reação, isso só deve ter um nome..."

"Por favor, se for continuar, vou embora."

"Tudo bem... Não quer aproveitar que está aqui e treinar um pouco ? Na Sibéria não há nenhum cavaleiro de ouro para ajudá-lo."

"Não é uma má idéia." – Kamus repousou a xícara na mesa – "Vamos ?"

Shaka deu um sorriso. Os dois foram até um descampado próximo ao templo de Virgem e começaram a treinar. Apesar do tempo em que ficara parado, as habilidades de luta corporal de Kamus não diminuíram. Treinaram exaustivamente noite adentro até que Kamus fez um sinal para que eles parassem.

"Já está muito tarde, Shaka. Preciso ir agora." – Kamus enchia os pulmões de ar com força.

"Você ainda vai me visitar antes de partir ?"

"Acho difícil."

"Então tenha uma boa viagem, meu amigo."

"Muito obrigado." – Kamus deu um ligeiro sorriso e partiu.

Estava muito cansado. Fazia muito tempo que não treinava deste jeito e se sentia feliz por fazê-lo novamente. Subia distraidamente as escadarias quando percebeu que se encontrava dentro do templo de Escorpião. O local estava mergulhado na penumbra. Olhou para a porta do quarto de Miro e se lembrou daquele dia. O dia que queria esquecer. Ouviu passos e se apressou. Tinha de sair dali.

Miro estava quieto em seu quarto. Olhava para o teto, entediado. Tinha saudades de Kamus. Ah, e como tinha ! Fazia um ano que ele não encontrava aquele francês maluco. O seu francês maluco. Mas não queria esquecê-lo; queria fazer com que ele o perdoasse e que pudessem ser felizes. Juntos, porque separados a felicidade soava como algo irreal. Estava quase adormecendo quando sentiu uma presença em sua sala. Não era uma presença qualquer; era aquela presença. Seu coração deu um salto, assim como ele próprio. E, com passos apressados, chegou até a sala.

A fraca luminosidade que saía de seu quarto era suficiente para divisar e reconhecer aquela figura que abandonava seu templo de maneira furtiva. Aquele farfalhar de cabelos magnificamente lisos, aquele cheiro, aquele porte altivo... Só poderia serKamus. Miro correu e conseguiu segurar o braço do homem.

"Kamus ?" – Miro mais afirmou que perguntou.

Kamus se virou e fitou Miro. Tinha um semblante completamente impassível, bem diferente dos saltos que seu coração dava. Miro não conseguiu se conter e foi de encontro a Kamus, para abraçá-lo. Porém, Kamus se desviou, deixando que Miro abraçasse o nada.

"Por quê ? Por que você foi embora de repente, Kamus ?" – Miro olhou Kamus tristemente.

"Era necessário. Fui convocado para treinar um menino na Sibéria e..."

"Você já havia sido convocado antes !" – Miro falou alto, interrompendo-o – "Você não tinha aceitado, não é mesmo ?"

"Ora, vejo que alguém aqui anda espionando a vida dos outros ! Minhas decisões não lhe dizem respeito, meu caro."

Miro estranhou as palavras usadas por Kamus. Ele nunca o havia chamado de 'meu caro' antes.

"Kamus, você está mudado ! Seu jeito de falar..."

"Não, eu não mudei, Miro. Você apenas está conhecendo um lado meu. Ou melhor, o meu verdadeiro eu."

"Eu sei que este não é o seu verdadeiro eu ! Você não é frio desta forma, você é uma pessoa amável comigo ! Kamus, o que aconteceu com você ?"

"Eu já disse que não houve nada." – A voz de Kamus soou sem emoção – "Agora preciso ir, não tenho tempo a perder com besteiras."

Kamus se virou e continuou a andar calmamente. Miro, em lágrimas, ajoelhou-se no chão, murmurando baixinho, mas num tom perfeitamente audível para o francês :

"Kamus... Eu sei que você está aí dentro deste homem cruel que está na minha frente... Não tenha medo de mim, não quero te ferir... Apenas venha aqui com seu sotaque francês adorável e diga que me perdoa... Diga que ainda sou, pelo menos, seu amigo..."

Kamus voltou a subir as escadarias sem ao menos olhar para trás. Miro estava completamente transtornado. Ansiara tanto por aquele momento... Passara noites em claro pensando em como seria o seu reencontro com Kamus para que tudo acontecesse daquele modo ! Sabia que a conversa iria ser difícil; o problema é que aquilo não tinha sido sequer uma conversa.

Sabia que não adiantaria subir atrás do francês. Estava muito confuso, não esperava que fosse rever Kamus naquele dia. Tinha medo de esperar para depois e ver que Kamus já havia partido novamente. Mas tinha medo mesmo era de que Kamus o tivesse esquecido. O jeito do amigo estava completamente diferente daquele homem doce por quem se apaixonara. Será que devia esquecê-lo ? Ou deveria lutar por aquele amor até o fim ?

Continua...

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N/A : Acho que todos devem ter notado uma quebra no ritmo da fic. As cenas, antes longas, tornaram-se mais curtas. Pretendo recriar o tempo de Kamus na Sibéria, com base no mangá, adicionando fatos apenas sugeridos e criando as minhas cenas. A partir do próximo capítulo, algumas cenas serão originais, tiradas do mangá, para dar mais realismo a fic. Esta última cena entre o Miro e Kamus foi particularmente difícil de ser escrita; não queria parecer um tanto piegas nas falas do Miro, mas acho que não obtive tanto sucesso.

Quero dizer também que fiquei imensamente feliz com as reviews que recebi ! Fiquei muito feliz e orgulhosa quando descobri que algumas pessoas choraram ao ler o capítulo anterior – eu sou do tipo que não gosta muito do que escreve. Meus agradecimentos especiais a Anna-Malfoy, Anne, Caliope, Celly (o Shura ficou muy guapo, isso sim !), hakesh-chan, Ilia (eu não estava muito certa quanto a colocar o flashback na cena da briga, mas que bom que gostou !), Mikage-sama (o problema do mural é com este site maluco, que anda fazendo umas injustiças), Perséfone-san (você não foi a última desta vez !) e shinomu. Mil beijinhos e até a próxima !

Notas :

(1) No mangá, Hyoga diz que o nome do vilarejo onde ele mora chama-se Kohoutek. Ao que me parece, não existe tal vila de fato – pesquisei horas a fio e não encontrei nada. Porém uma curiosidade : Kohoutek é o nome de um cometa que passou pelo sol entre o fim de 1973 e o começo de 1974 – foi assim batizado em homenagem ao seu descobridor.

(2) Segundo o próprio Hyoga, pó de diamante é a denominação que os nativos do extremo leste da Sibéria davam a uma nevasca fina e de beleza maravilhosa, porém extremamente mortal. Daí o nome do golpe dele.

(3) Yakoff é aquele menino que mora no vilarejo, amigo do Hyoga. No Brasil, traduziram o nome do coitado para Jacó...

(4) Polainas são aquelas duas "peles" que o Hyoga usa por cima da calça. Na verdade, polainas não são peles, mas um acessório que se utiliza por cima da calça – as do Hyoga é que eram feitas de peles.