Olhos Azuis

Eu acordo todas as noites suando frio. Sempre, sempre, sempre o mesmo pesadelo me faz acordar tremendo de medo para uma realidade ainda mais pavorosa.

Estou novamente no alto da torre de Astronomia apontando a varinha para Dumbledore, e ele está novamente falando comigo, então eu olho para baixo e estou de pé em um pequeno circulo de luz, a torre não existe mais, só um profundo e escuro abismo, sei que há algo terrível lá: um Monstro, um Demônio em forma de serpente.

Encaro o diretor e não desvio o olhar dos olhos de Dumbledore. O olhar dele corta minha alma, a expõe e desnuda. Mesmo assim eu não desvio meus olhos, no sonho eu sei que se o fizer o pequeno retalho de luz vai se extinguir, e eu vou cair de vez na boca do Demônio. Eu posso ouvir o Demônio sussurrando meu nome, posso sentir seu toque viscoso e gelado nas minhas pernas, mas no sonho ele ainda não me tomou totalmente.

Eu nunca lembro o que Dumbledore fala nesse sonho, mas me lembro que eu acredito nele, que ele não fez com que me sentisse um verme sujo, mas alguém por quem vale a pena lutar. E eu abaixo minha varinha, como fiz naquela noite. Então por um átimo eu não sinto o toque do Demônio, eu não ouço sua voz e sinto que posso sorrir. Dumbledore também pode sorrir. Mas antes que o sorriso chegue aos meus lábios eu ouço passos, uivos e uma luz verde atinge Dumbledore e apaga a luz azulada dos olhos dele. Os olhos azuis que me mantinham vivo se fecham, a réstia de luz na qual estou se apaga e eu caio na goela do Demônio.

É aí que eu acordo, sendo triturado pelos dentes do Demônio.

Não é preciso ser um gênio para saber o que esse sonho significa. Até a bêbada que dá aulas de Adivinhação em Hogwarts ia conseguir entender.

Nisso que chamam realidade a história é a mesma. Eu morri junto com Dumbledore.

Morri, porque viver na coleira do Lord-das-Trevas não é viver.

Dumbledore viu realmente que eu não ia matá-lo, seus olhos estavam nos meus, ele viu. Nesse reconhecimento eu me senti vivo pela última vez.

Depois que os tremores do pesadelo se abrandam eu me entrego à inútil fantasia de que ninguém chegou naquela torre, que Dumbledore me escondeu em algum lugar junto com minha mãe. Que eu não estou preso ao Demônio que me devora a alma, eu estou livre porque Dumbledore conseguiu matar o Demônio.

A fantasia se vai e eu me vejo acorrentado ao Demônio.

Faz dois messes que eu estive no alto daquela torre, e já perdi a contas dos esconderijos para onde Snape me arrastou. Alguns têm algum conforto, mas a maioria é tão miserável que dormimos em colchões sujos no chão.

Snape sai muitas vezes em horas estranhas. Quando volta está mais fechado do que o normal.

Ele fala pouco, quase que só para me fazer comer alguma coisa. Está sendo fiel ao pedido da minha mãe.

Eu não faço nada. Ficou deitado no lugar que ele designa para eu dormir, minha mente divaga entre fantasias em que vejo o Lord morrer e outras em que é ele que me mata. É mais fácil acreditar nessas.

Nunca gostei de Dumbledore, mas o maldito me envolveu de alguma forma naquela noite. Me deu esperança. Agora que ele se foi, e eu sinto minha esperança morta junto com ele. Quem vai matar o Demônio? O Santo Potter?

Snape me estende um pedaço de pão com alguma coisa dentro e um copo de chá. Não adianta dizer que não quero, ele me forçaria a comer, e nem vale mesmo a pena discutir.

Mastigo o pão sem gosto e olho em volta pela primeira vez desde que chegamos aqui, há algumas horas.

É o mais miserável dos esconderijos. Até agora Snape arrumara lugares com pelo menos dois buracos que poderiam ser chamados de quartos, uma cozinha, um banheiro e às vezes até mesmo uma sala. Nesse muquifo tudo que tem é uma grelha no canto, uma porta bamba que dá para um banheiro podre, e dois colchões velhos no chão.

Não há cobertas, e, apesar do verão, faz um frio mortal aqui dentro.

Deixo o prato e o copo em um canto qualquer e me deito no resto de colchão que Snape diz ser minha cama aqui.

Dormindo talvez eu escape desse pesadelo que é minha vida na coleira do Demônio e vigiado por seu mais fiel escravo.

Talvez por não conseguir dormir direito eu tenho sono todo o tempo, e mergulho novamente no meu outro pesadelo.

De alguma forma eu prefiro o pesadelo da torre, só pelo breve instante em que eu posso sorrir olhando nos olhos de Dumbledore.

Mas novamente os uivos e a luz verde me derrubam no abismo. Dessa vez, no entanto, sou acordado por Snape antes que o Demônio me engula.

Eu tremo de frio, medo e susto, e não consigo falar.

Snape me olha e sem pedir licença abre as portas da minha mente. Eu vinha ocultando meus pesadelos dele, mas agora ele sabe o que eu penso do Lord que ele serve. A quem eu jurei servir também.

Eu imagino que vou ser enfim morto, mas Snape é imprevisível. Eu nunca pude entendê-lo realmente.

Ele se deita ao meu lado, me puxa para seu peito, e nos cobre com sua capa. Posso ouvir as batidas do coração dele em um ritmo normal e calmo, como se não houvesse nada de errado no mundo.

Aos poucos meu coração se acalma também, sem que eu queira sincroniza com o dele. O braço ao meu redor me faz sentir seguro e relaxo.

Acho que essa noite eu vou conseguir dormir direito.