"Ninguém saia para o campo, nem ande pela estrada,
porque a espada inimiga espalha terror por todos os lados.
Vista-se de luto, capital do meu povo,
role no chão, ponha-se a chorar como pela morte de um filho único;
Faça uma lamentação amarga,
porque chega de repente aquele que nos vai destruir." (Jr 6,25-26)
A relva estava coberta por um fino tapete branco; os ramos das árvores, molhados e cobertos de neve que caíra pela madrugada, pendiam baixos. O sol se erguia ao fundo, a planície terminava onde começava o azul celeste numa linda manhã de inverno.
Uma semana depois do acidente, o grande e polido caixão em curupixa coberto por uma imensa bandeira de Hogwarts, estava flanqueado de um lado por Molly e seus outros seis filhos e do outro lado por Harry, Hermione, Lupin, Tonks, Moody, Dumbledore e McGonagall. Na cabeceira encontrava-se uma antiga cruz celta que pendia uma grande coroa de flores douradas e vermelhas. Bruxos e bruxas se amontoavam ao redor, formando um circulo negro.
Arthur Weasley, um pai desolado e inconformado se aproximou lentamente, preparando-se para pronunciar o que seriam as últimas palavras ao seu amado filho.
- A um homem que Rony não conheceu... O homem que ele viria a ser... um jovem bonito, de olhos claros, com 25 anos – ele parou.
"Eu posso vê-lo..." respirou fundo, tentando só Deus sabe de onde encontrar forças.
"Ele é o tipo de cara que atrai os jovens porque tem caráter e integridade... Ele é o tipo de cara que atrai as mulheres porque tem ternura, respeito, lealdade e coragem. As mulheres gostam disso e é isso que faz dele um ótimo marido." Artur fez uma pausa, enquanto engolia a seco.
"Posso vê-lo como pai, aí ele se supera... quando ele olha nos olhos do filho, o menino sabe que está realmente olhando para ele, e vê quem ele é... essa criança sabe que ele é uma pessoa fantástica... um sujeito incrível que eu nunca vou conhecer..."
Embora Harry ouvisse as palavras ditas pelo pai do seu melhor amigo, ele não as decifrava... sentia-se como se só o seu corpo estivesse presente, ao passo que a sua alma vagava por algum lugar no desconhecido. A razão recuando diante do esforço de compreender ou explicar; lágrimas e palavras não podiam apagar sua memória.
Pouco falou na última semana; procurava manter um silêncio que talvez o ajudasse a aceitar o que acontecera. As outras pessoas tentavam se aproximar e conversar com ele, e ficavam impressionados com sua calma inabalável, mas ninguém realmente sabia que ele mantinha-se assim porque estar diante de tal horror lhe preservava a sanidade.
Ele aceitou as condolências com uma cortesia grave, respondeu a todas as perguntas com uma precisão impassível. Não conseguiu chorar, demonstrar raiva, fazer qualquer censura. O que sentia era maior do que qualquer ato que ele poderia praticar, então tudo que ele pôde fazer era ocultar seu desespero sob uma máscara pálida, séria a tal ponto que até mesmo Hermione sentia-se excluída de sua confiança.
Arthur Weasley continuou com palavras bonitas e emocionadas referindo-se ao filho, citando as suas qualidades e também alguns defeitos. Enquanto o fazia, lágrimas rolavam pelo seu rosto. Terminou o discurso em tom de revolta, pela morte prematura e trágica. As pessoas aplaudiram com discrição e ele fez um sinal para baixarem o caixão do filho.
Lentamente as pessoas deixaram o local, até que por fim permanecessem apenas duas. Harry não tomou conhecimento de que era uma das únicas pessoas a terem ficado ali. Ele e Lupin. O professor se aproximou com cautela e colocou a mão no ombro dele, falando algo sobre tomarem um chá.
Harry o acompanhou de volta ao castelo. Andava cabisbaixo, mirando o chão, sem prestar muita atenção onde estava indo. Pararam em frente a uma porta de madeira, quando já estavam dentro da escola. Lupin a abriu e permitiu que ele entrasse primeiro na sala de aula. Enquanto o professor preparava o chá, Harry sentou-se em uma das carteiras vazias.
– Como você está se sentindo? – perguntou o professor ao largar uma xícara de chá em frente ao garoto.
Harry não respondeu essa pergunta de tão óbvia resposta. É claro que ele não estava bem, então porquê mentir e dizer o contrário? E porquê tentar dizer a verdade, se toda a raiva, remorso e culpa o impediam de colocar em palavras tudo o que estava sentindo?
Lupin sentou-se na carteira em frente a ele. Observava Harry, que por sua vez, mantinha sua atenção concentrada na xícara em suas mãos.
– Eu não quero te forçar a nada, Harry, mas queria dizer que estou aqui se você precisar de alguma coisa, se quiser conversar... às vezes isso ajuda, acredite.
– Você conversou com alguém quando meus pais morreram? – perguntou Harry subitamente, depois de engolir um grande gole de chá quente.
– Dumbledore. – respondeu Lupin, respirando fundo.
Lupin poucas vezes conversara com Rony, mas o funeral daquela manhã lhe trouxera lembranças e o fizera reviver uma das piores fases de sua vida. Harry percebeu isso na voz pesarosa de Lupin e desejou não estar naquela situação; não queria que ninguém mais sofresse pelo que ele estava passando.
Desejou que Lupin ficasse em silêncio, que o deixasse sozinho para que pudesse pensar, para analisar cada pensamento e ordenar cada boa lembrança que percorria sua mente. No entanto, o professor continuou ali, falando algo sobre dor e culpa, algumas das únicas palavras captadas pelo cérebro quase entorpecido de Harry.
O chá já estava frio quando Harry bebeu o último gole e tomou consciência de que alguém batera à porta. Lupin parara de falar e levantara-se para atender. Harry largara a xícara na mesa, mas não se interessara nenhum pouco pelo fato de que Dumbledore acabara de entrar na sala.
– Você vai ficar aqui, Harry? – perguntou Dumbledore.
– Ahn? Não... – murmurou ele, levantando-se. – Eu vou subir para o Salão Comunal.
– Tudo bem. Então, acredito que nós encontraremos no almoço? – perguntou Lupin, sorrindo.
– É. – respondeu Harry, saíndo da sala.
Os corredores de Hogwarts estavam frios e silencioso naquele dia; a maioria dos alunos fora passar as férias em casa e o resto preferira ficar no Salão Comunal de suas casas. Harry, entretanto, não sentia vontade alguma de ir à torre leste, preferiu ficar vagando pela escola.
Após subir sem rumo algumas escadas, Harry encontrou-se no andar mais alto do castelo. Abrindo uma porta que estava no final do corredor teve acesso a um dos vários terraços da escola. Deixando a porta fechar-se sozinha, ele aproximou-se das seteiras que delimitavam o lugar, sem importar-se com a gélida brisa que soprava. Observou a belíssima paisagem e seu olhar concentrou-se em um lugar específico no terreno da escola.
Estivera lá aquela manhã e a o sentimento de culpa e arrependimento que surgira naquele momento se intensificava a cada instante. Sabia que não devia ter saído com Lupin, que devia ter ficado mais um tempo sozinho. Sabia que ainda precisaria voltar lá naquele dia, seu coração lhe dizia isso.
Cansado de ficar de pé, sentou-se no chão, encostado na mureta. Sua mente procurando uma desculpa para que ele não sentisse a culpa que carregava, procurando uma justificativa para que tal tragédia tivesse acontecido.
Harry não se importou de perder o almoço e tão pouco de perder a tarde inteira. Só ficou ali, parado, pensando. Quando a noite começou a cair ele levantou-se e deixou o terraço.
Ele entrou no cemitério vazio e aproximou-se silenciosamente da cruz celta. Aos pés dela, encontrava-se uma lápide feita de obsidiana negra. Finalmente ele estava sozinho ali, como quisera estar durante todo aquele dia.
Harry tentou dizer algo, mas sua voz ficava presa na garganta... levantou os olhos para o estrelado céu e engoliu a seco. Com uma voz rouca e suave, ele conseguiu juntar as palavras que queria pronunciar desde que tudo isso começara.
– Foi a tua vez, não foi, Rony? Pelo menos é o que todos dizem pra mim...
Harry ajoelhou-se na grama molhada pelo sereno.
"Como eu queria que isso fosse verdade, porque pelo menos assim eu entenderia... entenderia porque isso tem que acontecer. Eu queria entender, porque no final as pessoas se vão e eu não posso fazer nada quanto a isso... porque vocês vão embora e eu fico. Não devia ser assim, as pessoas não deveriam ter que passar por isso."
"Hoje o dia estava tão bonito, até parece um daqueles dias em que nós três nos reuníamos à beira do lago pra falar bobagem," continuou Harry, com um pequeno sorriso surgindo quando essa lembrança lhe veio à mente.
"E nós nos reunimos de novo hoje," continuou Harry, duvidando que conseguiria segurar suas emoções. "Você, eu, Hermione... e, no entanto, não há motivos para perdermos tempo... coisas mais importantes estão acontecendo lá fora..."
"Estamos em guerra," Harry murmurou para si mesmo, imaginando que, se o resto do mundo não ouvisse, quem sabe isso não se tornasse verdade. "Mas disso você também já sabe, não é? Vivemos os últimos dois anos assim..."
"Os últimos dois anos..." repetiu para si mesmo, respirando fundo antes de continuar. "Tudo passou tão rápido. Eu lembro de cada dia do primeiro ano que passamos aqui. Lembro da primeira aula de transfiguração, que chegamos atrasados porque nos perdemos no castelo..."
"Você era meu único amigo naquela época. Eu não devo ter dito isso, mas a verdade é que você foi meu primeiro amigo."
"O fato de saber que você sacrificaria a vida para me ajudar a impedir que Voldemort conseguisse a Pedra Filosofal fez com que eu soubesse que poderia enfrentá-lo. Quando você me olhou decidido e mandou que eu desse o xeque-mate aquele dia, eu soube que precisava enfrentar as coisas com a mesma coragem que você sempre possuiu."
"Passaram-se anos, Rony. Eu tive seis anos para demonstrar o quanto sua amizade era importante para mim e, no entanto, não o fiz. Eu estava tão cego pelos meus problemas, pelo meu orgulho, que nem pude parar um instante e fazer um gesto que demonstrasse tudo o que você significava na minha vida."
"Você foi mais do que um amigo, espero que saiba disso. Você foi meu irmão. Eu não tinha pai, não tinha mãe e ainda assim, eu tinha uma família. Eu não estou falando do Sirius, você sabe disso - até porque o Sirius também se foi. Estou falando de você, do Sr. e da Sra. Weasley, da Gina, dos gêmeos... de todos vocês que me aceitaram mesmo eu sendo um completo estranho que não tinha nem o sangue nem o cabelo ruivo dos Weasley."
"A primeira vez que nos encontramos no Expresso de Hogwarts você achou extraordinário o fato de estar conhecendo o Menino-Que-Sobreviveu, mas, acredite, eu achei ainda mais extraordinário conhecer alguém como você."
"Eu olhava para você e via tudo o que eu queria. Imagine só, você cresceu em uma família e mais, cresceu em uma família bruxa... você não sabe o quanto eu te invejei por isso... você reclamava por ser pobre, mas não sabe que eu daria todo o meu dinheiro se isso pudesse me dar uma família como a sua."
"E então eu descobri que eu não precisava do meu dinheiro para ter uma família como a sua, tudo que eu precisava..." Harry parou de falar por um momento, achando que sua voz não o deixaria continuar. Ficou parado, ouvindo o único som que quebrava o silêncio do lugar: o som de suas próprias lágrimas.
"Tudo que eu precisava era ser quem eu era," continuou Harry depois de um tempo. Sua voz não passando de um fraco murmúrio. "Você me mostrou que as pessoas gostavam de mim pelo que eu era, e não pelo que eu podia fazer ou pelo que eu tinha."
"Tudo isso estava na minha frente o tempo todo, Rony, você me mostrou isso o tempo todo e eu não quis ver... tudo o que eu via era que você era feliz..."
"Que você era feliz quando eu não era," continuou Harry, sem perceber se suas palavras ainda teriam sentido – ou importância.
"Que você sempre tinha tudo que eu sempre quis... você conquistou tudo que eu não consegui conquistar... você conquistou até Hermione..."
Harry deixou seus pensamentos vagarem até a amiga e uma onda de culpa novamente o envolveu. Harry curvou-se até que a cabeça encostasse seus joelhos. Ele não deveria estar pensando essas coisas, como ele podia continuar sentindo inveja do amigo depois de tudo o que Rony fez por ele?
Harry parou de falar, esperando até que sua respiração normalizasse. Tentava se acalmar; porque ainda precisava fazer o que planejara desde aquela manhã.
"Ela é minha amiga, Rony. Sempre foi. Mesmo quando você brigou comigo... quando nós brigamos, no início do quarto ano... e me ocorreu que eu nem pedi desculpas para você. Eu estava tão orgulhoso que não pude nem me aproximar e tentar conversar com você."
"Mas não foi para isso que eu vim hoje. Não quero pedir desculpas, quero pedir perdão." Harry levantou a cabeça, encarando o nome do amigo incrustado na lápide. "Eu preciso pedir perdão, Rony, antes que seja tarde demais, antes que você não possa mais me ouvir."
Escondida nas sombras, Hermione observava Harry conversar com o amigo. Era uma cena incomum, talvez os dois tivessem pensado a mesma coisa. Talvez tudo o que quisessem era se despedir do melhor amigo, dar um último adeus... mas diante da postura impassível de Harry durante todo o tempo, desde o dia da morte de Rony, Hermione ficou surpresa ao ver o melhor amigo daquela forma e sentiu um aperto no peito, uma vontade de conversar com ele, de consolá-lo; mas ela sabia que não conseguiria fazer isso, sabia que nunca seria forte o suficiente para fazer tal coisa.
Desde quando o conhecera, Harry sempre fora um exemplo de fortaleza. Mesmo quando Sirius morreu, ela se surpreendeu com a forma que ele lidou com o sentimento de perda da única família que ele conheceu.
Não chegou perto dele, era um momento que Harry precisava ficar só para tentar entender o porquê de tudo aquilo. Ele precisava mesmo ficar sozinho, talvez por isso ele a mantivera afastada ultimamente. Sim, era isso que ela precisava fazer, dar um tempo para ele, dar mais espaço, coisa que ela não soubera fazer com Rony. Se ela tivesse dado um tempo para ele refletir, se não fosse tão afoita, talvez a briga pudesse ter sido evitada, talvez Rony não tivesse embarcado naquele trem.
A/N: Por enquanto é isso, pessoal, espero que vocês gostem e COMENTEM!!!!
