WOULD ANYONE DARE TO BLAME US?

C.1 - Alucinações

Há dias andavam a rumo incerto com velocidade maior que o habitual. A região era deserta e o sol estava extenuante. O Taiyoukai caminhava a passos rápidos, fisionomia e elegância impassíveis, beleza intangível, quase divina. Ia à frente guiando o grupo com tal altivez que não deixava escapar sinal mínimo de desânimo, cansaço ou calor, indícios de uma fraqueza que abominava.

Acompanhava de perto um youkai de pequeno porte, preocupado em não ficar para trás, enquanto puxava pelo arreio um espécime de dragão de duas cabeças. Ambos jah andavam com certo desânimo e muito suados, mas temerosos demais para reclamar ou questionar o destino que os aguardava.

Mais atrás e um pouco distraída, ia uma jovem humana, que buscava ao redor pequenas distrações que lhe amenizassem as sensações de calor, cansaço e fome, que a cada passo aumentavam, porém em vão: a paisagem desértica em pleno verão não tem muito o que oferecer aos olhos, e logo ela perderia a batalha...

"Ai, que calooor... Hhmmm... Minha barriga 'tá roncando... Meus olhos doem, há horas estamos nesse sol impiedoso... Minha cabeça dói também, e não tem nada por aqui... Nem mesmo um tronco seco... Sesshomaru-samaa... Por que temos que andar tanto? Aonde o senhor nos deseja levar? Que sede...

Nee, Sesshomaru-sama... Mal te posso ver, pfeh... O sol a reluzir em teus prateados cabelos me ofusca os olhos... Mas gosto de ver-te assim... Tão elegante... Tão forte..."

Os olhos de Rin-chan começavam a embaçar e seus passos a retardar, trôpegos. As lágrimas, há anos adormecidas, começavam a surgir para umedecer-lhe os cansados orbes castanhos. Sua respiração pesava cada vez mais, bem como suas pernas, que já a obrigavam a arrastar os chinelos.

"Com o reflexo do sol ficas tão radiante... Combina tanto com tua beleza..."

- Nee... - disse, quase que num sussurro rouco, enquanto as lágrimas iniciavam o percurso que a gravidade lhes impunha, misturando-se com as trilhas de suor já existentes em seu ovalaso rosto. A pequena palavra lhe escapara sem que percebesse, em seus desvarios, chamando a atenção do Lorde das Terras do Oeste, que parou curioso.

" Sesshomaru-sama... Estou tão cansada... Meu Lorde parou? Por quê?"

- Sessho... maru-sama? - estreitou os olhos para tentar vê-lo melhor, sem saber que pronunciara o nome de seu tutor, enquanto as lágrimas, embebidas de suor, respingavam já o kimono que usava. A sanidade lhe fugia enquanto se forçava a seguir aquele que a acolheu.

Ouvindo-a chamar tão sofridamente, voltou-se para sua protegida para enfim perceber-lhe as lágrimas, que lhe fugiram ao olfato já muito acostumado ao cheiro azedo e também salgado do suor de seus seguidores.

"Estás a me olhar? Nossa... Quanto brilho... Estou certamente a sonhar... Por isso estás a me olhar, e posso ver-te tão luminoso... Meu Lorde é um Deus... para mim... em meus sonhos... Mas estou tão cansada... acho que..."

O sorriso que lhe surgira ao rosto em devaneios se perdia, como seu olhar, naquela claridade imensa, dando espaço a uma expressão desanimada, enquanto deixava escapar sua sentença final:

- ... não agüento... mais... - esboçou um último sorriso ao pronunciar a última palavra e perder os sentidos.

Fora essa a primeira vez que a vira reclamar. De um salto a amparou, antes que seu delicado corpo se precipitasse por completo ao chão. Pôde então sentir quão quentes estavam sua face e sua respiração. Apressado em alcançar seu destino e acostumado à resistência da menina, esquecera-se de que era apenas humana, e por isso frágil. Ficou ainda algum tempo parado, a contemplar aquela singela criatura mantida entre seu braço e sua armadura, enquanto pensava palavras de culpa e avaliava a situação dela... Insolação.

- Jaken!

- Sssssssssessshomaru-ssssssama? - Perguntou de um susto o pequeno demônio verde.

- Continue guiando sempre nessa direção. - Disse friamente o Lorde, ajeitando sua protegida no colo.

- Sssssssssim, meu Messssstre! - Assentiu com uma reverência, enquanto o outro ia já longe.

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Enquanto isso, em seus delírios, Rin andava feliz atrás do belo Youkai que a protegia. Olhava-o com olhos cheios, imaginando como seria o toque daqueles fios tão prateados... Certamente bem macios... Ela era ainda criança, devia ter seus oito anos. Parou um instante e colheu das belas flores do jardim que os acompanhava à esquerda, três brancas e duas amarelas. Amarelas, mas de um amarelo mais vivo, brilhante, assim como os olhos de seu protetor. Cheirou-as profundamente e, sorrindo, foi ao encontro de seu Lorde.

- Sesshomaru-sama!

Ele parou e ela correu para alcançá-lo, fechando os olhos ao sentir a brisa passar, parando em sua frente. Ao abrir os olhos, encontrou-os com outro par de tom dourado fitando-a com ternura.

- Rin-chan... - disse ele, com um leve sorriso nos lábios, enquanto abaixava e estendia o braço, convidando-a para um abraço. A brisa soprando-lhes pétalas enquanto seus cabelos cintilavam esvoaçantes.

Por um instante ela parou... nunca o vira assim. Mas logo as preocupações se foram e, fechando os olhos, atirou-se a esse tão esperado abraço. Era quente, muito quente. O vento que começou a soprar no sentido em que viajavam era também quente. Ele a ergueu do chão.

- São flores muito bonitas, minha pequenina. Gostei muito, têm um cheiro formidável. - Ele começou a andar carregando-a sentada em seu braço direito.

Com a proximidade do rosto dele, ela reparou que ele estava diferente... Seu rosto era um pouco mais redondo e sua expressão era tranqüila e suave. Seus lábios pareciam gostar de sorrir e seus olhos eram um pouco maiores. E mais reluzentes. Brilhavam alegremente enquanto a carregava. Então reparou que ele não estava de armadura e nem carregava qualquer tipo de arma na cintura. Suas vestes também eram diferentes: usava uma yukata branca com um bordado dourado, em forma de cachorro, na barra. Então reparou que ele não era tão alto. Como podia ser esse o seu Lorde? Era tão diferente! Um pouco assustada, franziu a testa e tentou se desvencilhar de seu braço, deixando cair o pequeno ramalhete que fizera, e sendo surpreendida pela rapidez do reflexo do jovem que a carregava em pegá-lo com a mão esquerda antes que passasse de sua cintura.

- Opa! O que houve pequena? - indagou, com um olhar preocupado. Mas a garota não viu. Permanecia pasma a olhar para aquele braço esquerdo que nunca vira, que acreditara não existir. Abriu um pouco a boca e o encarou, perplexa. O olhar dele estava agora sério. Não frio, mas sério, e se parecia muito com o olhar que às vezes recebia de seu Mestre quando paravam para acampar. - Estás te sentindo bem? - E seu olhar se tornava mais profundo e doce, enquanto ela lutava para entender o que estava acontecendo. - Estás febril... - Constatou o jovem após encostar o dorso da mão esquerda na testa da garota. Então, com um suave sorriso, devolveu as flores e reclinou a menina nos braços, até estar deitada.

Ela fechou os olhos e segurou as flores, enquanto sentia o calor e o conforto que vinham daquele gesto. Sentia-se segura, protegida naqueles braços que outrora poucas vezes pudera sentir. Lembrou-se da primeira vez em que sentira aquele abraço:

"Sentia muito medo e dor quando fora atacada pelos lobos, mas logo não sentia mais nada além de uma brisa que soprava e um som ao longe seduzindo-a. Mas logo sentiu um corte frio: fora atravessada por uma lâmina fria, que lhe devolveu os sentidos. E então sentia-se cansada, muito cansada. Seu corpo parecia um enorme fardo de arroz. Foi então que sentiu seu pequeno e ferido corpo se afastando do chão e encostando em um corpo quente. Percebeu que alguém a carregara e abriu os olhos para encontrar aqueles belos olhos dourados que visitava diariamente. Sentiu-se imensamente feliz. Por algum motivo sabia que tinha sido ele seu salvador, apesar de não fazer idéia de como ele lhe devolveu a vida. Aquele abraço fora a melhor coisa que já sentira desde a morte de seus pais, então sorriu, antes de adormecer."

Então adormeceu. Acordou numa escuridão total. Era quente e molhado e sentia-se ser apertada, empurrada, enquanto ouvia batidas fortes de tambor. De repente, um clarão a cegou. Estava frio, erguida no ar, enquanto o sentia seco adentrar-lhe os pulmões. Doía muito e chorou o quanto conseguiu. Foi embrulhada em um pano frio e passada para outra pessoa, que a segurou firme nos braços e sibilou até que se acalmasse em seu colo. Sentiu-se protegida, aquecida e abriu os olhos. Viu formarem-se aos poucos duas pepitas de ouro reluzentes numa imensidão de branco. As pepitas se aproximaram, fitando-a, e pode perceber um manto prateado emoldurar aquele rosto pálido onde brilhavam dois sóis. Os lábios rosados em sua frente moveram-se graciosamente, sussurrando palavras que ecoaram em sua mente até serem entendidas:

- Muito prazer, minha pequena Rin. Seja bem vinda a este mundo. - Ao entender as palavras, adormeceu, cansada das fortes experiências que acabara de ter.