Capítulo 02 - O Doce e O Amargo

Sango abre os olhos, seus lábios ainda colados num último suspiro aos de Miroku. Por um segundo, os olhos dele cerrados sobre os dela. Por um segundo, a boca dele confundida à dela. Por um segundo não houve começo nem fim de seu próprio corpo, e seu ar se embriagava ao dele antes de chegar até dentro dela.

E agora? Haveria alguma palavra certa que ela tivesse que falar? Miroku abre os olhos, pouco se afastando. Silêncio. O que devia perguntar? O que devia saber?

Ela só não sabia...

"Arigatou..." (Obrigado) - E ele também não sabia...

"Daijoubu." (Tudo bem) - Ela responde.

A jovem se limita a sorrir, sem jeito. Era quase confortante ver o olhar infantil e desajeitado de Miroku, se paralisando sobre ela, apenas ela e mais nada. As mãos dele deslizam de seu rosto, arriscando correr pelo seu pescoço, enquanto olha firme para Sango.

Sango apenas treme os lábios, num sorriso mais mudo, mais secreto. Mas alguma coisa no olhar dela não se cala, como se gritasse algo tão frio, tão doído... ela mira seus olhos como se fosse uma menina, se deixando ali, calada, ao lado dele. Miroku firma seus dedos em sua pele, mas ela continua quieta. Sango morde os lábios, como uma criança que jura não contar suas travessuras.

Nem os pensamentos intrusos em sua cabeça.

"Por que ele fez isso? Um filho... será que ele sabe que aceitaria seu pedido?... mas não assim..."

Miroku permanece ali, parado, olhando para ela, como se seus próprios dedos não conseguissem sair do lugar, colados à pele dela.

Se eu tentar?... até onde ela vai? Daijoubu... eu a beijei e ela diz que está tudo bem mas... me olha como se... não ficasse feliz...

Sango nota o hesitar de Miroku, perdido em seus próprios pensamentos. Suas bocas se recostam novamente, e Miroku volta a conter o rosto delicado entre suas mãos, como se quisesse arrancar deles uma razão, uma palavra. Mas ela apenas fecha os olhos, os lábios roçando nos dele, as mãos se apoiando em seu peito, brincando, se fechando, apenas quieta.

Ele abre sua boca, gaguejando sem notar quaisquer palavras que ela não consegue entender. Notando o ar que lhe toca desritmado a face, Sango deixa pousar a cabeça junto à de Miroku, esperando que a voz do monge se tornasse um pouco mais compreensível.

Mas é a voz cortante de Shippou que lhe corta os sentidos.

"Sango-chan! Miroku!"

Ela se afasta de Miroku, escapando um leve sorriso.

"Aqui, Shippou!"

A raposinha chega a beira do riacho, encontrando Sango e Miroku já recompostos, a exterminadora abrindo os braços para receber Kirara entre eles.

"A Kagome disse que o Miroku veio te procurar sozinho! Mas ele tava demorando..."

A exterminadora tenta ignorar a vermelhidão certamente estampada em seu rosto, se dirigindo à pequena raposa que olha desconfiado para os dois.

"Sim, Shippou, eu estava dormindo e ele me esperou acordar. Então, Kagome já serviu o café?"

Falando nela, Sango vê a amiga chegar bufando, de tanto correr atrás de Shippou. Ela sorri amarelo, largando os ombros. e todos se colocam à caminho de voltam para o acampamento.

"Ei, Sango-chan..." - Kagome se aproxima dela, desacelerando seu passo. "Desculpe se atrapalhamos alguma coisa, mas Shippou acordou preocupado e..."

Sango solta um leve suspiro. Continua a caminhar, olhando para os outros dois à frente delas, já chegando à clareira onde haviam dormido, e responde:

"Vocês não atrapalharam. Talvez tenha sido até melhor assim."

"Então não aconteceu nada?"

Sango parou, esperando os dois entrarem na clareira do acampamento e se distraírem com o interrogatório de Inu Yasha. Ela olhou nos olhos da amiga, ansiosa e preocupada.

"Miroku me beijou, Kagome-chan."

Kagome explode num sorriso, não contendo em abraçar a amiga, mas quando se separa, nota um olhar meio vago nela.

"Foi ruim, Sango-chan?"

"Não!" - a menina põe a mão na boca, o rosto encharcado de vermelho nas bochechas. "Não, de jeito nenhum...mas... ah, Kagome-chan! Ele..."

"Ele te fez alguma coisa?"

"Não..."

"Então?"

"Ele agradeceu, Kagome-chan. Foi a coisa mais linda que já ouvi de alguém. Mas ao mesmo tempo... eu não sei se ele agradeceu meus sentimentos, ou só o beijo... ou pior..."

"Pior?"

"Talvez ele só queira fazer um filho comigo!"

Kagome procura alguma palavra de conforto, mas não sabe o que dizer. Afinal, o que esperar de Miroku? É claro que ela desconfiava dos sentimentos dele, mas isso não era o bastante.

Enfim, só ele poderia responder...

"Feh, vocês duas! Vão continuar cochichando a manhã toda? Eu quero chegar na aldeia até o almoço!"

Kagome se vira para o hanyou cachorro, com seu olhar mortal e zangado. Homens conseguem ser tão insensíveis!

"Ahhhh... Inu Yasha! SENTA!"

"Arghs, Kagome! Por que você fez isso?"

"Por que você é um grosso!"

Sango ri, inclinando a cabeça sobre o ombro. Já conhecia o velho ritual dos dois. Xingariam-se horas a fio durante a viagem. Mas ao menos sabiam que eram importantes um pro outro. Embora nenhum ainda tenha tido coragem para se declarar, a exterminadora de youkais via muito bem os olhares, os sorrisos, até podia ouvir o coração de cada um batendo ao contrário das palavras que jogavam enquanto discutiam.

Logo o tempo lhes mostraria tudo que tentavam esconder.

Mas e ela e o houshi? E se não houvesse nada mais a ser dito, a ser descoberto? Apenas... Arigatou. Só um beijo de quem acorda sem os pés no chão. Daijoubu. Daijoubu...

Ela caminha mais lenta, sem notar.

"Sango...?"

Miroku se aproxima dela, o mesmo sorriso maroto de sempre estampado nos lábios.

Ela se vira, sem maiores palavras que:

"Sim, houshi-sama?"

Miroku a olha logo ali parada, o cabelo meio solto atrás, seus olhos grandes o interrogando. O que deveria acontecer agora? Não era para se sentir tão mal... mal tocara nela! E sabia que esse não era o problema... Talvez não devesse mais se prolongar naqueles olhos.

O monge se vira, murmurando qualquer resposta para se afastar. Monge. Como podia esperar que uma guerreira tão viva, tão desprendida... tão menina... o que queria que ela lhe dissesse afinal?

Ela só havia aceitado seu beijo.

Sim, era isso o que o doía por dentro. Ela havia aceitado seu beijo. Ela deixou que sua boca lhe tocasse, ainda que isso tivesse depois entristecido seu olhar. Sem motivos. Apenas um beijo sem nenhum destino. E nada mais.

Quando enfim chegam ao vilarejo, Kagome insiste para irem até a feirinha que lá havia, para comprar alguns legumes e frutas frescas. É uma rua até que bastante movimentada, com muitos tecidos e artesanatos. E por isso, muitas mulheres passam, experimentando tecidos, tintas de rosto, adereços de cabelos, perfumes, etc.

Sango se recosta a uma parede de madeira de uma das lojas, observando aquele movimento. Ela não entendia todo aquele alvoroço, afinal o que fazer com tanto pano, com tanta tinta? Mas aquelas mulheres ficavam bonitas, sorriam bonitas, eram bonitas...

Ela se vira e nota uma senhora com uma barraca de lenços. Olha por um longo tempo, até que cria coragem para chegar até a vendedora.

"Olá. Eu...eu... queria comprar uma coisa..."

A vendedora lhe sorri, enquanto dobra alguns panos de costura em uma caixa de madeira.

"E o que você procura, minha jovem?"

"Ah... bem, eu não sei. Eu não costumo comprar esse tipo de coisa, sabe? Pra... bem..."

"Ficar mais bonita?" - a velha senhora sorri, deixando sua caixa de lado e se levanta. "Não que você precise mas, sabe, minha jovem, nos saber bonitas é o que nos torna mais fortes que os homens."

Sango observa aquela senhora com atenção, enquanto ela pega uma caixa de madeira escura atrás da barraca, a pousando sobre a cadeira.

"Humm me deixe ver... Vermelho fica bem em você. E isso é bom, vermelho é cor forte."

Sango abre um largo sorriso. A senhora lhe entrega um lenço vermelho feito de cetim. Sango o segura ao lado do rosto, se olhando no espelho pregado à parede da barraca.

"Eu sou uma caçadora de youkais. É meu dever ser forte..."

"E é seu dever como mulher ficar apaixonada."

Sango engole a seco, deixando até o lenço cair no chão, dando um salto pra trás.

"NANI!" (o quê?)

A vendedora lhe sorri, pegando o lenço no chão e o prendendo ao seu cabelo.

"Vermelho é a cor dos amantes, minha querida. Tome, definitivamente acho que este lhe caiu muito bem. É forte, vibrante mas discreto, como todo coração de caçador..."

Sango olha mais uma vez sua imagem no espelho, o lenço batendo em sua nuca como todo seu vermelho-rubi. Ela paga à velha senhora e agradece pela opinião. Definitivamente gostava de vermelho.

Forte mas discreto... Ela se põe a caminhar pela rua central do vilarejo, a procura de seus amigos. Mas quanto discreto? Às vezes parece que tudo à minha volta ri de mim, de tanto saber!... Será eu que devia...?

Mas antes que seus pensamentos tomassem melhor forma, ela ouve um grito no meio das barracas de legumes. Ela corre pra lá, já com seu bumerangue em mãos. Inútil, pois nem ele seria arma contra aquela visão.

Só mais uma visão.

As moças do vilarejo logo se dispersam, deixando a figura largada meio à praça, com aquela marca pulsando em seu rosto.

"Miroku..."

Ele levanta o rosto para encontrar aquele olhar de novo. Mas não era só mais um olhar. Nunca mais seria. Seus olhos seguem os passos de Sango se aproximando, com aquele peso dentro dos olhos se jogando contra ele. Cadê aquele virar de rosto que ela sempre fazia para lhe esnobar? Cadê os socos em sua cabeça, os gritos, os murmúrios, os suspiros cansados de suas atitudes?

O mesmo olhar depois do beijo... ainda mais pesado, ainda mais silencioso.

Sango olha para o chão, e lhe dando as costas, volta a caminhar.

Em volta, ninguém enxergaria o coração tremido que a discreta caçadora havia deixado lá.