Capítulo 03 – O Grito e o Silêncio

Passos pesados. Vozes pesadas. O teto tão perto de seus olhos, e o chão como se amassando seus pés. Apenas uma casa sem demônios, sem alma, sem desilusões. O canto velho e forçado. A mentira que lhes dava uma cama por uma noite. Agradecimentos inúteis. Sorrisos iludidos.

Mas o chão ainda amassava seus pés.

O cheiro da boa comida oferecida lhe passava como aquelas doces brisas que nunca se percebe. Vozes riam eufóricas, nas passagens tolas de suas vidas. Mau humor, talvez. Silêncio demais.

Nos olhos dela, apenas gritos que ele não queria olhar.

"Você não vai comer isso, Miroku?" – perguntou Shippou, já de olho numa asinha de frango assado.

"Não, estou cansado. Vou me deitar."

Ele se levantou, vagarosamente. Sentia-se excepcionalmente indisposto. A senhora da casa o acompanhou com o olhar sorrindo pra o monge.

"Sim, sim, houshi-sama! O demônio deve ter lhe dado muito trabalho! Merie, leve o monge aos seus aposentos, e lhe ofereça descanso e conforto."

A jovem se levanta num pulo, já se dispondo ao pé da porta.

"Hai, sensei! Por favor, houshi-sama..."

"Não se incomode, obrigado. Eu só quero dormir."

Ele mal nota a bela empregada à sua frente, de olhos verdes e cabelos castanhos macios, ansiosamente postada no recosto da porta. Ele se limitou a tentar uma vez mais encontrar os olhos de Sango. Mas a exterminadora manteve seu olhar firme e compenetrado em seu prato, deixando em vão a última tentativa do monge.

Miroku sequer ouve os últimos apelos de Merie, e segue para seu quarto, que dividiria com Inu Yasha e Shippou.

O que o incomodava tanto afinal? Sango não poderia ficar daquele jeito para sempre com ele... afinal, ela era a criatura mais delicada e gentil que ele já conhecera... era esperta, amiga, carinhosa... seu coração não saberia guardar rancor... não, não saberia... ela não o olharia mais como hoje, não! Amanhã ela estaria sorrindo de novo, com seu jeito mais bonito, mais infantil...

Miroku sorriu, mesmo sem perceber, baixando os olhos contra o futon. Mal entendia o que havia acontecido. Tudo era confuso, um borrão de memória. O jantar era uma piada da qual ele só se recordaria da risada. Tudo que ele via era o silêncio que ela lhe mantinha.

Aquele olhar na praça... no beijo... O que dizia? Por uma vez, ele gostaria de poder ter entendido aqueles gritos mudos. Mas agora já era tarde. E amanhã, com certeza, ela diria.

Sango não o deixaria assim...

Deixaria?

Sango não desviava o olhar, apenas ouvindo o barulho dos passos e das vozes. Ela então mirou os olhos de canto, vendo Merie se sentar, desanimada. Que assanhada! Mas bem que ela deveria ser perfeita ao lado...

E de repente a voz de Kagome lhe atravessou os pensamentos como um zunido.

"Sango-chan... Sango-chan, não culpe o frango!"

"Hein? Hã?"

Sango se virou para a amiga e em seguida para as próprias mãos, soltando o pobre frango quase em farelos. Sentia que explodiria por dentro. E tudo que tocasse, viraria pó.

Ardia os olhos só em pensar na imagem do monge lhe observando, lhe pedindo um olhar, uma desculpa... pelo quê? Será que ele ainda esperava que ela lhe satisfizesse o desejo de um filho, sem qualquer sentimento ou carinho?

Merie e o senhor da casa põem-se a retirar a mesa, pedindo que fiquem à vontade e deixando os amigos a sós.

Kagome é a primeira a cortar o silêncio entre eles.

"Sango-chan, está tudo bem?"

"Claro, Kagome..."

"Feh! Você está mesmo zangada com o Miroku hoje, hein Sango?"

Kagome já ia gritar com o hanyou, por se intrometer nas conversas alheias, mas não precisou. Sango se ajeita, apenas levantando o olhar, mirando o colega.

"Infelizmente Inu Yasha, já não posso dizer que sinto o que quer que seja pelo houshi. "

"Er... Sango..."

"Às vezes o tempo se encarrega de apagar qualquer sentimento. E nem mesmo raiva eu posso ter o prazer de sentir. Deveria pensar nisso também, Inu Yasha."

Sango se levantou, sem se importar com as caras estupefatas que deixara na mesa. Estava se acostumando a não se importar. E isso lhe doía ainda mais. Não queria ser grosseira com seus amigos. Ela lança um olhar de desculpas, sem conseguir dizer palavra. Mas Kagome lhe sorriu de volta, entendendo a amiga.

Sem mais saber como agir consigo mesma, Sango saiu para seu quarto.

Ali, na sala de jantar, um hanyou ainda se virou, preocupado, para uma colegial.

"Kagome... Acha que a Sango tem razão?"

"Quem? Eu?"

"Acha que o tempo apaga tudo, mesmo?"

"Acho que o tempo só apaga o que deve ser apagado. Talvez haja certas coisas que o tempo nunca consiga se desfazer... mas a gente nunca sabe até onde elas vão mudar... ne, Inu Yasha?"

"Feh!"

Inu voltou a cruzar os braços, olhando de canto a porta para o corredor.

A voz da colegial ainda lhe chegou aos ouvidos.

"É bom ver você se preocupar com nossos amigos. Devia mostrar isso mais vezes!"

"Do que está falando, Kagome!"

Kagome acariciou as orelhinhas do hanyou, apenas sorrindo.

"Nunca é tarde demais pra se fazer o que é certo, hai?"

E sem dizer mais nada, Kagome pegou Shippou já adormecido no colo, o levando para dentro. Inu ficou ali, resmungando alguma coisa, perdido em pensamentos.

Todos se levantaram, mais descansados. O senhor da casa ofereceu um breve café da manhã, ainda em agradecimento ao "monge que afugentou o youkai. Merie bateu na porta do quarto dos rapazes, e logo foi entrando com uma bandeja de sucos e bolinhos, sorrindo para o monge.

"Ne, houshi-sama, espero que goste!"

"Obrigado, mas não estou com muita fome."

Miroku se serviu de um bolinho, já disposto a deixar o quarto, mas Merie o segura. Inu e Shippou se fartavam na bandeja, já esperando pela velha cena de Miroku levando um tapa na cara... ou talvez não?

Merie parecia enrubescer um pouco enquanto se dirigia ao monge.

"Eu gostaria de agradecer mais uma vez, houshi-sama!"

"Não me agradeça..."

"Será que não há nada que eu posso fazer pelo houshi-sama?"

Merie se deu um pequeno passo em direção ao jovem monge, lançando um olhar meigo e carinhoso. Inu tapou os olhos de Shippou com a mão, apressado. Que coisa mais feia ficarem se exibindo assim na frente de uma criança!

"Sim, poderia me dizer se as moças já se levantaram?"

O sorriso de Merie desapereceu no mesmo instante, enquanto o vermelho de suas bochechas pareciam tomar um outro tom...

"As moças? Que vieram com vocês?"

"Sim."

"Creio que já sim." – respondeu, quase num sussurro.

"Arigatou"

Miroku saiu, com um sorriso nos lábios. Tinha certeza de que agora tudo ficaria bem. Mas tinha uma sensação estranha... como se tivesse se esquecido de alguma coisa...

No quarto, Inu ainda olhava estupefato a garota sair, cabisbaixa, enquanto Miroku sem sequer tivesse tentado um motivo para ganhar sua famosa marca no rosto.