Capítulo 1
Agora entendo porque meu mestre me pedia cautela. Ainda garoto, ouvi dele o aviso: "tome cuidado com o que vai fazer dos seus poderes". A recomendação foi esquecida tão logo me vi controlando as portas do inferno.
Há quem diga que mexer tão intimamente com a morte e o inferno me deixou louco. Não sei o que houve exatamente, mas eu sentia prazer em ver a afirmação do meu poder nos gritos e rajadas de sangue desencadeados por meus golpes. Talvez por trás da minha crueldade houvesse um quê de loucura... Ou vice-versa. Quem sabe?
O fato é que a morte nunca me chocou. Sempre a vi como um processo natural. Todo ser vivo está fadado a ela, mais cedo ou mais tarde, dessa ou daquela maneira. Simples assim. Talvez por isso eu nunca tenha sentido culpa ao executar minhas vítimas. Se o sujeito perturbava a paz do Santuário, então, eu sentia uma prazer quase orgástico ao matá-lo. Se era inocente... Paciência, vivíamos em guerra e jamais haverá uma na qual não morram idosos, mulheres, crianças, pais e mães de família. Essa é a lógica da guerra: passou pela linha de tiro, morreu.
Houve quem me condenasse por pensar assim. Ah, que maniazinha essa de julgar sem entender as coisas. Poucas pessoas se deram ao trabalho de tentar compreender por que eu agia assim. Também não me dei ao trabalho de explicar, afinal, a meu ver tudo era claro demais... Ou não dava para perceber que, acima de tudo, eu queria fazer justiça? Eliminar os fracos, os metidos, os idiotas... Deixar prosperar apenas a semente boa. Que mal há nisso?
É por isso que me pergunto por que esse castigo. Não, não falo do frio do Cocytos. Falo dele.
Esse homem está me ferindo. As únicas pessoas a me ferirem antes dele foram meu mestre e Shiryu, o cavaleiro de bronze de Dragão, isso porque a menininha lá me perturbou e me fez baixar a guarda, e depois minha armadura me abandonou. Aliás, falando em armadura, eu gostaria de saber de que vale essa porcaria que chamam de sapúris, essa armadura preta que os espectros usam. Sinto-me esmagado como se fosse um verme!
É, esse homem é de fato digno de ser servo de Hades. Forte. Cruel. Sarcástico. Ele nos humilha a ponto de quase fazer nossos ouvidos sangrarem. Ele aperta minha garganta, afunda as unhas em meu pescoço, puxa os cabelos de Afrodite e o sacode... A dor nos consome... Dor física e dor moral, no mesmo patamar.
De repente, um golpe na velocidade da luz. A dor. O grito de Afrodite. Meu grito. As mãos frias e pesadas. A escuridão. As almas das pessoas que matei, o lago de sangue, o suor, o fedor, as chibatadas, o trabalho forçado, os lamentos... Afrodite ao meu lado, sofrendo, e eu incapaz de ajudá-lo. E aquele homem comprazendo-se do nosso penar, cerrando os punhos de excitação a cada careta de dor, gargalhando de satisfação a cada gemido. Ora, eu achava que não poderia existir alguém mais impiedoso e cínico do que eu... E ainda me orgulhava disso.
Agora que sou alvo de escárnio e apoquentação, entendo o que se passava na mente de cada pessoa que conduzi ao Yomotsu. Ódio. Ódio puro. Agora sei exatamente porque aquelas vozes me atormentavam no meio da noite, jurando vingança. Por que eu sinto sede de vingança. É uma vontade até maior que a minha dor e a de Afrodite juntas.
Afrodite diz que isso é loucura. Não, não é. Ora, não há mais o que temer, já estou perdido, arrependimento nenhum vai me salvar. O que eu fizer ou deixar de fazer não fará mais diferença alguma. Não sei como, mas ele vai ter o troco. Radamanthys poderia ser um deus, eu o faria pagar por ter nos humilhado.
Filho da puta. Ele vai me pagar.
(continua)
