Capítulo dois:

A vida que eu não vi

Eu pude ver novamente aquele lugar, tão familiar, tão aconchegante.Pude passar minhas mãos pelas suas paredes. Olhei o dojo como nunca havia olhado antes. Eu o olhava mais do que uma simples construção, passei a olhar como a minha casa; como um lugar que eu não poderia mais viver.

Por mais que eu encostasse minha mão na parede, eu não conseguia sentir seu toque: estou morto. Terei que viver mais uma vida, desta vez eterna, mas desta vez sem meus entes queridos; desta vez viverei para sempre; desta vez sem a Kaoru.

Depois da tempestade veio a calmaria em minha mente, que se focava somente nela e no dojo.

Olhei para trás e percebi que o quarto em que eu me troquei havia mudado, estava mais arrumado, perfumado, e com um capricho diferente: ele havia se trans formado no meu quarto. Ao olhar novamente para frente, vi Tomoe sentada num degrau que dava para a entrada do dojo.

Ela olhava para o portão, até que se virou e olho bem no fundo dos meus olhos. Lembro-me das suas palavras e das minhas como se fosse ontem. De fato, nem sei quando isso aconteceu, pois agora que morri, não me preocupo mais com o tempo; e acho que me lembro de tudo, pois não tenho mais preocupações.

- Kenshin, querido! Esta roupa ficou muito boa em você – me disse com uma voz tenra, como de costume.

- Como eu vim para aqui? Eu não estava no céu?- perguntei, quase que ignorando o seu elogio.

- Querido, vou responder todas as suas perguntas, quando for a hora certa.-após dizer isso fez uma pausa que não durou mais que segundos – Como a sua casa é bonita... – Ao dizer isso se levantou. – Vamos andar um pouco. Quero que veja algo- Segurou minhas mãos e andamos em direção aos fundos do dojo.

Quando me tocou, pude perceber que as mãos de Tomoe eram a única coisa que eu poderia sentir. Cheguei a conclusão que somente poderia sentir coisas que estivessem no mesmo estado que eu: mortas. Senti que meu olhar entristeceu ao pensar na palavra "morte". Nunca tive medo dela, mas nunca pensei que sentiria tanta falta de viver. Olhava para cada pedra que estava sobre o chão, as quais eu nunca havia reparado antes. Olhava para o dojo, nunca senti tanta vontade em limpar. Até que meus olhos se dirigiram para uma imagem, que me fez esquecer totalmente das pedras, do dojo e do toque de Tomoe.

Fui um tolo de não ter reparado a tamanha sorte que tive em conhecer Kaoru. Nunca percebi a intensidade do que eu sentia por ela, e nunca fui capaz de expressar meus sentimentos como realmente deveria ser. Ao olha-la percebi que meu coração não passava de cacos de vidro que não se encaixavam.

O vento fazia com que o balançar de seus cabelos entrassem em ritmo com as pétalas de cerejeira que caiam no chão. Os seus olhos eram como dois globos azuis que iluminavam o seu caminho e o meu. Pude sentir o calor da sua presença, daquele espírito alegre e inquieto que contrastava com a sua doçura.

Vendo esta cena, eu percebi que Kaoru era o porto para a minha embarcação cheia de desejos e tristezas. Que ela, para mim, o cobertor de um desabrigado, uma lanterna de um naufrago e a vida de um morto.

Suas leves mãos que nunca se incomodavam em me ajudar trabalhavam severamente estendendo a roupa no varal. Tive vontade de abraça-la como fiz com Tomoe, mas tive medo de não sentir seu toque. O vento que ia contra o meu corpo me impedia, junto com o meu medo, de dar sequer um passo.

Senti a sua voz musical correr pelos meus ouvidos chamando pelo meu nome, e em seguida escutei a minha respondendo pelo chamado. Olhei para o patamar do dojo, aonde vinha a minha voz, e vi minha imagem de quando eu era vivo. Imediatamente lembrei desta ocasião que eu falava com Kaoru. O que eu escutava de mim mesmo, eu pensava simultaneamente.

Enquanto eu refletia nesse mar de pensamentos, Tomoe, despercebidamente, aproximou se de meu ouvido e murmurou palavras assim: "Querido, agora você verá o seu passado, e o destino que lhe foi reservado. A partir de agora você responderá aos poucos as suas perguntas." Logo em seguida pôs sua mão no meu ombro e me acariciando suavemente disse mais uma vez:"Ainda não te deixarei sozinho com o seu passado, pois há coisas que devem ser ditas e não somente vistas."

Olhei para o seu rosto, e fui recebido com o seu sorriso, que diante daquela situação de curiosidade, me acalmava profundamente. Retribui, não com a mesma intensidade, pois tal é inalcançável, mas sorri sinceramente para Tomoe me sentindo cada vez mais confortável.

Bom...Vou-lhes contar a partir desses momentos a minha história. A minha vida que por breves minutos eu havia me esquecido. E relatarei detalhes que eu jamais poderia relatar quando vivo, pois só agora eu percebi como eu era feliz, mesmo com as mortes que havia cometido.