Excalïbur
Shaka Dirk
Gritos e Sussurros
"...Tears stream down your face
When you lose something you cannot replace
Tears stream down your face
And I...
Tears stream down your face
I promise you that I'll learn from my mistakes
Tears stream down your face
And I...…"
Havia flores.
Sim, por todos os lados.
Havia o silêncio, que somente era maculado pelo som das ondas quebrando nas rochas.
E o rapaz ouvia a tudo com devoção.
xx
Apertou os olhos com certa força, revirou-se um pouco à procura de uma posição confortável e se acalmou.
xx
Ele continuava naquela contemplação muda. Há dias o encontrava naquele penhasco perante o mar nesta mesma hora, apenas ouvindo as ondas em seu conflito eterno contra as rochas.
O Homem não sabia ao certo porquê o procurava, ou então porquê ficava apenas o observando sem nunca dizer nada. Sabia, porém, que isso de alguma forma lhe inspirava certa paz.
xx
Sentiu um pouco de frio, e instintivamente puxou a coberta mais para perto de si, encolhendo-se. Sussurrou algo ininteligível e virou-se outra vez.
xx
"Sabe..." — disse o rapaz sem se virar, mas em voz alta o suficiente para que ele o escutasse — "posso ser cego, mas todos os meus outros sentidos acusam sua presença... Por que tem me seguido, Shura?"
xx
Levantou assustado. Esfregou os olhos debilmente, respirava rápido, tenso. Não importava quantos dias tinham se passado, ou quantas noites havia dormido. Estava sendo perseguido, noite após noite, pelo mesmo sonho. Estava sendo perseguido por seus medos e desejos. Sua culpa.
O homem levantou-se e caminhou cambaleante até à rústica cômoda no canto do quarto, sobre a qual se encontravam um jarro com água e uma bacia. Lavou o rosto e olhou pela janela entreaberta. O dia ainda não havia raiado.
"Em frente!" — pensou — "É só outro dia sem ele."
Escuridão.
Todos os dias eram assim, sempre escuros. Sentia falta da cor das flores, do brilho do sol. Sentia falta do azul do mar, do verde da grama. Mas uma imagem em particular instigava ainda mais sua saudade.
A imagem dele.
Quando ficou cego pela primeira vez, Shiryu sentiu falta do brilho nos olhos obstinados dos amigos, mas só. Não havia um rosto amado para sentir falta...
Então milagrosamente ele voltou a enxergar, voltou a ver a determinação refulgir nos olhos dos companheiros.
E ele o viu.
Uma única vez. Mas estavam em lados opostos, inimigos. Uma batalha mortal foi travada. O "oponente" se foi, mas como um último gesto, deu sua própria vida pela do rapaz.
O mundo girou e girou, mas algo ficou para trás, os dias já não eram tão perfeitos como se lembrava. O céu não era belo e prateado, e o mar já não era tão azul. O sol não brilhava tanto, e a grama perdeu seu encanto. Algo apertava como um nó em sua garganta, algo que não conseguia explicar.
Nessa mesma época os céus se escureceram, tempestuosos, para anunciar outra batalha mortal. E o rapaz enfrentou seu destino de corpo e alma. Descobriu em si o legado daquele que lhe devolvera a vida.
Então veio a escuridão novamente.
O brilho de seus olhos fora tomado pela eternidade. Mas isso não o impediu de continuar a luta, de vencer as dificuldades. E, por um pequeno tempo, alcançar a paz.
Paz.
Conceito ilusório na vida de um cavaleiro.
Outra guerra se iniciou. A delicada paz que havia conseguido se quebrou como uma pequenina estátua de cristal. Ele foi ajudar seus amigos. Foi, sem hesitar, diretamente para o centro do conflito.
E no meio de todas as batalhas, o reencontrou. Quando ouviu sua voz, o nó que havia se instalado em sua garganta afrouxou-se, mas logo em seguida um sentimento de tristeza invadiu seu coração. E Shiryu entendeu que aquela dor em seu peito era a dor que ele sentia.
O mundo parou por um segundo.
Tudo se seguiu tão rápido... verdades e mentiras reveladas, o alívio e então a dor.
Ele morria novamente, em seus braços.
Mas o rapaz não pôde parar para lamentar a perda. Tinha uma missão a cumprir, e para isso foi à parte mais profunda do inferno, e lá, por um ínfimo instante, pôde vislumbrá-lo pela segunda e última vez.
Acabou.
A "paz" foi mais uma vez restaurada. Os deuses piedosamente restauraram a vida daqueles que tombaram na batalha. Finalmente poderiam descansar.
Mas algo incomodava o rapaz, algo que ele não sabia explicar, mas que o deixava estranhamente incompleto. Que o machucava. Para esconder sua dor, passou a se isolar o máximo possível, passou a procurar sua paz entre a natureza.
E ele sentiu falta da cor das flores e do azul do mar. Sentiu falta de algo mais, algo que não conseguia decifrar o que era...
Calor.
Uma agradável e branda onda cósmica passou a emanar a seu redor em seus momentos de reflexão. O dono dessa energia nada falava, apenas ficava o observando em sua contemplação dos sons. E o rapaz finalmente se sentiu em paz.
A resposta estava tão clara, e se tornou inevitável à aproximação, a entrega. Sentiu-se feliz... Ele acreditou que nada poderia tirar-lhe isso.
Mas o mesmo destino que lhe deu a paz lhe jogou ao inferno.
Ele chorou. Não pôde entender o que acontecera... o que o levara àquela situação. Mas já não havia mais caminhos para voltar. Era o fim...
Agora o rapaz sabia. Sentia mais do que tudo a falta daquele rosto que habitava suas lembranças. E ali, sentado naquele mesmo penhasco de meses atrás, ele desejava jamais ter dito "adeus".
Tão logo saiu de sua morada, uma brisa suave bagunçou-lhe os cabelos curtos. Era verão, mas isso não lhe impediu de estremecer. Olhou com admiração a vista que tinha dali, como se nunca a tivesse notado antes. Sentou-se nos degraus da entrada, e por um milésimo de segundo, permitiu que sua mente o levasse para longe dali. Que sua mente o levasse de volta a uma época feliz.
"Shura..." — Uma voz doce chamou sua atenção, despertando-o — "Shura?"
O dia estava diferente, o sol lutava contra a noite que avançava destemida. O homem ergueu as sobrancelhas assombrado, ao perceber quanto tempo permanecera ali sentado. Esquadrinhou o lugar em busca da origem da voz que ouvira, e encontrou sua origem encostado no pilar de entrada de sua morada.
"Olha, quando o geladinho me disse que você estava mal, não acreditei... Mas, pelo jeito, o Kamus foi bem modesto... você está ainda pior do que eu imaginava..."
"O que quer aqui Afrodite" — Disse o espanhol de forma ríspida — "Mais uma oportunidade para ser maldoso?"
"Ah, Shurinha, não fala assim comigo..." — disse o outro, fingindo estar ofendido — "Você sabe que eu nunca falaria mal de você... Ainda tenho amor à minha beleza!" — disse o homem de longos cabelos esverdeados com ar desdenhoso, e se arrependeu no mesmo instante. Afinal a expressão no rosto do Capricorniano, que havia começado a descontrair, voltou imediatamente a assumir a mesma expressão melancólica de antes.
Silêncio.
Shura desejou estar acorrentado de volta à grande árvore. Lá, ao menos, não havia ninguém, além de si próprio, para lhe lembrar de seus pecados.
"Você precisa falar com ele." — A voz de Afrodite alcançou seus ouvidos novamente. Ela soava tensa, como se estivesse finalmente expondo algo que estivera entalado em sua garganta por muito tempo.
"Pra quê?" — sua voz estava mais desolada do que imaginava. Sentiu um novo nó se formar em seu peito quando segurou as lágrimas que se precipitaram em seus olhos. — "Eu o conheço, Dite. Sei que ele não mudará de idéia."
"E você vai se entregar assim?" — O cavaleiro de peixes estava prestes a perder seu autocontrole. — "Eu não posso acreditar, Shura, que eu abri mão do nosso namoro, só pra você desistir dele desse jeito... Onde está o homem que eu conheci?" — Afrodite gritava a plenos pulmões, indignado.
"Me desculpe…" — A voz do espanhol morreu em sua garganta. Ele baixou os olhos, fugindo do olhar inquisidor do outro homem. — "Eu só te fiz sofrer... e mesmo assim você tenta me apoiar... por quê?"
"Ah! Poupe-me!" — O cavaleiro de Peixes estava histérico. — "Você ainda é importante pra mim, seu estúpido!" — ao ouvir essas palavras, Shura voltou a olhar o outro, incrédulo. — "Quando eu disse que te amava, eu, milagrosamente, não estava mentindo... E quando se ama alguém, não é possível esquecer... Você passa a amá-la de uma outra forma quando tudo acaba... mas nunca se esquece!" — Os olhos de Afrodite estavam marejados, mas isso não o impediu de continuar a berrar com o capricorniano.
"Você realmente acha que o garoto te esqueceu? Então pergunte aos amiguinhos dele por onde ele anda? Por onde ele passa as tardes? Ninguém sabe!" — O homem de cabelos esverdeados fez uma pausa, tentando se acalmar. Virou-se, dando as costas ao outro, apoiando-se numa coluna, e então continuou. — "Ele não consegue te esquecer, e isso o mata por dentro. Ele tem se isolado, na tentativa de não ouvir sua voz em cada pensamento, mas não funciona..."
"Dite..." — Shura disse incerto enquanto se levantava e passava os braços pelos ombros do outro cavaleiro. — "Eu... eu não sabia que você sofreu tanto assim..."
"Ninguém sabe..." — disse com um falso sorriso. — "Quer dizer... Máscara da Morte sabe... hun... digamos que me aproximei bastante dele depois que eu e você terminamos..." — o Cavaleiro de Peixes ficara levemente corado com o que acabara de dizer. — "Mas isso não importa agora... O que importa, Shurinha, é que você não pode se entregar assim..."
"Então o que acha que eu devo fazer?"
"Vá até ele..."
Estava deitado na grama, de olhos abertos, mas sem poder ver o sol que o aquecia. O som tranqüilo do mar o deixava sonolento. Suspirou fundo e sentiu o cheiro das águas salgadas invadirem suas narinas. Suas pálpebras pesaram, tentou lutar, manter a consciência... tentou lutar...
Chovia muito. Ele não sabia se realmente queria fazer o que pensava, mas mesmo assim impeliu-se para fora de seu abrigo, entrando na chuva pesada. Não precisava de nenhum guia, conhecia bem o caminho que iria trilhar. E, que os deuses fossem generosos, esperava não ter que fazer aquele caminho novamente.
A chuva dificultou sua travessia, mas lá estava ele... a água ressoava diferente em contato com as correntes, e mesmo à distância, ele sentiu o poder dessas correntes. Sentiu um aperto mortal em seu coração quando encostou com a cabeça ao lado da dele... foi assim que destruiu o próprio coração...
"...você me perdeu."
Correu e correu. As lágrimas se confundiam com a chuva, os cabelos ensopados formaram uma massa disforme à suas costas quando parou, exausto, e apoiou-se em uma árvore. Escorregou pelo tronco até alcançar o solo.
E toda a dor que sentia se manifestou em um grito mortal... como uma fera agonizante que urra, que chora ao mundo...
Sentiu seu corpo retesar-se, seus dedos revolverem a terra, como se procurassem se ancorar ali. Levantou-se, sentiu algo diferente no ar... como se mais alguém estivesse ali, um alguém poderoso o suficiente para esconder-se dele.
"Os sonhos te perturbam, Shiryu?" — a voz era suave, mas passava uma sensação de imponência, de poder incalculável.
"Shaka?" — disse o garoto sem entender o que o outro cavaleiro fazia ali — "por que...?"
"Sou o melhor em encontrar pessoas escondidas..." — disse decisivamente — "Como ninguém o encontrava durante esses períodos, e acredite, estão todos preocupados, me pediram para achá-lo... Então tomei a liberdade de também vir conversar com você."
Shiryu ouviu em silêncio. Bateu levemente com as mãos para limpá-las, alisou a roupa para tirar a grama que havia ficado presa nela. Pensava se deveria dizer o que martelava em sua mente ao outro cavaleiro, ou se devia guardar aquilo tudo pra si, como fazia a tanto tempo...
"Fale, por favor." — Disse o homem loiro enquanto se sentava ao lado do garoto. "Não é bom guardar toda essa dor pra si."
"Eu não sei mais o que pensar..." — disse Shiryu por fim, deixando os braços caírem ao lado do corpo. "Eu achei que se me isolasse... que se eu não o encontrasse mais, que se eu não falasse disso... eu pensei que essa dor desapareceria... achei que poderia tirá-lo daqui de dentro... — o garoto bateu no peito, sobre o coração. — pensei que isso fosse passar, mas tudo só tem se tornado mais difícil..."
"Sabe, na minha religião acredita-se que toda dor é proveniente do desejo de não se sentir dor." — disse o indiano depois de um tempo. Então esticou os braços e envolveu o rapaz neles, afagando-o. — "Você é tão jovem... Ainda irá aprender que todos os caminhos que podemos escolher vêm repletos de dor... cabe a nós, e só a nós, decidir se devemos ou não sentir essa dor."
"Eu estou tão cansado..." — disse o cavaleiro de bronze após um longo suspiro.
"Então durma." Disse Shaka — "Hoje velarei seu sono... hoje os sonhos não o perseguirão."
E Shiryu dormiu.
Subia a colina mais uma vez, precisou de toda sua coragem para fazê-lo. Não sabia o que iria dizer, na verdade nem pensara nisso... só sabia que precisava ir até ele, que precisava dizer o que se passava em seu coração...
Chegou ao topo facilmente, e de lá pôde ver a imensidão do mar, pôde ouvir suas águas colidindo contra a base da colina. Pôde vê-lo ali, sentado em silêncio, apenas ouvindo o mundo. Seu coração parecia prestes a parar, sentiu os dedos de sua mão formigar por causa da tensão.
Respirou fundo tentando acalmar-se. Então voltou a caminhar até onde o rapaz estava sentado. A cada passo que dava, ele passava a reparar mais e mais na beleza do outro. Nos longos cabelos negros, na expressão serena do rosto, no corpo esguio. Parou de andar de repente. Pensou que só podia estar ficando louco de ir atrás do rapaz. Virou-se determinado a ir embora, quando ouviu a voz tranqüila do outro.
"Está perdido, Shura?" — Disse o cavaleiro de bronze num tom baixo, quase sussurrado. — "Ou veio me fazer uma visita e a coragem se foi quando me viu?"
O rosto do espanhol ruborizou perante tal pergunta e um sentimento de raiva cresceu dentro de si.
"Está me chamando de covarde, Shiryu?"
"Bom... é o que aparenta." — Disse o garoto no mesmo tom baixo, e então virou seu rosto para a direção de onde provinha a voz do espanhol e continuou. — "Até pouco tempo, você vinha aqui, ficava me observando por horas sem dizer uma palavra, e depois ia embora." — Sua voz subira levemente de tom, como se acusasse o outro de algo. — "Depois, nós passamos a conversar durante horas... e então você passa semanas sem aparecer. E quando finalmente aparece, simplesmente decide dar a meia volta sem dizer nada? Isso não é covardia?"
Shura ouviu a tudo, com seu crescente sentimento de raiva, misturado a uma angústia que ele não conseguia explicar. Cravou as unhas na palma das mãos, tentando acalmar-se.
"Eu realmente vim falar com você... Mas quando o vi, achei que podia não ser boa idéia." — Disse por fim, tentando manter um ar natural em sua voz.
"E por que não seria?" — Disse o outro incisivo.
"Por que eu não sei exatamente o que dizer... Ou como dizer." — A voz de Shura parecia repentinamente cansada, desgastada. — "Cansei de tentar fugir, e ao mesmo tempo não sei como continuar..." — e ao dizer isso voltou a caminhar até onde o garoto estava, largando-se no chão a seu lado.
"O que teme Shura?" — perguntou o garoto em um sussurro.
"Eu não sei." — Admitiu por fim. — "Como você consegue não temer nada? Como consegue manter essa calma?"
"Eu não consigo!" — riu o garoto. — "Apenas tento não me mostrar abalado perante os outros..."
Shura sorriu, e de repente o peso em seu coração simplesmente desapareceu. Então ele riu, riu como não ria há anos.
"Eu gosto de você, Shiryu." — Disse quando recuperou o fôlego.
"O que quer dizer com isso?" — Perguntou o garoto, tenso.
"Quis dizer que estou apaixonado por você..."
Cruzou o salão do Grande Mestre em respeitoso silêncio, Shion não se encontrava ali. Atravessou a passagem escondida atrás do Trono do Mestre e subiu lentamente as escadarias que o levariam ao templo. O sol da tarde queimou-lhe a nuca quando parou por um ínfimo instante a contemplar a fachada daquela antiga estrutura.
Sentiu uma sensação estranha, como se houvessem derramado um balde de gelo em sua nuca. Estava com medo.
Respirou fundo... não tinha o direito de temer nada.
Adentrou no templo, caminhou diretamente à sala da Deusa, e parou, por fim, ajoelhando-se perante ela. Ergueu levemente a cabeça e pôde ver o Mestre ao lado Dela, e em sua mão pôde ver um pergaminho selado.
Estremeceu.
Soube antes mesmo que qualquer palavra fosse dita que aqueles eram, provavelmente, seus últimos dias no Santuário por um longo tempo.
"Shura..." — a voz da Deusa reverberou pelas paredes do amplo salão — "Você, por ser da elite dos meus defensores, e por ter dívidas de honra para com a ordem dos cavaleiros, devido a seus atos passados, foi escolhido para ser enviado em missão. Considere isso como uma oportunidade de expiar seus pecados."
"O que devo fazer, Senhora?" — perguntou o espanhol, em um baixíssimo sussurro.
"Shion lhe dará as instruções." —Respondeu a Deusa brandamente. — "Você deve partir amanhã pela manhã. Espero vê-lo de volta em breve, Shura." — E ao dizer isso, Ela fez um pequeno gesto com a mão, indicando ao cavaleiro e o Mestre para se retirarem.
Os dois percorreram o caminho entre o templo da Deusa e o salão do Grande Mestre em absoluto silêncio. Ao chegarem ali o antigo cavaleiro de Áries sentou-se ao trono, e o outro cavaleiro ajoelhou-se, reverentemente, à sua frente.
"A sua missão, Shura, é vigiar o Sr. Solo, como você poderá ver com mais detalhes nesse pergaminho." — Disse o imponente homem, enquanto entregava o pergaminho ao cavaleiro — "Creio que você saiba, que o Sr. Solo é a encarnação atual de Poseidon, e que, há um certo tempo, a Deusa o selou novamente, fazendo-o tornar a adormecer." — o Mestre pausou um pouco, fitando o cavaleiro que havia começado a ler o pergaminho que o havia entregado.
"Como você pôde ver, mesmo estando selado, o Sr. Solo utilizou os poderes de Poseidon. Você deve investigar isso e vigiá-lo. Sorento, um dos marinas que o guarda, foi avisado de sua ida e estará o esperando." – Disse o Mestre logo que o espanhol terminou de ler o pergaminho.
"Sim, majestade." — respondeu o cavaleiro com pesar em sua voz. — "Partirei pela manhã como solicitado, com sua licença." — E ao dizer isso, Shura retirou-se. Em sua mente só se repetia o mesmo pensamento. Dentro em breve ele estaria fatalmente longe de Shiryu... precisava falar com ele antes de partir...
Caminhava em silêncio. Não sentia vontade de ir ao refeitório, de ouvir os murmúrios sobre o quanto ele havia mudado desde o incidente na Casa de Capricórnio. Não sentia vontade de se alimentar.
Mas, mesmo assim, o garoto se guiava pelo som tumultuado do grande salão. Entrou silenciosamente no refeitório, não queria as atenções voltadas para si. Caminhou devagar até a mesa onde a refeição ficava disposta, seus ouvidos aguçados captavam fragmentos de conversas, que ele tentava ignorar.
Suas mãos mal tinham alcançando o prato que lhe haviam estendido quando entreouviu uma conversa que prendeu totalmente sua atenção. Estavam falando sobre ele.
"Então o que eu ouvi falar sobre o Shura é verdade, Kanon?" — Perguntou Máscara da Morte, curioso — "Desde que voltamos do mundo dos mortos, você tem passado muito tempo junto ao Mestre e à Deusa, auxiliando-os na administração do Santuário... você deve saber algo." — o tom de voz do cavaleiro de Câncer era baixo, tentando impedir assim que outras pessoas ouvissem a conversa.
"Não me é permitido contar nada do que ouço no Salão do Mestre, vocês sabem disso." — respondeu o outro em evasiva.
"Hun... e quem disse que você precisa contar, Kanon?" — a voz grave de Aldebaran soara maliciosa — "Basta que você confirme uma informação que já temos..." — os três cavaleiros permaneceram em silêncio por algum tempo. Shiryu sequer se movera, estava petrificado, querendo entender o sentido daquela conversa. Então a voz do cavaleiro de Touro se fez audível novamente. — "É verdade que ele será mandado em missão, Kanon?"
"É..." — a voz do segundo cavaleiro de gêmeos saíra num sussurro quase triste. – "É verdade..." — A atenção dos três cavaleiros, bem como de todo o refeitório, foi atraída pelo barulho de louça sendo quebrada, e quando viraram para a origem do som só puderam ver a silhueta de Shiryu se afastando em uma corrida contra o tempo.
A água do mar alcançou seus pés, gelada.
Recuou.
Estava mais fria do que imaginava. Ouviu risadas ao seu lado, e não conseguiu conter o próprio sorriso.
Uma outra onda, ainda mais gelada. Sentiu os pêlos de seus braços eriçarem, e em seguida um par de braços o envolver.
Sorriu.
Aconchegou sua cabeça no peito do homem que o acompanhava. Sentiu o perfume dele atravessar a simples camisa e atingir-lhe as narinas. Suspirou. Uma das mãos do outro homem deslizou suavemente por suas costas causando-lhe arrepios.
"Está anoitecendo, Shiryu... é melhor voltarmos pras 12 casas..." — a voz era tranqüila, sedutora. — "Logo vai começar a esfriar."
"Só mais um pouco, Shura... por favor..." — a voz do garoto soara branda, porém irresistível. — "Gosto de sentir essa brisa marinha..." — o espanhol afagou-lhe os cabelos. Começaram a lentamente afastar-se da beira-mar, e sentaram-se na areia pouco adiante.
"Shura..." — chamou o chinês num sussurro. — "Me diz... como está o céu?" — A pergunta, por mais simples que fosse, surpreendeu o espanhol, que o mirou assustado.
"O sol..." — começou o cavaleiro de ouro, incerto. — "...o sol está quase desaparecendo, quase tocando o mar... O céu está avermelhado... é como se o sol estivesse sangrando e caindo, e a noite azul e intacta o empurrasse..." — Shura parou por alguns segundos sem saber se havia conseguido explicar, então sentiu os lábios do garoto pousarem suavemente próximos a seu ouvido.
"Obrigado..." — sussurrou o cavaleiro de Dragão. — "Obrigado por dar cores ao meu mundo escuro..."
Degraus e mais degraus, um percurso íngreme e desesperador. Subia as escadas exatamente com a mesma sensação de urgência que tivera das primeiras vezes que as subiu. Novamente tinha que impedir que algo acontecesse, mas dessa vez, ao contrário das outras, seus motivos eram egoístas.
Seu coração parecia prestes a explodir em seu peito, mas ele não parou. Não podia se dar ao luxo de se acalmar... podia ser tarde demais. Cada minuto podia ser decisivo, e ele não estava disposto a perder essa última chance.
Então ele parou. Havia finalmente alcançado a décima Casa Zodiacal: Capricórnio. O silêncio absoluto do templo o incomodou. Adiantou-se ao centro do salão principal da morada, mas ainda assim não ouviu nada, também não sentiu nenhuma presença.
Uma lágrima escorreu por seu rosto.
"Shura?" — Gritou em desespero, enquanto corria para os aposentos da casa. — "Shura… onde você está?" — Atravessou a porta do modesto quarto que conhecia tão bem, e só encontrou mais silêncio, mais ausência.
Outra lágrima.
Avançou vagarosamente na direção onde sabia que a cômoda estaria. Tocou com cuidado a superfície do móvel, e ali encontrou um lençol a cobrindo.
Gritou, desesperado. Ele já havia partido.
Estava parado em frente à casa de Libra há alguns minutos, indeciso sobre o que fazer. Se entrasse, teria de enfrentar algo que temia. Se simplesmente fosse embora, teria de enfrentar sua própria consciência.
Suspirou fundo. Deu um passo à frente. Decidiu que já havia confrontado demais sua consciência.
Caminhou lentamente pelo saguão da morada, procurando qualquer indício de presença em seu interior. Não sentia nada, nem mesmo uma fagulha cósmica.
"Como você ainda pode ter coragem de entrar na casa de Libra, Shura?" — assustou-se com a voz ríspida, e encontrou seu dono parado à sua direita, fulminando-o com o olhar. — "Depois de tudo o que fez... Como ainda tem coragem de entrar aqui?"
"Dohko..." — seu tom era mais baixo do que queria, mas mesmo assim não conseguiu erguê-lo devido à vergonha. Sentiu-se prensado, queria simplesmente desaparecer. — "Eu preciso falar com ele..."
"Para quê?" — os olhos do Cavaleiro de Libra tinham um brilho feroz, ácido. Assim também eram suas palavras, que assumiam um tom cruel tão anormal a ele. — "Para feri-lo de novo? Ou para iludí-lo, quem sabe? Ou então..."
"Pare!" — Shura ouviu sua própria voz ecoar por toda sétima casa. Ofegava, suas mãos estavam trêmulas. — "Eu não preciso que você me lembre dos meus erros, Dohko. Eu sei muito bem o que fiz. E sei o quanto o prejudiquei." — Suas palavras saiam falhas, entrecortadas pela respiração alterada.
"Então, se você sabe, o que ainda quer com ele?" — O Cavaleiro Chinês não tinha nenhuma entonação pejorativa, mas demonstrava claramente que não entendia o que o outro pretendia com aquilo tudo.
"Eu não sei..." — Admitiu o Cavaleiro de Capricórnio. — "Acho que esperava que ao vê-lo, essa dor no meu peito desaparecesse... Esperava poder pedir perdão... dizer-lhe quanto bem ele me fez... e... mesmo assim..." —Sua voz simplesmente desapareceu. Não conseguia articular nem mesmo uma única palavra.
"Não acha que é simples demais pedir perdão?" — Dohko disse, em um tom solene e ao mesmo tempo sábio que os anos ensinaram-no. — "O que você espera? Que ele o perdoe e que tudo volte a ser como era antes? Que ele o perdoe? Não acha que é muito fácil pedir desculpas depois que se erra?"
"Eu não sei." — Shura balançou a cabeça em negativa. — "Eu não espero nada disso... só preciso dizer... eu preciso..." — Tampou a boca com as mãos por um momento, como se tentasse abafar um grito de dor. Seus olhos estavam fechados, contraídos numa expressão de angústia. — "Eu não sei mais nada... eu o amo, e me odeio por ter feito o que fiz. Eu..."
"Vá embora, Shura." — Interrompeu o outro cavaleiro, virando-lhe as costas. – "A Deusa ordenou-lhe que partisse hoje, então você deve ir." — Seu tom era calmo, quase frio, mas havia algo a mais ali. Algo que o Espanhol não conseguia decifrar o que era. — "E, em todo o caso, ele não está aqui..." — Dohko olhou-o por cima do ombro e acrescentou enfático. — "Se você partir agora, talvez encontre alguma resposta à suas dúvidas... ou, talvez só encontre mais dor... Esse é o preço que terá de pagar."
O som das pedras sob seus pés o irritava. O ar quente daquela manhã estava incomodando-o. Não conseguia se concentrar, o dia parecia especialmente barulhento. Pisou em falso e caiu. Socou o chão, nervoso, praguejou baixo, mas não levantou. Seus longos cabelos espalhavam-se pelo caminho de pedra.
Uma lágrima indesejável percorreu seu rosto e ele a limpou, com raiva. Havia chegado tarde demais no fim das contas. Não o encontrara. Isso o estava corroendo por dentro, queria apenas poder se livrar daquela dor insistente no peito. Praguejou novamente e ia se levantar quando ouviu algo.
Passos.
Persistentes e ritmados, como ele bem conhecia. Seu coração falhou uma batida, conhecia aquela energia cósmica, aquele calor...
Silêncio.
O mundo todo parou por um instante para ouvir junto dele... e tudo o que ouviu foi o silêncio.
"Shiryu..." — A voz rouca tomou o ambiente, e de repente tudo voltou ao caos. — "Aqui... vem." — disse enquanto o ajudava a levantar-se. — "Você está bem? O que aconteceu? Por que...?"
"Eu só escorreguei, Shura... não tem por que se preocupar." — Disse o garoto, em voz baixa, incerta. — "Pensei que você já tivesse... Disseram-me que você ia... e... a casa... vazia..."
"Eu estive te procurando." — interrompeu o Espanhol. — "Eu precisava vê-lo antes de ir... eu precisava te dizer..." — Suspirou profundamente, tentando organizar os próprios pensamentos. — "Perdão."
Um silêncio incômodo se abateu sobre ambos. Shura olhava fixamente para os olhos desfocados do Chinês, cujo rosto era tomado por uma expressão de surpresa e incompreensão.
"Eu não guardo ressentimento de você... não mais" — Disse o garoto por fim, sua respiração levemente entrecortada por causa da tensão. "Eu sinto falta da sua presença..." — sua voz baixara sensivelmente ao dizer isso, se tornando quase inaudível.
"Shiryu... Você..."
"Não." — A voz do cavaleiro de bronze voltou ao tom determinado de sempre. – "Não diga o que está pensando, Shura..."
"Mas, por quê?" — disse o Capricorniano um pouco alterado — "Se você também sente a minha falta... Se você..."
"Não ouse falar isso." — O garoto interrompeu-o, estava fora de si. —"Você não tem o direito de tocar nesse assunto... de remexer essa ferida!"
Shiryu estava ofegante, suas mãos cobriam-lhe o rosto, o mundo parecia-lhe estar girando mais rápido do que deveria. Shura mirava-o com um olhar triste, sentia-se prestes a desfalecer, mas ao mesmo tempo parecia que uma força sobre-humana o mantinha firme.
"Eu amo você... nada vai mudar isso. Nem suas palavras duras, nem as de seu mestre, nada." — A voz do cavaleiro de ouro estava tensa, um pouco mais rouca que o de costume, melancólica. — "Eu sei muito bem o que eu lhe fiz... sei que eu não mereço o seu amor. Mas você não pode negar o que é tão claro."
O cavaleiro de bronze sentiu-se desarmado com aquelas palavras. Sentia-se prestes a perder as forças, seu peito doía, e nada parecia ser possível de aplacar aquela dor, de dar-lhe paz. Seus lábios tremiam levemente.
"Você tem razão. Eu não posso negar..." — Uma lágrima escorreu por sua face juntamente dessas palavras. — "Eu amo você, mas eu não conheço mais uma forma pra que isso signifique algo... Eu não sei..." — Shura estendeu a mão para secar as lágrimas do rosto do Chinês, mas esse se afastou.
"Nós estamos tão próximos agora, e ao mesmo tempo mais distantes do que jamais estivemos." — Concluiu por fim o Espanhol. Então abaixou-se lentamente e pegou a modesta mochila que havia deixado cair quando vira o garoto no chão. — "Eu tenho que partir... Adeus, meu pequeno." — E com essas palavras ele começou a se afastar.
Os olhos apagados do cavaleiro de bronze derramaram mais duas lágrimas. Ele virou-se para o caminho que havia acabado de trilhar e disparou atrás do outro Cavaleiro.
"Shura!" — Sua voz trêmula fez-se ouvir, alta, triste. O outro homem virou-se, mas não rápido o suficiente para entender o que acontecia. O garoto atirou-se em seus braços e deu-lhe um beijo.
O tão esperado beijo.
Os dois corações se encontraram por um segundo. Um batendo violentamente contra o outro, desejando apenas estarem juntos mais uma vez. Desejando apenas que aquele instante durasse para sempre.
Mas não durou. O cavaleiro de Dragão afastou-se de repente, quase assustado com a própria atitude, desvencilhou-se dos braços do outro homem e pôs-se a correr em direção ao Santuário.
"Shiryu..." — Gritou em vão o cavaleiro de Capricórnio. O garoto não se voltou uma única vez, até sumir de vista. Passou uma das mãos pelo rosto e pelos cabelos, como se isso fosse lhe indicar uma solução. Mas nada o ocorreu, fez então a única coisa que podia. Voltou a caminhar, sem sequer imaginar o que o futuro reservava aos dois...
Fim?
19 de Setembro de 2005
00:35
Nota do Autor: Na passagem em que o Kanon aparece, eu o coloquei como sendo "segundo Cavaleiro de Ouro de Gêmeos". Pois, como sabem, assim como o Saga, ele têm o direito de usar a armadura de gêmeos, mas, não se pode ter DOIS cavaleiros ao mesmo tempo em uma casa, logo, como por direito o Saga é o cavaleiro oficial, coloquei o Kanon como uma espécie de "camerlengo" (camareiro) do Shion, que, aliás, é a função que o "Ares" teve anteriormente.
Ps: Dedico esse episódio triste a mim mesmo, afinal domingo é meu aniversário, e este é meu presente a mim mesmo! Hehe!
