Capítulo I

Transformação

A dor no meu ventre me acorda. Pela terceira noite consecutiva, acordo suando frio e encolhido na cama. A dor maldita que me lembra bem a aberração que eu estou prestes a me tornar não me deixa dormir.

Logo que descobri o meu destino, cheguei a pensar em me matar. Mas nem isso salvaria mais o nome dos Malfoys. Meu pai estava certo, eu sou o último e mais patético dos Malfoys.

Outra fisgada, dessa vez nos genitais, quase me faz gritar. Eu sei que isso vai durar horas. Amanhã eu estarei um lixo, mas ninguém vai perceber. Eu não vou deixar.

Estremeço de dor e mordo com força o travesseiro para sufocar meus gritos. Se eu gritar toda minha dor eu acordo Hogwarts inteira.

Faltam ainda seis meses para eu terminar a escola, no entanto minha deformidade vai se manifestar antes disso. A próxima noite vai ser a definitiva.

Meus pais não sabem. Tremo só em pensar o que meu pai faria comigo se descobrisse. Minha mãe morreria de vergonha; não sem antes me punir primeiro.

Outra fisgada me faz sentar na cama. É difícil encontrar posição quando seu corpo está sendo metamorfoseado e parece estar pegando fogo por dentro.

No início do sexto ano descobri minha desgraça. Foi quando começamos a estudar Anatomia Bruxa. A aula tem alunos de todas as casas; afinal são poucos os que escolhem fazer esse curso. É claro que a Sabe—Tudo—Granger escolheu; às vezes me pergunto o que seria de mim se eu não tivesse escolhido estudar isso.

A dor se intensifica mais uma vez. Merlin! É como se passassem uma faca em brasa na região do meu períneo. É como se alguém me abrisse ao meio com essa maldita faca. Sinto o suor frio escorrer pelo meu rosto.

A Granger sempre faz perguntas demais aos professores, mas dessa vez ela foi útil.

Em Anatomia Bruxa estudamos os diversos tipos de alterações, anatômicas ou não, que só bruxos podem ter.

Não teve a menor graça descobrir como um humano pode procriar com um gigante, um veela ou um trasgo. Pelo menos não era tão nojento como eu pensava.

Um breve intervalo na crise de dor me permite descansar o corpo. Minha mente volta àquela maldita aula, quando descobri a grande merda que seria minha vida dentro de tão pouco tempo.

A Professora introduziu o tema com ar solene: Hermafroditas.

Todos os puro—sangue começamos a rir. A gentalha mestiça ou sangue—ruim não conseguia entender.

A idiota da Professora Green nos repreendeu. Eu me lembro bem do ar indignado da Granger quando entendeu o porquê dos risos. Irônico, isso.

No início da aula tudo correu bem. A Professora explicou como os hermafroditas surgem. Nascem aparentemente normais, e poucos dias depois dos dezoito anos as mudanças começam. Os que nasceram em corpo feminino ganham testículos, pênis, próstata e todo o resto, sem perder os traços femininos. Os que nasceram em corpo masculino ganham uma genitália feminina completa.

Bruxos hermafroditas são muito raros e totalmente funcionais em ambos os gêneros. Como se alguém fosse querer ter alguma coisa com uma aberração que tem um pênis e uma vagina!

Nova fisgada no baixo ventre. Prefiro a dor a pensar no monstro em que estou me tornando, mas minha memória não me dá sossego.

Eu me lembro das perguntas de Granger. "Por que os hermafroditas são discriminados?"; "Eles têm alguma habilidade em especial?"; "Como se dá a transformação?"; "Como alguém sabe que vai se tornar um hermafrodita?" Droga de garota. Droga de vida. Droga de dor!

Eu tento controlar a respiração, mas está difícil.

Hermafroditas são discriminados porque são uma aberração, sua idiota. A Professora veio com uma conversa comprida sobre preconceitos. Bobagem. Hermafroditas têm realmente uma droga de habilidade. São empatas. É quase impossível mentir para um hermafrodita. Por isso são registrados no Ministério. Para serem convocados, se necessário.

A dor corta minha respiração e me faz ter engulhos. Eu não quero vomitar de novo.

A transformação é violenta. Durante três noites a parte interna do novo aparelho se forma, empurrando o antigo para que se acomodem juntos. Na quarta e pior noite, a nova genitália aparece em definitivo. Duvido que aquelas tolas pudessem imaginar o grau dessa dor.

Enfio as unhas na barriga, na ilusão de sentir menos a tortura que meu corpo se auto—impõe.

Nessas horas eu quase posso ouvir de novo a voz da Professora dizendo que existem sinais que podem indicar a um adolescente que ele é um hermafrodita: um sinal bem específico na parte interna das coxas, cinco pequenas estrelas que surgem por volta dos doze anos. Aos dezesseis, dezessete anos os hermafroditas são realmente bonitos, com um ar levemente andrógino. Nenhum deles tinha visto as estrelas na minha coxa, e nenhum deles sequer pensou que eu poderia ser uma aberração dessas. Nem eu. Mas a professora falou dos sonhos repetidos que começam três anos antes das transformações. Sonhos sempre iguais, sempre a mesma história, sempre o unicórnio dourado correndo junto ao prateado, e se fundindo a ele no final da corrida. Sonhos que eu tinha desde o meu aniversário de quinze anos.

Eu não quis acreditar. Eu ainda não consigo acreditar.

O dia está amanhecendo, e a dor vai passando. Amanhã é a noite definitiva.

Eu fiz dezoito anos há uma semana. Dentro de dois dias eu terei uma vagina. Em menos de quarenta dias eu vou menstruar.

Eu não quero isso. Eu não quero ser esse monstro, essa aberração. Eu realmente deveria ter me matado.

A Professora falou da dor que era essa "passagem", mas eu nunca pude supor que seria tão grande. E nem que meu futuro seria tão ruim.

Eu não vou deixar ninguém saber disso nunca.

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Há algo profundamente errado com Draco Malfoy.

Hoje pela manhã, na aula de Poções, ele estava horrível. Acho que fui o único a notar. Anos como espião me tornaram ainda mais atento aos detalhes. Um bônus extra nessa estupidez sem fim.

No meu escritório quase totalmente às escuras, eu repasso o dia enquanto tomo um copo de uísque. De olhos fechados, com a cabeça no espaldar da minha cadeira e o silêncio que nem os fantasmas ousam quebrar, consigo relaxar um pouco.

Habituei—me a essa solidão no final do dia, quando posso analisar os pequenos fatos que compõem o panorama geral.

Tenho observado Draco há bastante tempo, por isso tenho percebido detalhes que outros não veriam. Ele anda cada vez mais tenso. Obviamente ele disfarça, mantendo a postura habitual. Eu não esperaria menos que isso dele. Mas há algo errado. A fuga de Lucius não o alegrou tanto quanto eu imaginaria. Na realidade, Draco pareceu ficar com medo. Ele nem mesmo quis ir para casa no último Natal.

Ele está com algum problema, e está escondendo de Lucius.

Seja o que for, piorou muito nos últimos três dias. Ele está obviamente tomando alguma poção energizante, como se estivesse passando as noites em claro, mas mesmo assim posso ver o profundo abatimento nos olhos dele.

Sempre protegi Draco mais do que minhas outras crianças. Afinal ele é filho do braço direito do Lord das Trevas. No entanto não é só isso. Há algo nele que me fascina.

Não é uma atração sexual, apesar de ele ter se tornado um belo rapaz. Um pouco andrógino demais para o meu gosto, mas belíssimo. Eu ainda não desci ao ponto de me envolver com um dos meus alunos.

No entanto, apesar da beleza, da fortuna e da família importante, ele não tem se envolvido com ninguém, seja com uma garota ou um rapaz. Ninguém.

É estranho.

Manter algum decoro entre tantos adolescentes cheios de hormônios dá muito trabalho a todos chefes de Casa, e a minha não é exceção. Sendo bonito, rico e filho de um homem muito poderoso, Draco deveria ter uma fila de namoradas ou namorados, se fosse o que desejasse. Ele é assediado, já percebi, mas recusa todas as aproximações.

Draco não me parece do tipo assexuado. Ele apenas se esconde.

Na idade dele eu também me escondia. Feio e pobre, eu só tinha meu talento para me garantir. Eu escondia minha natureza apaixonada — tão profundamente apaixonada que sou capaz de me interessar com igual intensidade por um homem ou uma mulher — para evitar o riso.

Esconder—se não é a única semelhança que vejo entre nós dois.

No meu sétimo ano eu era tão solitário quanto ele parece ser. Foi essa solidão que me tornou tão vulnerável a Lucius e, por meio dele, ao Lord das Trevas.

Eu sei que Lucius pretende tornar Draco um Comensal tão logo seja possível. Apesar de todo o medo que ele sente do Lord, ele quer tornar o próprio filho um escravo. Um escravo como eu.

Draco nunca me pareceu ter o estômago para ser um Comensal. Mimado demais. Mas Lucius parece acreditar que seu sobrenome torna o garoto uma sombra dele mesmo. Louco estúpido.

Será que é isso o que Draco teme? Tornar—se um Comensal? Talvez por isso ele estava tão assustado no aniversário dele. Eu liberei uma comemoração pelos dezoito anos de Draco. Apesar do costumeiro ar de enfado estudado, pude ver medo nos olhos dele. Será que o garoto teme se tornar um Comensal e está fazendo alguma coisa para evitar? Isso justificaria o pânico.

Mas quem ele procuraria?

Dumbledore certamente que não. Eu, de forma alguma; até onde ele sabe, sou o capacho fiel de Lucius. Alguma coisa está acontecendo, e ele está sozinho. Exatamente como eu há vinte anos atrás.

Um leve estalo no espelho de vigilância me alerta. Alguém está vagando pelos corredores, e já passa de meia noite.

Pronuncio o feitiço que me mostra o intruso e não posso evitar a surpresa. O garoto que ocupava minha mente até agora está se esgueirando pelo corredor. Ele pára apoiado na parede, parece ter dificuldades em respirar e está vergado como se sentisse uma dor forte.

Talvez eu esteja enganado, e Draco não pretenda fugir de Lucius. Talvez ele só esteja doente e, enfim, tenha resolvido procurar a Madame Pomfrey. Mas isso é pouco provável.

A direção que ele toma, no entanto, não leva à enfermaria, e sim às regiões menos freqüentadas das minhas masmorras. Eu o observo cambalear até uma sala isolada. Ele parece estar sentindo muita dor. Vejo bem a sala onde ele entra e vou atrás.

Mesmo que Draco tenha enfeitiçado a porta para não abrir a um simples Alorromora, eu posso entrar facilmente. Faz muito tempo que Albus me deu controle total das portas das masmorras.

Abro a porta sem ruído. Draco vinha preparando essa sala há muito tempo. Em vez do abandono que eu esperava, encontro um lugar limpo, um sofá em frente à lareira e, mais ao fundo, uma cama com pesadas cortinas verde—escuras.

Ouço gemidos agoniados vindos da cama. Quase não reconheço a voz de Draco, tamanha a dor que os sons carregam. Por alguns instantes, sou levado de volta aos tempos de Comensal e ao som da tortura de trouxas e bruxos adversários.

O que diabos está acontecendo aqui?

Afasto os reposteiros com um gesto brusco e me deparo com um quadro assustador. Draco se contorce na cama, enlouquecido de dor. Há sangue na parte de baixo do seu pijama e lágrimas descem pelo rosto dele.

—Draco! – É raro minha mente paralisar do jeito que paralisou quando vi o garoto. – Malfoy, o que houve?

Tento tocá—lo, e ele se afasta, assustado. Parece em pânico ao me ver. Ele tenta se afastar de costas na cama, mas a dor o faz vergar—se mais uma vez, e ele geme, agoniado.

—Draco, eu vou buscar a Pomfrey agora.

—NÃO! Por tudo que lhe seja sagrado, NÃO.

Pânico. Ele está em pânico. É melhor não deixá—lo agora.

—Meu pai não pode saber. Professor, não conta para ele. Ele me mata. Não conta. Eu faço o que o senhor quiser. Não conta. – A voz dele sai aos arranques em meio a gemidos de dor e soluços.

—Eu não vou dizer nada, Draco, acalme—se.

Levo a mão à testa dele; o garoto está gelado. Ele agarra meu braço, e seu olhar me comove. Draco não foi criado para lidar com tanta dor.

—Draco, você está sangrando e doente. Eu preciso chamar a Madame Pomfrey.

—Não! Ninguém pode saber! Já vai passar. Tem de passar.

Uma nova onda de dor, e ele verga o corpo. No movimento brusco os botões de cima de seu pijama se abrem, e eu vejo nitidamente um delicado par de seios.

Seios em um garoto! Então a memória antiga de uma aula com poucos alunos me volta à mente. Dezoito anos, androginia, beleza, vergonha, transformação dolorosa.

Draco é um hermafrodita!

Salazar! Se não ocultarmos isso de Lucius, o garoto está realmente morto.

Eu o sustento nos braços enquanto com um gemido abafado ele desmaia. Abençoadamente.