Capítulo II

Adaptação

Draco recuperou a consciência na mesma sala da masmorra onde desmaiara. Vestia uma camisola antiga de dormir e estava limpo de todo o sangue que encharcara seu pijama horas antes.

Ele moveu-se na cama, chamando, sem querer, a atenção de Severus, que estivera sentado em frente à lareira nas últimas horas tentando ordenar seus pensamentos.

—Draco. Tome, beba isso. – Ele ajudou o garoto a sentar-se e lhe entregou um copo com uma poção de cheiro forte e gosto estranho. – Pomfrey disse que isso vai aliviar suas dores.

—O senhor contou a ela!

—Beba, Draco. Sim, eu falei com ela. Foi necessário. Você esteve perto demais da morte.

—Seria melhor...

O jovem bruxo não conseguiu terminar a frase e pareceu perdeu-se em seus pensamentos, fitando o copo em suas mãos.

—Beba, Draco.

—O que meu pai disse?

—Ele não sabe. E, se depender de mim, não vai saber nunca.

—Não sabe... O senhor não disse a ele! Mas o senhor é... Bom, o senhor é ligado a ele.

—Não, Draco. Eu não sou o capacho que seu pai supõe que eu seja. Agora, pela última vez, beba essa poção.

O tom mais incisivo do Diretor da Sonserina trouxe lágrimas aos olhos de Draco, mas ele tomou a poção calado e se recostou no travesseiro.

Severus respirou fundo e sentou-se na beirada da cama do garoto, que abaixou o rosto escondendo o olhar e as lágrimas.

—Draco, segundo a Pomfrey seu estado emocional ainda vai estar instável nos próximos dias. Seu corpo passou por muita coisa, e sua mente agora tem de se adaptar a tudo isso.

Draco apenas balançou a cabeça afirmativamente. Severus sabia que ele devia estar odiando chorar na frente de outra pessoa, ainda mais de um professor.

Vergonha e gratidão mesclaram-se no rosto de Draco quando Severus estendeu-lhe um lenço branco para que limpasse o rosto.

Ele queria que Snape saísse dali para que pudesse chorar até secar toda a tristeza no seu peito, mas ainda precisava perguntar uma coisa:

—Professor, e agora? O que vai acontecer comigo?

O esforço de Draco em manter um ar frio era derrotado pela dor, medo e desamparo indisfarçáveis que o professor podia ver em seus olhos. Aquilo tocou Severus de uma forma que ele não esperava.

—Vou cuidar de você, Draco. – Apenas Dumbledore poderia perceber alguma emoção na voz contida de Severus. – Pomfrey comunicou ao Diretor o que aconteceu, depois de me ajudar a atender você. Nenhum dos dois aceita a idéia absurda de registrar você no Ministério, então vamos criar uma forma de que ninguém saiba disso. Pelo menos até você estar disposto a falar sobre sua condição, e termos encontrado uma forma de livrá-lo do Ministério.

Só a enorme surpresa que sentia impediu Draco de ter uma crise de choro nervoso naquele momento.

—Obrigado, Professor. – A voz de Draco estava fraca.

Severus o fez deitar-se.

—Descanse agora. Vamos dizer que você está com Catapora de Dragão para justificar sua ausência nas aulas. Pomfrey exigiu repouso absoluto. Portanto, durma. Eu vou ficar no sofá.

A poção, somada à calma fria de Snape, ajudou Draco a entregar-se a um sono sem sonhos.

Durante horas o Professor velou o aluno, tentando prever todos os lances do jogo perigoso que fariam dali para frente para livrá-lo do Ministério.

Draco ficou a maior parte daqueles dias sozinho nas masmorras. Snape vinha depois do jantar e ficava com ele até a hora de dormir. No início, o silêncio e os modos bruscos do Professor deixavam o garoto inseguro; com o tempo, no entanto, ele se acostumou.

Acostumou-se também com o diálogo, quase discussão, entre Snape e Madame Pomfrey, que vinha antes do almoço e depois do jantar. O Professor Snape a interrogava sobre cada detalhe da condição do pupilo, não aceitando meias respostas ou subterfúgios. Mais de uma vez a enfermeira zangou-se com ele por estar constrangendo Draco.

O garoto descobriu que Madame Pomfrey era a única pessoa que se atrevia a falar firme com o Diretor da Sonserina. Não que ele acatasse o que ela dizia, mas pelo menos não a petrificava com um olhar de basilisco.

Mais constrangedoras, no entanto, eram as conversas que a enfermeira tinha com Draco quando estavam a sós.

Aparentemente ela tomara a si a tarefa de preparar o jovem para lidar com a parte feminina do seu corpo.

Cuidados, ciclo menstrual e higiene foram temas debatidos, apesar do desconforto do garoto. Mas quando ela abordou reprodução, Draco não permitiu que continuasse.

—Eu sou o que sou, Madame. Não vou reproduzir nem nada. Chega disso.

Diante do olhar angustiado do garoto, a boa enfermeira cedeu. Mas lhe trouxe uma pilha de livros e exigiu que ele os lesse.

—Infelizmente, Malfoy, não há nada específico para hermafroditas. – Ela fazia questão de chamá-lo assim, apesar do estremecimento que o garoto tinha toda vez que ouvia a palavra. – Mas no fundo funciona da mesma forma que uma mulher. Tenho certeza que você conhece o básico, mas leia isso com olhos de quem é, em parte, desse jeito.

Draco tinha certeza de que pelo menos um resumo dessas conversas chegava aos ouvidos do Professor Snape, e atribuía à sensibilidade da Pomfrey que esses relatórios não fossem feitos na sua frente.

Snape era um mistério total pra ele. Sempre o julgara um Comensal da Morte, exatamente como seu pai. Pior até. Um capacho de Lucius, além de um escravo do Lord das Trevas.

A metamorfose que sofrera afiara os instintos de Draco, e ele intuía uma preocupação sincera escondida na carranca de Snape. Ele não conseguia descobrir os motivos do Professor, mas sentia que por hora podia confiar nele.

O porquê de poder confiar no homem que deveria ser subserviente ao Lord de seu pai ainda o intrigava.

Nos anos desde a volta de Voldemort, Draco mudara muito de opinião a respeito do Lord e dos Comensais. Perdera parte do respeito e admiração que sempre sentira por Lucius ao ver que ele não passava de um peão nas mãos do outro bruxo. Mas o medo que sentia do pai desde criança persistia, agravado pela descoberta de que era uma aberração. E agora havia Snape. Uma surpresa naquela situação.

Na tarde do terceiro dia, Draco recebeu a visita do Diretor da Escola.

Uma coisa era confiar em Snape, que sempre ficava do lado dos da sua Casa, mas confiar no Diretor era bem mais complicado.

Olhando para o idoso bruxo, sentado ao lado de sua cama, Draco se deu conta do quanto ele era velho. Acostumara-se a achá-lo ridículo e imutável nos sete anos de escola, mas agora via um homem muito velho, com uma força mágica e uma serenidade enormes.

Os olhos azuis por trás dos óculos cintilaram, e Draco teve certeza de que, assim como ele podia perceber melhor o Diretor, Dumbledore podia ver por onde andavam seus pensamentos.

—Temos muito que conversar, Draco. Há muito a ser decidido. - O Diretor foi direto ao ponto, sem perder tempo com lamentações que Draco não queria ouvir. – Sei que você está fazendo aulas de Anatomia Bruxa, então acredito que você entenda em parte o que você é.

Draco assentiu, emburrado.

—Sei que você não gostaria de falar nisso, mas para sua própria segurança devemos conversar.

—Eu sei o que eu sou, Diretor.

—Não acho que saiba totalmente, meu jovem. O que você acha que é?

—Uma aberração! Uma maldita aberração que envergonha o nome da minha família.

Draco respirou fundo tentando acalmar-se. Estava se deixando alterar, e isso não era bom.

—Não, Draco. Você não é uma aberração. Você é um hermafrodita.

Draco encolheu-se como se sentisse dor. Ouvir aquilo dito em voz alta era tornar definitiva a mudança que ele ainda não aceitara.

—Imagino que isso seja muito duro para você. Gostaria de poder poupá-lo disso, mas não posso. Há alguns detalhes sobre a situação legal e mágica dos hermafroditas que não são aprofundados em sala de aula, e que você precisa saber. -Dumbledore fez uma pausa. -Você sabe por que os hermafroditas devem ser registrados no Ministério?

—Não. – Draco encarou o Diretor, ainda hesitante em falar no assunto.

—Por causa da empatia. É um dom raro, Draco. Nem o melhor oclumente pode enganar um alguém com esse dom e que seja totalmente treinado. nesse momento você sente, à medida que eu estou falando, se eu minto ou escondo alguma coisa.

Draco apenas assentiu.

— Existem duas formas de se treinar um esse tipo de talento. Se um bruxo for treinado na metodologia do Ministério, essa capacidade se amplia a níveis altíssimos, e o bruxo passa a sentir tudo o que a pessoa em que está focado sente. Por isso o Ministério exige o registro. Hermafroditas tornam-se, compulsoriamente, interrogadores do Ministério, respondendo diretamente ao Ministro.

Draco olhou assustado para Dumbledore. Seus instintos o avisavam que o pior ainda estava por vir.

—Imagine o que Voldemort não faria com alguém assim preso a ele. Acredito que, se deixarmos que você seja registrado, você acabe nem chegando ao Ministério. Eu penso que Lucius o entregaria a Voldemort antes disso.

—É. Eu creio que sim. O senhor disse que há outra forma?

—Sim. Pode-se treinar o o bruxo que tem o dom de empatia para bloquear a percepção. Não toda ela, é claro, mas uma parte. Ele nunca atingirá o grau de percepção que poderia de outro modo, mas não precisará viver isolado. Mas o Ministério força os Hermafroditas registrados em outra direção. Por lei o Ministério tem o poder de treiná-los conforme seu interesse. Depois de algum tempo, a empatia torna-se tão forte que a pessoa não consegue mais controlar e precisa viver isolada do mundo. Hermafroditas normalmente não vivem nem até os trinta anos. Não por alguma limitação física. Você pode viver até os cento e sessenta facilmente, como qualquer bruxo. O que os mata é a depressão. Sentir toda a dor de tantas pessoas somadas ao desprezo de muitos e a solidão mina sua resistência psíquica e física. Por isso temos de dar um jeito de ocultá-lo do Ministério e treiná-lo de forma que você não seja mais interessante para eles. O problema, Draco, é que o treinamento é difícil e demorado, e o Ministério não pode saber de nada antes disso.

—Se eles descobrirem, eu vou ser registrado à força.

—Sim. A menos que...

Draco olhou agoniado para o diretor enquanto o velho bruxo hesitava.

—Existe uma brecha na lei, Draco. Uma autoridade bruxa poderia casá-lo antes do registro, e então o Ministério não poderia levá-lo, mesmo que o treinamento estivesse ainda incompleto.

—Casar?

—Hermafroditas podem se casar, Draco. Tanto com um homem, quanto com uma mulher. E basta um atestado de um curandeiro para que esse casamento possa ser realizado. É a única e pouco divulgada rota de fuga dessa atitude absurda do Ministério.

—Pretende que eu faça um casamento de fachada, Diretor?

—Não, Draco. De forma alguma. Pretendo ocultá-lo por hora. E ajudá-lo no seu treinamento, junto com o Professor Snape. Mas quero que saiba de todas as suas possibilidades. - Dumbledore ergueu-se, preparando-se para deixar Draco a sós. – Descanse agora, meu jovem, aproveite para pensar sobre o que conversamos. E você está certo, u realmente estou ficando muito velho.

Draco não captou nada a não ser um leve divertimento do outro bruxo com sua nova percepção dele.

—Diretor, o Professor Snape já sabe disso tudo?

—Sim, Draco. Eu tive essa mesma conversa com ele. Agora descanse.

—Certo.

Quando o velho bruxo chegou à porta, Draco perguntou de chofre.

—Como o senhor sabe tanto sobre hermaf... sobre isso?

—Uma das minhas melhores amigas na escola foi uma hermafrodita.

Draco sentiu a verdade e a dor por trás da fala do Diretor e ficou sozinho com seus pensamentos.