Toques

É com gestos lentos e cuidadosos, mas sobretudo elegantes que ele me despe a veste e me recobre com o lençol, enquanto eu respiro profundamente para ver se me acalmo. Se o próprio Theodorus não tivesse me dito que era necessário, eu teria me rebelado. Ah, Hécate, a quem estou tentando enganar ? Eu não faria nada, eu não vou fazer nada, eu quero... Morgana, Senhora de Avalon e de todas as Sacerdotisas, mantenha-me casto. Apenas mantenha-me aparentemente casto, é tudo que eu preciso.

Finalmente ele se acalmou. Algo que eu disse o acalmou, ou foi o conectar-se com o olhar do Lobo e mostrar respeito à fera que o acalmou. Ele precisa dessa medicação, ele não sabe como precisa... e eu só penso em despí-lo e tocá-lo. Belo enfermeiro que o lobisomem arrumou, alguém digno dos altos ideais da Ordem da Fênix, mesmo. Eu só queria poder ser o que eu quero ser.

Já se imaginou a menos de dez centímetros da pessoa que te faz tremer inteiro de paixão e volúpia, sentir o toque suave dela em sua pele e não ter coragem de olhar de lado ? Esse sou eu. E se ele percebe meu tremor incontestável, eu resmungo que é frio. Ele não acredita, claro, e eu finjo - mais uma vez! - que é a licantropia.

Se ao menos ele parasse de tremer de medo cada vez que eu toco sua pele, eu pensaria que tenho uma chance. Essa Lua Azul o deixou ainda mais frágil que sempre foi, e eu temo por ele. Mais e mais eu temo por ele, temo pelo que ele disse que ira´ fazer, temo pelo que eu irei fazer hoje. E espero que esse dia e essa pasta não se acabem nunca.

Lenta e deliberadamente ele passa a tal pasta nas minhas costas, tomando o cuidado para que toda a extensão da espinha esteja bem emplastrada; só um maluco para sentir-se excitado com essa coisa gosmenta e mal-cheirosa sendo aplicada nas suas costas. E a cada momento que passa mais eu me conscientizo que sou completamente doido. Um lobisomem maluco. Só me faltava essa, penso enquanto suspiro mais profundamente.

- Doeu ?

- Não.

- Então, o que foi, Remus ?

O que foi é que eu quero me virar e te puxar pra cima de mim, seu sonserino insensível ! a resposta do Lobo em minha mente quase me faz sorrir.

- Isso é bom.

- É, isso acalmará seus nervos.

Mas está deixando os meus em frangalhos. Todos eles, exceto um. Aproveito e faço uma massagem discreta para relaxar os músculos dos seus ombros, bem próximo à nuca. Você parece ter músculos de pedra aí, lobinho. Lobinho... um homem desse tamanho, e eu chamo de lobinho. Costas afligidas por quarenta anos de intromissão do Lobo, rejeição e perfídia dos humanos, tristeza e dor de si mesmo... valorosas costas, fortes como o melhor aço de Toledo. Nem percebi e estou relaxando os músculos das costas dele. E ele está deixando. Pelo menos parou de tremer. Ainda está inquieto, mas parou de tremer. Não devo ser tão assustador assim, mesmo estando às costas dele. Vigilância Constante, meu caro Lobisomem, pois está à mercê de um Comensal da Morte. Que literalmente desejaria te devorar.

Sentir as mãos dele espalmadas nas minhas omoplatas me dá uma sensação de paz e alívio como não sinto há muito,muito tempo... minha mãe fazia isso. Ela ia desfazendo também cada um dos nós de pressão que eu sempre criei ali, mas o toque dele é diverso. Não sei o que no toque dele me fez lembrar minha mãe. Não pode ser carinho, não. É apenas o apreço dele à precisão : se ele é um enfermeiro, até isso ele fará perfeitamente. Ou algo mais prosaico, ainda : depois dela, ele foi a única criatura que me tocou. Ah, como eu sou patético ! Todos temem o Lobo, parece que foi preciso um Comensal da Morte para conseguir me dar uma medicação desse jeito. Só o treino de Voldemort, mesmo... a proximidade e conhecimento das Artes das Trevas é que faz com que ele desempenhe tão bem essa missão de cuidar de um Lobisomem. Porque ele sabe que somente o corpo que está aqui é meu. A mente - que divaga entre a lembrança de mãos maternas e imagens obscenas - está quase distante. Quase noturna. Quase soturna. Porque hoje é Lua Cheia.

- Severus !

- O que ?

- Pare.

- Qual o problema ?

- Pare.

O aperto mais forte no músculo subitamente rígido, o dedo pressionando o ponto correto... e a calma volta, instaneamente.

- Era isso ?

- Era.

- Bom. Vou continuar.

- OK.

Sim, esse é o Lupin. Sofre sempre e calado, mas seu corpo não se cala. As pessoas vêem o calmo Lupin, o resignado Lupin, o sensível Lupin, o amigo Lupin ... mas ele tem uma besta dentro de si, que o domina completamente pelo menos um quarto do mes, todos os meses, desde os seus cinco anos de idade. São no mínimo oitenta e quatro dias no ano, 2.940 dias em trinta e cinco anos, ou seja mais de OITO ANOS como fera incontrolável. Fora as Luas Azuis, nas quais eu agora descobri que ele praticamente morre e renasce, cada vez mais e mais retraído. Algo dessa magnitude não acontece sem deixar marcas, e marcas profundas. Mais profundas que as cicatrizes que ele ostenta, e eu carinhosamente recubro de pasta calmante. E aparentemente só eu vejo esse homem e essas suas marcas. Será que eu vou conseguir alcançá-lo, com todas essas cicatrizes para curar ?

Algo no toque de Severus é mágico, e que acalma o Lobo. Ele finalmente parece ter se resignado, e nos deixado em paz para curtir isso tudo... as mãos de Severus, a voz quase ríspida mas sempre veludosa fazendo-se ouvir a cada mínimo movimento meu, a certeza quase mística do que é necessário fazer e como deve ser feito, o toque sempre perfeito... Nem sei se me aquieto ou se me agito; quero sentí-lo e ouví-lo, quero tê-lo. Mas não posso me mover nem um centímetro, mesmo tão incomodado como estou aqui. Logo vou precisar ir ao banheiro, desse jeito... E a semana da Lua Cheia nem começou ainda, vai ser essa noite.

Toc-toc.

- E como está nosso doente, Severus ?

- Recuperando-se, Albus, se não tomar mais nenhum choque. Ele estava quase conseguindo dormir e descansar.

Merlin! Senti-me um adolescente pego em um momento íntimo pelo pai com essa chegada silenciosa de Dumbledore ! A forma como Severus se agitou diz que também ele não gostou da intromissão.

Maldito seja, Dumbledore, maldito seja com sua presença indesejada ! E bendita seja essa capa longa que me recobre e oculta o que meu corpo grita !

- Albus.

- Remus... Theodorus mandou que você tomasse isso também. Severus fará mais, mais tarde.

- Posso tomar depois ?

- Pode.

Nem nesse momento o maldito velhote deixa de dar daqueles sorrisos quase nefastos. O que o diverte tanto, ver as cicatrizes dele, ver o roxo no rosto, o braço encanado ? Ou me ver passando essa maldita coisa fedorenta em um dos seus queridos marotos, humilde como um reles enfermeiro trouxa ? Do que esse velho desgraçado ri, afinal, é dele ou de mim ? Ria de sua própria ignorância, velho cretino, e não de nós !

- Lupin, é melhor tomar isso agora mesmo. Eu me concentrei na sua coluna e me despreocupei do horário, você já deveria ter tomado a poção há quase meia hora.

Oh, Merlin, como eu vou me virar agora ? Vai ser a piada do ano, o lobisomem fica excitado porque alguém passou um remédio mal-cheiroso nas suas costas...

- Mas é preciso me virar... a pasta...

- Não, criança,não se mova; use um canudinho. Tome.

- Canudinho ?

- Coisas de trouxas, Severus. Muito úteis esses trouxas, às vezes. Muito,muito úteis. Eu vou para a sala, quando você terminar preciso falar com você.

- Vou demorar.

- Imaginei que sim. Sem pressa, nossa prioridade agora é Lupin.

Nossa prioridade é Lupin... Merlin, em algum momento a prioridade foi ele ? Nunca, NUNCA ele foi prioridade de vocês, somente minha, e nem dessa prioridade vocês me permitem cuidar ! Ele é o peão desprezável, eficiente mas descartável... como eu mesmo. Dois peões apenas. Aguardem-nos. Apenas...aguardem-nos. Estamos na Lua Cheia, e eu sou um Mestre de Poções.